Fidelidade comercial

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Sai do mercadinho decidido a nunca mais por os pés lá. O sujeito atrás do balcão, o qual conheço há meses - pois todo o santo dia após o almoço, entro no seu estabelecimento e compro das suas próprias mãos um chocolate Diamante Negro de R$ 1,30 -, se vira para mim e diante do meu pedido feito baixinho, para ficar devendo R$ 0,30 (eu estava só com 1 real na carteira este dia), me responde que: “não será possível pois ´o dono` não deixa”.
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Imaginem o meu espanto! Me senti humilhado. Olhei disfarçadamente pros lados pra ver se alguém havia presenciado o vexame. Devolvi o chocolate à prateleira devagarzinho e sai de fininho com o rabo entre as pernas. Minha face queimando de vergonha.Pra cima de mim! O dono é ele, sei disso! É evidente. Percebe-se pelos trajes, pela fala, pelas ordens que já vi dando aos outros, pela sua cara redonda de descendente de italianos.
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Se tem uma coisa que exijo em estabelecimentos comerciais, é uma dose de consideração proporcional a minha fidelidade. Eu não queria deixar de pagar, aliás era a primeira vez que pedia tal coisa em mais de 1 ano; e também não tinha a intenção de fugir do país com os R$ 0,30 do sujeito! Eu só queria comer o meu chocolatinho vespertino!
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Como posso admitir que este tipo de relação comercial seja uma rua de uma mão só? Só eu sou fiel? Só eu prestigio, só eu invisto meu tempo, dinheiro e sorrisos, só eu, eu e eu?! Penso assim: se todo o dia eu sustento um estabelecimento desses com meu suado l`argent, em detrimento de dezenas de outros comércios nas imediações, o mínimo que quero receber em troca, num dia difícil como este, é que ele me deixasse pagar o restante no dia seguinte! E ainda seria mais justo e leal da parte dele se me dissesse: “não precisa nem pagar hoje amigo, me traga o $ todo amanhã”. Era exatamente o que eu teria feito se estivesse no lugar dele, diante de um cliente bom e assíduo. Incrível a falta de atenção que os comerciantes atualmente dão a “detalhes” como estes.
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No passado era bem diferente. Lembro-me de entrar na padaria com a minha avó quando menino, e o Português não só a chamava pelo nome como também sorria pra ela; na hora de irmos embora fazia festinha no meu cabelo e me dava uma bala. Quem diria! Outros tempos...
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Hoje os comerciantes tratam os clientes como se fossem intrusos, ladrões em potencial. Já não bastassem as câmeras e o antipático aviso: "este ambiente esta sendo filmado".
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Às vezes tenho a sensação de que estão me fazendo um favor em me atender, como se não houvesse outra padaria na esquina seguinte. Quase chego a pedir desculpas. A maioria dos comerciantes nem levanta o olhar na hora do acerto no caixa, para dizer o mínimo esperado: “tenha um bom dia”.
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Sei que muitos pensam: “Mas agora é assim mesmo, os tempos são outros, frios, temos que aceitar”. Já adianto que não aceito.Eu sou vendedor, e como profissional de relacionamentos, chamo todos os meus clientes pelo nome, trato-os com afetividade e alegria e sorrio na chegada e na saída de suas empresas. Mas não faço isso porque é correto. Faço porque gosto de gente, gosto de tratar com seres humanos, e por fim, gosto do meu trabalho.
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É claro que há dias em que não estamos de bom humor; mas mesmo nestes dias, temos que fazer um esforço. Afinal quem paga nossas contas? Não é o cliente? É ele sim. Que fique bem claro.Por isso o cliente é o rei, o cliente é o nosso verdadeiro chefe!
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Há uns anos eu cortava o cabelo em um barbeiro no bairro em que morava. Depois que mudei do de lá pensei em trocar de barbeiro, mas como já estava acostumado com ele - além do costume, sabia que ele estava recém casado e tinha mulher e filhinha recém-nascida para sustentar -, todo o santo mês eu fazia o esforço de me deslocar por 30kms e ia até sua barbearia no bairro do Sumaré. Pois bem. Uma sexta pela manhã, me olhei no espelho do banheiro e tomei um susto: cabeleira enorme! Cresceu a noite, incrível! E justo neste dia um tinha uma festa à noite, não poderia ir com aquela juba.Normalmente eu pagava o corte em dinheiro, mas justo neste dia eu estava totalmente duro, meu salário só cairia na conta na segunda seguinte, dali há 3 dias. Para piorar, eu não tinha uma única folha de cheques...
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Liguei pra marcar horário e aproveitei para explicar a ele meu caso. Contei-lhe a minha miséria. Achei que o papo se limitaria a algumas risadas, pois intimamente eu tinha a certeza de que não haveria problemas em pagar a conta depois, dada a nossa amizade de tantos anos. De qualquer forma era importante avisar com antecedência a situação.
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Após relatar minhas mazelas econômicas, expliquei que na segunda ou na terça seguinte levaria o dinheiro pessoalmente a ele, ou depositaria em sua conta.
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Ele ouviu tudo em silêncio. Até super-dimensionei o aperreio, com o intuito de fazer alguma graça; queria provocar uma palavra ou uma risada que fosse naquele silêncio tão constrangedor. Mas ele não deu um pio... Eu bem que deveria desconfiar daquela quietude atípica! Justo o Bláblá, que era um conversador absolutamente profissional e fazia jus ao apelido! Durante um corte de cabelo ele era capaz de contar episódios ocorridos em um ano inteiro!
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Mas qual não foi minha surpresa (e desgosto), quando após toda a explicação que dei, escutei-o dizer: “Cesar, infelizmente não vai dar...”. Calei de susto. Ele piorou a situação tentando me explicar que ainda se fosse um cheque ele poderia trocar, mas ficar devendo sem nenhuma garantia para a outra semana... Ah, isso seria muito complicado (!), pois ele tinha contas a acertar com fornecedores etecetera.
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Fiquei tão quieto do outro lado que ele achou que a linha tivesse caído. No fim nem me lembro o que respondi; acho que falei algo assim: “então tá, Blábla... depois nos falamos... tchau...”, e desliguei encabulado. Ele não falou nada, só um tchau baixinho e constrangido.
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Nunca mais o vi. Aquilo foi como uma facada nas minhas costas. Não passei mais nem na porta da sua barbearia. Não seria justo fazê-lo... Justo comigo. Da mesma forma, o sujeito do mercadinho vai esperar sentado o dia em que eu entrarei de novo lá.
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Cesar Cruz
abril/ 07
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