A autocomiseração e o individualismo

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Um é o “pobre de mim que sofro tanto”. O outro é o “dane-se os outros e as suas desgraças”.
Um é o “ninguém me acode na minha necessidade”. O outro é o “o próximo que vá para o diabo que o carregue”.
Um é a pena e dó extremadas de si próprio. O outro é a indiferença e a frieza para com a sorte alheia.
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A autocomiseração é uma praga; é a compaixão às avessas. Deveríamos nos compadecer pelo que sofre, pelo que nada tem, pelo doente. Ao invés disso passamos uma existência olhando apenas para nós mesmos. É o individualismo, a dimensão mais cruel da personalidade humana do mundo contemporâneo. “Cada um com seus problemas” é a máxima da moda. Acho que nunca se inventou nada tão egoísta quanto esta frase. Jovens repetem isso como se fosse virtude. Que triste! Ninguém mais deseja olhar por ninguém...
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Com um dos nossos olhos, o míope, não vemos o sofrimento das pessoas que nos rodeiam, e com o outro, calibradíssimo, enxergamos cada pequena injustiça que achamos que o mundo e nossos inclementes iguais estão cometendo conosco. O mesmo que se auto-apieda dá de ombros à desventura das pessoas. Será que não percebemos que isso é um contra-senso? Será que não percebemos que se não olharmos pelo outro, lá na frente não haverá ninguém que esteja disposto a olhar por nós? Esse é um ciclo maligno que não nos poupará e precisa ser interrompido.
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Sabe por que eu não me incomodo muito com os cegos? Pois tenho meus dois olhos e posso enxergar livremente.
Sabe por que eu não me importo com as crianças com síndrome de Down? Pois não tenho um filho com este problema em casa.
Sabe por que para mim a fome são apenas números numa estatística? Pois na minha dispensa há abundância.
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Há muita gente que sofre de verdade neste mundo. Há guerras, fome, miséria, pessoas vivendo em palafitas, tomando a mesma água que as serve como esgoto; há pessoas morando nas ruas, com doenças degenerativas, com dores que as dilaceram por dentro, há abandonados em quartos de hospital definhando, há prisioneiros sendo torturados.
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Há, neste exato instante, gente nos velórios... Gente como eu e você, alguém que de repente atendeu a um telefonema e soube que a mulher havia tomado um tiro de um bandido e morrido. E nós aqui, reclamando que o vizinho disse algo, o dinheiro não deu, o cabelo cresceu, o chefe chiou. Precisamos parar de besteira, gente!
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Curioso é que, nestes tempos pós-modernos, nosso sentido de espiritualidade é cada vez mais exacerbado, mas nossa sensibilidade para o bem é quase nula. Um desatino, pois é de conhecimento comum que o sentido original de toda e qualquer prática religiosa não é o olhar a si próprio, mas fazer o bem ao próximo.
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O papa vem ao país e as ruas ficam cheias de católicos querendo bênçãos. Nos terreiros e centros há multidões atrás de orixás e espíritos que, com seus cartuchões, conseguirão com Deus (acredita-se), coisas para elas. As igrejas evangélicas estão abarrotadas de crentes louvando a Deus com as mãos estendidas aos céus e pedindo, pedindo e pedindo... Coisas para eles próprios, é claro. É a religião dos resultados. A busca pelo deus que funciona e pode nos atender.
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E as seitas que ensinam a exigir de Deus, então? “Faça tudo certo e depois exija Dele, irmão!”. Absurdo... Estão querendo torcer até o braço do Homem, gente! É a geração do “venha a mim”.
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Essa religiosidade farisaica que criamos distorceu ao nosso gosto os propósitos de Deus, gerando um individualismo asqueroso, uma autocompaixão repulsiva e uma misericórdia ao contrário. Acho mesmo que precisamos de menos religião e mais bondade neste mundo.
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Baseado nessa reflexão, criei para mim mesmo um código com 10 regras que passarei a cumprir, diligentemente, a partir de agora:
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Art. I – Doarei uma coisa usada a cada vez que comprar ou ganhar uma nova.
Art. II - Baixarei o vidro do carro (mesmo que seja perigoso), para dar um pouco de atenção e alento a: crianças pobres, velhos, desvalidos ou deficientes.
Art. III - Dirigirei ao menos um olhar, palavra ou sorriso ao pobre que me solicita na rua.
Art. IV - Comprarei mensalmente alguns víveres para dar aos desassistidos.
Art. V - Morderei minha língua até sangrar sempre que balbuciar palavras de autocomiseração.
Art. VI - Chutarei minha própria canela ao me surpreender lamentando por minhas fúteis agruras.
Art. VII - Agradecerei a Deus todos os dias por me dar saúde para trabalhar e por renovar minhas forças a cada manhã.
Art. VIII – Pedirei a Ele que aprimore em mim, a cada dia, o verdadeiro sentido da misericórdia e do amor e me faça entender que sou um afortunado.
Art. IX – Visitarei uma instituição de crianças portadoras de deficiência ou um asilo de velhos abandonados sempre que me pegar tentado a reclamar da sorte; ou de tempos em tempos, para que nem ao menos me atreva a fazê-lo.
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E, por fim...
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Art. X - Nunca mais direi: “cada um com seus problemas” .
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Cesar Cruz
Maio/ 2007
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2 comentários:

Anônimo disse...

É Verdade....para ler e pensar...

Acho que não é justo vivermos bem e não ajudarmos alguém..

abs, Alê
17.4.08

Anônimo disse...

César

Ótimo seu texto sobre a autocomiseração/individualismo.
Você escreve muito bem. Vamos conversar mais sobre esse assunto na academia.

Permita-me, irmão, contribuir para seu trabalho corrigindo algumas pontuações. Coisa de professor...


(Nota: A partir deste ponto, o Marcus me manda uma série de correções muito bem vindas, a maioria relacionadas ao uso da vírgula. Todas já aceitas e alteradas no texto! valeu, amigo!)

Grande abraço
Marcus

12.9.08