A gente nem liga

Fiquei pensando nas últimas notícias que ouvi sobre o terremoto na China e que acabaram de me atingir, via telejornal, aqui no sofá da sala. Engraçado... Dias depois de desabar o mundo por lá, soterrando e matando milhares de pessoas, as equipes de resgate ainda tiram corpos com vida de sob toneladas de escombros. Famílias inteiras ficaram debaixo de lajes, pedras, aço e mães ainda choram os filhos desaparecidos, mortos.
Eu disse, engraçado? É, disse, não que eu tenha visto alguma graça no fato, o que é engraçado não é o trágico acontecimento, engraçado, ou melhor, mórbida, é a maneira como a gente não se preocupa com as desgraças que atingem os outros.
Sim, ficamos tristes com o que houve, é claro, mas será que ficar triste não é pouco? Será que não deveríamos nos exasperar, chorar, sofrer? Sei lá! Claro que, de onde estamos, não podemos fazer muito pelos chineses, mas não será essa nossa não-exacerbação um reflexo da nossa maneira individualista de enxergar e tratar o sofrimento dos demais?
Quando o jornal da noite acabou, fui buscar um último pedaço de pizza na cozinha e aproveitei para dar um reforço na minha taça de vinho. De repente, nem me lembrava mais que existem chineses ou terremotos no mundo...
Sexta passada estive bem cedo no consultório do Edson, meu dentista, que obtura minhas cáries, trata meus canais e instala sinistras incrustações metálicas em meus molares há 21 anos.
Nessa manhã, enquanto ele preparava, com sonoros tilintares metálicos, suas temidas ferramentas, comentou como devia ser terrível o sofrimento de uma pessoa soterrada viva, aguardando uma morte que pode levar dias para chegar. Concordei com ele e lembrei-me do famoso conto de Edgar Alan Poe, “O enterro prematuro”. Nele Poe relata, de maneira única, o desespero de um homem que é enterrado vivo por engano e acorda dentro dum caixão, encerrado, esquecido e fadado a uma morte lenta, inimaginável. Leiam este trecho:
n nnnnnnnnnnnnnnnn“...podemos asseverar, sem hesitação, que nenhum acontecimento é tão horrivelmente capaz de inspirar o supremo desespero do corpo e do espírito como ser enterrado vivo. A insuportável opressão dos pulmões, os vapores sufocantes da terra úmida, o contato nos ornamentos fúnebres, o rígido aperto das tábuas do caixão, o negror da noite absoluta, o silêncio como um mar que nos afoga, a invisível, porém sensível, presença do Verme Conquistador, tudo isso com a idéia do ar e da relva lá em cima, a lembrança dos amigos que voariam a salvar-nos se informados de nosso destino e a consciência de que eles jamais poderão ser informados deste destino, e de que nossa desesperada sorte é a do realmente morto, essas considerações, digo, acarretam ao coração que ainda palpita um grau tal de horror espantoso e intolerável que a mais ousada imaginação recua diante dele. Nada conhecemos de mais agonizante sobre a terra...”
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Saí do consultório com a incômoda sensação de formigamento que nos acomete quando o efeito da anestesia começa a passar. Enquanto dirigia, minhas bochechas coçavam incomodamente e eu pensava nos milhares de chineses que estavam, naquele instante, suplicando pela morte, mas vivos e espremidos sob o severo concreto.
Deus que nos livre de uma desgraça destas! E que Ele também nos ajude a enxergar, com mais compaixão, os que padecem neste mundo e que, às vezes, estão tão perto de nós e a gente nem liga.
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Cesar Cruz
Maio 2008
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Um comentário:

Anônimo disse...

Oi César,

Bom dia,

Como sempre, gosto muito dos seus causos, contos e crônicas.

Muito gostoso lê-los, a leitura flui normalmente, muitas vezes "enxergamos" as cenas.

Sem corujice, mesmo.

A par disso, foi muito bom encontrar os escritos do Senhor Aloizio, havia me esquecido de como ele tinha facilidade para externar suas opiniões e pontos de vista. Já sei então por que você "desandou" a escrever.


Beijos

Carolie

22.5.08