O Chefão

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Trazido pelo mordomo, Doutor Phillip Edgard vinha altivo em sua cadeira de rodas descendo a suntuosa rampa circular coberta de mármore grego cinza e corrimãos góticos, até o átrio do piso inferior da cobertura corporativa triplex de sua propriedade. Vestia hobby de seda egípcia com pequenos losangos azuis e vermelhos e calçava sandálias de couro marrom-tabaco.
Pousada em seu colo e amparada pelas suas mãos semiparalisadas, estavam pires e xícara com chá de romã, seu predileto.
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No pavimento inferior, aguardavam-lhe seus dois filhos acompanhados dos fiéis Fernandes e Maurílio, advogados da família havia mais de vinte anos e aos quais Edgard, como gostava de ser chamado, era capaz de confiar a própria vida.
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Dr. Edgard, conhecido pelos funcionários como o Chefão, desejava muito aquele encontro. Tinha muito a dizer e, especialmente, a determinar.
Ao chegar em frente aos homens, fez um sinal de dedos para o mordomo que recolheu a xícara em seu colo e os deixou a sós após uma sutil reverência com o tronco..
Edgard colocou a cadeira eletrônica no modo manual e assumiu a pilotagem. Em silêncio foi seguido pelos demais. Atravessaram todo o saguão do pavimento intermediário e adentraram uma sala do lado aposto do átrio, que foi aberta por ele com um simples toque num dos botões do painel de controles posicionado no braço da cadeira.
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Entraram todos seguindo o chefão. Após um segundo comando de Edgard, luzes embutidas no teto tilintaram iluminando o recinto de reuniões e revelando além do magnífico mobiliário, obras de arte catalogadas e esculturas diversas em pedra sabão. A parede da direita, totalmente envidraçada, deixava vislumbrar a assustadora vista do 76º andar do Business World Tower, localizado na Cambridge Street, na área central de Boston, onde Edgard despachava e mantinha seu escritório pessoal havia quinze anos, desde o acidente que teve com seu helicóptero que o deixou parcialmente incapacitado.
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O homem avançou velozmente à frente dos outros com seu brinquedo comandado a dedos, até que num giro rápido, se posicionou à cabeceira da longa mesa escura. A cabeceira era o único lugar onde não havia sido colocada uma das pesadas cadeiras de espaldar alto, com assentos em veludo vermelho-sangue e esculpidas em carvalho norueguês no século XVIII, ornamentadas nas laterais por salientes tachas piramidais forjadas em bronze.
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As quinze cadeiras existentes ficavam dispostas ao longo das laterais da mesa de cerca de seis metros de comprimento e pesando quase quatro toneladas. Uma cadeira ocupava a cabeceira oposta. A peça era entalhada num único bloco, no mesmo material das cadeiras; os entalhes esmerados representavam raízes, folhas e flores de impressionante perfeição artística. “Uma verdadeira relíquia nórdica!”, como Edgard gostava de repetir.
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Os quatro homens sentaram-se timidamente à mesa, fazendo as pesadas cadeiras guincharem ao atritarem o chão de mármore trazido das jazidas da ilha de Kyos..Um garçom uniformizado pediu licença e adentrou o recinto trazendo, sobre reluzente prataria, café, biscoitos amanteigados e quatro garrafinhas de água Perrier. Serviu a todos rapidamente e saiu acompanhado pelo olhar casmurro do chefe.
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Assim que a porta se fechou, e antes que qualquer um tomasse a palavra, Edgard rompeu o silêncio falando muito alto e surpreendendo a todos:
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- Reuni os senhores aqui pois quero, ou melhor, exijo a minha liberação! Tirem-me daqui imediatamente!
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Os homens se entreolharam, pigarrearam, até que Douglas, o filho mais velho ponderou:
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- Papai, nós te amamos, mas não podemos...
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Foi interrompido brutalmente por Edgard:
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- Cale essa boca! Não quero ouvir sua voz, seu moleque! Troquei suas fraldas e agora você quer me dizer o que posso ou não fazer? Quem construiu isto tudo? Diga-me? Sabe quem foi que construiu este imenso império? Sabe quem lhe deposita aquela gorda mesada todo o mês, cretino?
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Os filhos se entreolharam assustados. Dos olhos de Douglas, lágrimas surgiam. Haviam acreditado que desta vez encontrariam o pai melhor, por assim dizer.
Edgard mantinha a expressão de um comandante que fez uma pergunta a uma tropa incompetente e, furioso, aguarda a resposta. Com as sobrancelhas arqueadas e o corpo ameaçadoramente inclinado para frente, fitava os quatro interlocutores, alternadamente, de forma acintosa.
