Fazendo amizade

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Sabia que o apelido dele era Kiko. Já havia ouvido o amigo gordinho gritá-lo assim algumas vezes. Por algum motivo que eu desconhecia ambos me tripudiavam e me desprezavam. Talvez por que eu estivesse sempre com a minha avó, e eles sempre sozinhos, orgulhosos, como menininhos precocemente emancipados.
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Aos 5 anos, um garoto que só anda com a vovó é sempre tido como um bobão pelos outros. Esse era eu.
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Algumas vezes eu já havia dirigido um tímido “oi” a eles; aquele tipo de “oi” receoso, de cabeça baixa, que já desconfia que não receberá resposta. E geralmente eu não recebia mesmo.
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O gordinho eu sabia que era André, pois minha mãe era amiga da mãe dele e eu já havia ouvido seu nome lá em casa.
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Naquela tarde, o magrinho estava só no parquinho, distraído, brincando no gira-gira. Cheguei como sempre com a vovó. Ele me olhou com desinteresse e voltou ao seu entretenimento solitário. Fui para o balanço ao lado. Era um destes balanços articulados que existiam antigamente: dois bancos de madeira paralelos que vão pra lá e pra cá juntos com as crianças sentadas frente a frente sobre eles. Podia ser balançado com os pés pelos próprios meninos sentados, ou por algum adulto pelo lado de fora. Sentei no banco oposto, aquele que me deixava de frente para o menino. Queria vê-lo! Queria ser seu amigo, queria com ele e com o gordinho, formar um trio! Queria ser livre como eles, livre e emancipado! Então fiquei lá do meu posto, a observá-lo com um misto de curiosidade, admiração e inveja.
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O menino, como cabe aos livres, rodopiava sem limites no gira-gira; feliz e determinado, centrifugava em alta velocidade para o lado que bem entendesse, tracionado por ele próprio! A mim restava o balanço limitado e articulado por trilhos e impulsionado pela minha avó; com a força e a velocidade que ela permitia. Um reflexo exato da minha própria situação.
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O sol do fim da tarde iluminava o menino livre em sua veloz nave giratória, conferindo-lhe um brilho especial. E eu lá quieto, a observá-lo da minha sombra. Matutava que talvez esta fosse a minha chance, pois na companhia do outro, eles praticamente se blindavam contra mim. Mas desta vez ele estava só! Se eu tivesse coragem, poderia conseguir sua amizade ali mesmo!Mas e pra arranjar coragem para conversar? Foi então que olhei pro chão e tive uma idéia.
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Ali ao lado do balanço, jazia uma corda dessas de varal; talvez mais grossa. Desci do balanço e peguei-a, cheio de idéias.
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Minha avó já descansava e se abanava sentada num banco de madeira ao lado. Distraída em seus pensamentos de gente grande, nem viu quando eu me aproximei do menino. Fui disposto a conversar, mas engoli as palavras ao me deparar com seu olhar que parecia me dizer: “não sou seu amigo”. Mas por detrás daquele olhar refratário, existia um garoto como eu, também curioso, certamente ávido por novidades! Ele então parou de rodar para me olhar. Permaneci firme no intuito de interagir, mas ao mesmo tempo não queria dar muito o braço a torcer.
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Então peguei a ponta da corda e amarrei na estrutura tubular do gira-gira em que ele estava; a outra ponta amarrei bem forte no banco do meu balanço. Ele ficou lá sentado, nitidamente interessado, mas tentando manter o ar de pouco caso. Entusiasmado pela quase aprovação, voltei ao meu brinquedo. Subi, impulsionei-o com os pés e me joguei sentado pra ver o resultado.
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Achei, na minha ingenuidade infantil, que a força aplicada pelo meu balanço através da corda, geraria um impulso rápido e divertido no brinquedo dele. Achei que ele iria gostar, e mais tarde, iria sentenciar em um tribunal formado por ele e pelo garoto gordinho: “O menino-vovó é legal! Já pode ser nosso amigo!”. Mas para minha infelicidade não foi nada disso que ocorreu...
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A corda, tracionada violenta e subitamente, provocou um movimento de giro surpreendentemente rápido, mas ao chegar à sua extensão máxima travou, estancando de súbito a espaçonave com o guri tripulante a bordo.
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A brecada seca arremessou-o ao solo violentamente. Ele bateu com a parte de trás da cabeça tão forte, que senti sob o meu pé o tremor do impacto. Eu não podia do alto de todo o meu conhecimento em física prever aquilo!
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Sentado no meu balanço-observatório, vi extasiado e impotente a cena toda. Vi quando seus olhos se arregalaram e quando sua boca se abriu em um “o” gigante, como se fosse abocanhar uma laranja invisível. Vi em seguida seus olhos se apertarem e a sua face se contrair em um misto de horror e dor.
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O som do choro irrompeu forte e assustador, mais parecido com um berro de terror do que propriamente com um pranto. Minha avó saltou do banco e correu para acudir. Parecia não ter entendido direito o que aprontamos. Levantou o menino do chão, esfregou a mão na sua cabeça e disse coisas a ele que não consegui ouvir. Ele mantinha os dois bracinhos magros envolvendo em desespero a cabeça e a face juntas, em um abraço auto-protetor. Não queria papo, não queria socorro. O rosto vermelho e a máscara da dor e do espanto deformavam sua fronte infantil.
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De cima do balanço, eu permanecia congelado. Queria também descer e acudir, mas não consegui me mover, tal o medo. Quis falar, mas a voz não saiu.
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Ele se desvencilhou da minha avó e foi partindo, negando a ajuda do adulto, menino livre que era. Fiquei imóvel, acabrunhado, com vergonha da minha burrice. Ai de mim! Agora nunca mais seria seu amigo.
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Semanas se passaram até que, de repente, começamos a brincar juntos. Sei lá de que forma, mas fui aceito pelos meninos livres.
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Não me lembro ao certo, mas acho que nunca me desculpei direito com ele. Mas assim mesmo fui perdoado. Tanto é que somos amigos até hoje, 32 anos depois.
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Cesar Cruz Abril/ 07
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