Aconteceu em Shangri-lá

Abaixo reproduzo uma carta que meu pai escreveu e colocou sob a porta de cada apartamento do condomínio em que moravávamos no bairro da Pompéia em São Paulo, mas não sem antes fazer cada um dos jovens interessados lê-la e assiná-la.
O texto ironiza, com uma dose de sarcasmo e lirismo, um incidente ocorrido dias antes, onde eu e meus amigos - todos na faixa de 14 a 17 anos -, por estarmos abuletados indevidamente nos sofás da recepção, fomos retirados do local e multados, sob o argumento de que condôminos não poderiam usar tal espaço, somente visitantes.
Se me lembro bem, estavam lá naquele dia: Eu, Pinga, Baxo, Ivan Luis, Silvinho e Marcelinha. Eu e o Pinga contamos ao meu pai a nossa versão da história, e ele, inspiradamente, redigiu este grito de protesto contra o regime ditatorial do síndico do prédio, que tinha grande implicância com a moçada; a mesma moçada que em peso, ajudou-o a se eleger como síndico meses antes.
Isso tudo ocorreu há exatos 21 anos, no frio outono de 1987...
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Aconteceu em Shangri-lá
Foi 2ª feira, dia 11, ante-véspera do dia 13. Lanchonete do prédio fechada. Noite. Mais ou menos 21:30h. Ventos de quadrante leste fortes. Brrrrrr! Os termômetros marcavam 8 graus e um pouquinho. O pé-de-vento gemia igualzinho a pobre torcida palmeirense.
Conversávamos esfregando a concha da mão na boca para esquentar. Não tinha jeito, a ameaça do tempo era clara: se ficássemos lá embaixo, na lanchonete escura e gélida: pneumonia simples; em duas horas, se insistíssemos, dupla; se saíssemos de lá, ainda que correndo, quem sabe um resfriadozinho leve... Era isso. Respostas múltiplas.
Igualzinho no conto famoso, éramos seis. Então optamos por ficar no salão da recepção, para alegria dos nossos anjos-da-guarda. Chegamos e já fomos ocupando os lugares. Shangri-lá é isso: sofás macios, ambiente envidraçado e quentinho, que nem na casa da vovó.
Em votação implícita e mesada curta, afinal, ir pra onde? Ali estava mais que bom, era o ambiente radical que precisávamos! Agora o papo corria mais solto, rolando abobrinhas. Alguém já disse que abobrinha é cultura? Pois é!
Não demorou dez minutos. O segurança e porteiro-telefonista, deste admirável paço, nos comunicou que não podíamos ficar ali. Eram ordens. Do "seu" Branquinho.
Apelamos para o sentimento do homem. Tentamos comovê-lo com o bruta frio que fazia. Reclamamos, falamos que lá também era nosso. Mais frio que o frio da noite e com a frieza do Mike Tyson, o homem disparou pra cima da gente o soco definitivo: ia chamar o "seu" Branquinho para nos remover do local.
Nós dissemos remover? Pois dissemos muito mal. O "seu" Branquinho veio, nos deu um brutal sermão, ameaçou nos multar e multou, ameaçou nos expulsar e expulsou!
Saímos de lá multados e escorraçados. Só faltava agora que o vento Noroeste nos pegasse de través. Fora isso, ainda tivemos que explicar em casa os "motivos reais" da multa. Fora isso, um pai que se deu ao constrangimento de saber o que houve na administração, só faltaram lhe dizer que somos cafajestes e vândalos.
A verdade é uma só: nós os jovens (e até as crianças, por que não?) só somos bons quando somos obedientes às ordens mais esdrúxulas dos adultos. Boas notas, cabelinho penteado, falar baixinho, se comportar etc. Tudo dentro dos padrões de um mundo triste e escuro em que eles viveram, e acham-por-que-acham que devemos viver. Os anos de autoritarismo que eles dizem que experimentaram, parece que marcou a personalidade de cada um: ficaram autoritários, injustos, sempre irritados e de pouco diálogo. A opinião deles deve prevalecer, senão...
Agora fazer o quê? Vamos rezar para a Nossa Senhora do Condomínio (aquela que protege os condôminos aflitos) para pôr um pouquinho de cordialidade no temperamento do Sr. Branquinho. Afinal, quando fomos convocados para atuar de "cabos eleitorais", o homem era cordial e de comportamento branco como o leite. Perguntamos: O que houve? azedou? Tem cabimento nos multar por usarmos uma área comum e que deve servir a todos? Será possível que não tem outro modo de falar com a gente que não seja aos berros? Seriam os seguranças astronautas, ou deuses, onde tudo o que dizem é verdade e só nós somos os mentirosos? E as promessas de campanha quando se pretendia criar um clima de amizade, não vale mais? Foi demagogia?
Shangri-lá? Pois sim! Abaixo, assinatura e identificação de todos:
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Aloisio Cruz Maio de 1987

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