Yoda & Sushi

Eu e minha mulher temos dois gatos. A veterana Yoda e o noviço Sushi.
A Yoda é da raríssima raça "smoke street cat". Raríssima, tão raríssima que sou eu o único proprietário de um exemplar em todo o mundo. O que não é de se espantar, já que essa raça fui eu mesmo que criei...
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Yoda é parte da família há nove anos, quando a ganhei em uma loja de animais num shopping, com apenas dois meses de vida, perguntei à dona do estabelecimento qual era a sua raça e ela me respondeu: "ela é vira-lata mesmo".
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Comprei a caixinha de areia e a ração - custo exigido para que eu pudesse levá-la sem custos - e levei-a para casa emburrado. Não aceitei aquele papo de "vira-lata-mesmo"! Que negócio é esse! Como ela poderia ser vira-lata-mesmo sendo tão linda? E em casa, além de bela, Yoda já se mostrava uma lady! Educadíssima desde a mais tenra idade, é capaz de entrar em uma cristaleira, andar por entre taças, copos e jarras e sair sem produzir um único tilintar!
A mulher da loja não comentou naquele dia, mas hoje desconfio que, logo após o seu desmame, Yoda foi mandada à Europa para fazer um daqueles intercâmbios culturais... certeza.
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Comer e beber para ela é um exercício de contemplação. Posiciona-se em frente à sua vasilhinha e delicadamente mordisca um a um os grãos da ração, às vezes pára, pensa um pouco nas preocupações de sua vida de gato e calmamente retorna à refeição. Quase não faz barulho e nunca, repito, NUNCA deixa cair uma gota de água que seja fora do pote!
Coisa bonita de se ver... Eu até melhorei meus modos à mesa só por observá-la se alimentar.
Se um dia eu substituir a sua vasilha por três pratos de porcelana sobrepostos, ladeados pelos inúmeros talheres de prata, não estranharei se ela começar a usá-los de fora para dentro como manda a mais alta gastronomia francesa.
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Você deve estar se perguntando: mas por que smoke? Não, não, não! Não pense que a Yoda tem vícios!, não fuma nem nunca fumou! Até porque em casa não a deixaríamos fumar, não gostamos de cigarros. O "smoke", no caso, se deve à sua pelagem suavemente esfumaçada, digna de dar inveja aos mais glamorosos Angorás!
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Já o Sushi... Ah, o Sushi...
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Pegamos o Sushi com três meses de idade. Persa legítimo com a cara achatada e os olhos oblíquos típicos da raça. Isso para não falar do pêlo macio e exuberante com sua bela tonalidade de salmão.
Optamos por comprar um persa, pois fomos informados por especialistas que se trata de uma raça de gatos pacatos, companheiros, educados, delicados e sutis. Perfeito para acompanhar a Yoda nos primeiros passos em direção à sua 3ª idade. Pelo menos era essa a nossa esperança...
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Passamos semanas procurando um bichano nas características que queríamos, andamos em gatis por São Paulo inteiro, até que encontramos. Pagamos uma nota nesse sujeitinho de alta estirpe!
O cara é tão fresco que veio até com pedigree. Para quem não sabe, o pedigree é uma espécie de título nobiliárquico, um documento cheio de história que traz a linhagem, as referências e a fotografia do bacana - precisam ver a pose dele na foto - e é todinho escrito em inglês.
Coisa finíssima, gente!
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Então, num belo sábado de sol, cruzamos a cidade para buscá-lo e finalmente trouxemos o Sushi para o convívio em nosso modesto lar. Nesse dia, respeitando o protocolo, realizamos todas as honrarias e os cerimoniais que cabem a tal nobre felino: preparamos a casa, mandamos a Yoda para lavar e colocar lacinho, vestimos nossa melhor roupa, maneiramos no perfume, quebramos a luz da casa e falávamos bem baixinho, tudo para não incomodar seus fidalgos sentidos.
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Chegamos em casa e, temerosos, colocamos cuidadosamente Sushi no chão. Ele nos olhou impassível e passou a andar pela casa, bem devagar, como fazem os lordes. Marcha elegante, estilo cavalo puro-sangue em competição olímpica.
Enquanto nos mantínhamos observando em respeitoso silêncio, sua majestade, o Sushi, cheirava tudo com seu olfato fleumático.
Em um canto da sala já havíamos posto o básico: duas vasilhas absolutamente esterilizadas, uma com água mineral - nem a gente toma água mineral em casa! - e outra com a melhor ração para persas filhotes existente no mercado, caríssima.
Bem distante do alimento - como manda a convenção internacional dos felídeos de linhagem -, posicionamos uma caixa sanitária com a areia especial.
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Sushi então caminhou com seus pezinhos almofadados suavemente até o alimento e, de repente, para nosso espanto e horror, calcou de uma tacada só o respeitável focinho na terrina de comida. Parecia um viking enfurecido em um filme medieval. Chafurdou e comeu com tamanha voracidade que, por um instante, achei que havíamos nos enganado e trazido para casa um esfomeado cão de rua. Enquanto eu e minha mulher nos abraçávamos assustados, Sushi prosseguia em sua comilança desmedida e ruidosa. Cada vez que investia contra a tigela, arrastava-a pelo chão e lançava grãos de ração por todo o lado.
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De repente parou. Virou-se e nos olhou. Parecia feliz; seu sorriso trazia um pedaço de ração grudado entre os dentes que o fazia parecer um gato banguela. Ficamos mudos com os olhos estalados assistindo àquela cena bizarra. Sushi não nos deu atenção, voltou-se rapidamente para a outra tigela e "splash!", mergulhou metade da cabeça na água. Ruídos aquosos e grotescos tomaram a sala. Até a Yoda, que dormia tranquilamente em cima da geladeira, desceu para assistir ao acontecimento. Ficamos os três, lado a lado olhando espantados para aquele comovente espetáculo.
Depois de beber derramando metade da terrina, voltou a comer; depois a beber de novo, e assim sucessivamente até se saciar. Só então virou-se para nós resfolegando e lambendo a barba melada e gotejante. Silêncio na sala. Nenhum de nós três sabia o que dizer ou miar.
Só que o silêncio, devo-lhes confessar, não tardou muito a ser rompido. Bem pessoal, vocês sabem... tudo o que entra... cof, cof... como poderei dizer isso... Sai!
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Minutos depois, nosso elegante e distinto gato dirigiu-se em passinhos aristocráticos até sua nova bandeja de dejetos, acessou-a em um salto estabanado e agachou-se lá dentro.
Sob nossos olhares de repulsa, Sushi, estrepitosamente e sem nenhum acanhamento, derramou sua farta, generosa e incrivelmente fétida borra amolecida e amarronzada dentro da caixa.
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Tapamos nossos respectivos narizes com pregadores de roupa, passamos a mão na pobre Yoda e abandonamos a casa para só retornar a noite, acompanhados - é claro - dos homens do corpo de bombeiros.
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É amigos... Quem vê cara não vê fidalguia!
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Cesar Cruz
Abril/ 08
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8 comentários:

Anônimo disse...

Confesso que não tive estômago para ler o post do início ao fim. Eu tive 7 persas, acompanhei o nascimento de 6 deles. Vou explicar. Eu tinha 1, o dono do pet shop tinha outra, deixou a gatinha quando estava no cio durante uma semana, mas não deu nada. Ele, por fim, desistiu dela, mas porque não conseguia dar cabo de uma fungose cutânea dela. Foi uma experiência interessante, romper as bolsinhas da placenta, esfregar os gatinhos, etc. para não morrerem. Nenhum morreu nesse momento. O único que morreu foi depois de umas duas semanas, por sufocação atrás da mãe. Jogamos no lixo. Os gatinhos cresceram. No início não deram problema nenhum. Depois, quando desmamaram, mijavam e cagavam na casa inteira. Quem era o trouxa que limpava tudo? Eu, é claro. Todos queriam ver os gatinhos bonitinhos, mas ninguém queria pôr a mão na massa, ou no mijo e merda. Me revoltei depois de vários dias, mas essa é uma história que não vem ao caso. Moral da história? PQP, meu gato pôs um ovo. Gato não põe ovo, PQP de novo.
abs
André
24.4.08

Anônimo disse...

É isso Cesar. Quem vem cara não vê a educação ....rs

Armando
25.4.08

Anônimo disse...

Olá César!
Li seu texto e durante a leitura me vi lendo uma parábola.
Minha ótica vai além do mundo animal, pois seu texto me mostrou claremente "o que é uma oportunidade na vida de alguém?!?".
A felina Yoda soube muito bem o que é isso, pois além dela ter essa consciência ela se demosntra muito grata.
Isso é uma conotacao do MICRO, ou seja do nosso mundinho mais próximo.
Agora vc imagine as diversas Yodas que tem por nesse país, imagine isso numa visao MACRO....bom, tudo isso seria maravilhoso...imagine se cada brasileiro tivesse a "oportunidade" de se desenvolver suprindo todas as suas necessidades básicas.
Por outro lado temos muitos Sushis por aqui também. Calma!
Uso a figura do seu Sushi para falar sobre essa gente que quer manter as aparências e fora isso nao acrescentam mais nada. Enfim, pessoas que tem um âmago repleto de vaidade, egoísmo e que muitas dessas quando chegam ao poder nao fazem valer seus pedigrees.

Um abraco pra vc e pra Vanessa!

Gláucia (irma da Ana)

p.s.: devido a configuracao do meu pc, toda a pontucao esta comprometida.
25.4.08

Anônimo disse...

Yoda e Sushi, muito bom César. Você é um cara inspirado. Senti até o cheiro do Sushi, acho que estava estragado. Abri a janela do meu estúdio e fui tomar ar no terraço. Cacete!
Abraço,
Gabriel
27.4.08

Anônimo disse...

Caramba, César !!!
Demorei um pouco para ter tempo de ler um escrito seu mas
sinceramente fiquei agradavelmente surpreso! Cara, li só o Yoda &
Sushi e ADOREI ! (ainda não tive tempo de expolorar o seu blog mas
espero muitas coisas boas mais)
Parabéns!
Edson
27.4.08

Anônimo disse...

Olha só.. quem diria...
Muito bom esse "causo"!
Adorei!!
Beijo
Manuela
31.8.08

Anônimo disse...

Oieee Cesar, li este seu texto sobre Yoda e Sushi, dei muitas risadas, seu texto esta hilário. So quem tem gatos sabe o quanto eles são diferentes e possuem muita personalidade. Eu tenho tres,imaginou né?
bjs
Neylinha

katine walmrath disse...

um texto muito rico realmente.
parabéns.
;-)