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- Me respondam, vamos, idiotas! – exigia aos berros – Quem afinal manda aqui?
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Silêncio.
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Júlio, o filho mais novo, fez um discreto sinal com os olhos aos homens que os acompanhavam. Douglas, que apesar de mais velho era o mais frágil, mantinha as mãos na fronte tentando segurar o choro que ameaçava, incontrolavelmente, irromper.
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- Eu deveria desistir de vocês todos, seus incompetentes! – rugia o chefão - Eu já estou cheio de cada um de vocês e...
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O velho contorcia-se espasmodicamente, suas mãos deformadas crispavam sobre as coxas magras, e enquanto resmungava, parecia que seus olhos saltariam das órbitas. Seu olhar era feroz, seu rosto transformara-se numa máscara horrenda. .
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Então os dois homens que vestiam branco, levantaram-se suavemente e se encaminharam na direção de Edgard. Enquanto se movimentavam, tentavam manter as expressões serenas e os gestos suaves.
Um deles sacou da pochete presa à cintura, uma seringa pronta para ser usada. Segurando-a contra a luz, aplicou com o indicador um peteleco seco que fez minúsculas bolotas de ar emergirem do líquido medicinal.
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Edgard começou a gritar e a se debater, mas, num bote rápido, foi contido pelos enfermeiros:
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- Não se atrevam desgraçados! Vocês trabalham comigo há anos! Demitirei todos vocês, seus crápulas, me larguem! Esta companhia não é nada sem mim!
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- Calma, papai, é para o seu bem, amamos você – contemporizou Douglas, secando as lágrimas com a manga da camisa.
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Ambos os enfermeiros seguraram-no e a injeção foi aplicada no braço esquerdo em um só golpe, rápido e experiente. Edegar ainda tentou lutar, derrubando duas das banquetas de lata que caíram no piso frio de ladrilhos azuis, emitindo ruídos metálicos que ecoaram pelo frio e mal iluminado refeitório, que em ocasiões como aquela, fazia às vezes de sala de visitas.
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Em poucos segundos, adormeceu e foi recolocado cuidadosamente na cadeira de rodas onde se lia na parte de trás do encosto plástico encardido: “Ala EZQ – Unid.3”.
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Os funcionários partiram levando-o com os braços largados que quase tomavam as grandes rodas de borracha, a cabeça ia tombada para um lado. Por causa da luta corporal travada com os enfermeiros, o avental amarrotado e com as golas desajustadas agora cobriam parte de suas orelhas. Por fim, Edegar desapareceu pela porta de vai-e-vem, inconsciente.
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Os dois irmãos deixaram o refeitório cabisbaixos, passaram pelo segurança fardado que os cumprimentou com um leve aceno de cabeça e destravou a porta de aço liberando-os. Acessaram o pátio externo com seu chão de brita.
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Distribuídos pelo pátio, outros quatro pequenos prédios, cada um com três andares, compunham o complexo. As construções haviam sido dispostas de maneira a deixar uma grande área central livre, ocupada por um estacionamento de veículos e por uma praça de convívio e banho de sol.
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Num dos diversos bancos de cimento espalhados pela praça, podia-se ver uma senhora de cabelos longos e brancos sentada conversando sozinha; mais ao longe, dois homens, em pé, dialogavam e gesticulavam moderadamente com expressões graves; se não fosse pelos aventais verdes, pareceriam executivos discutindo assuntos relacionados a negócios. Por toda a praça, seguranças e enfermeiros fiscalizavam cada movimento de forma bastante discreta.
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Os rapazes entraram no carro em silêncio, cada um mergulhado em seus pensamentos. Enquanto Julio dava a partida, Douglas, de olhos inchados, deu uma última olhada na fachada do prédio onde seu pai ficara. Sobre a porta de entrada, uma placa branca com letras pretas exibia o aviso:
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“Unidade 3 – Esquizofrenia - Delírios Paranóides - Transtornos Delirantes - Distúrbios Alucinógenos”
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Cesar Cruz
Julho/ 2007
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2 comentários:

Anônimo disse...

Gostei. Bem escrito como sempre. Mantém o suspense no bom equilíbrio narrativo.
Jayro

Pedro Luso de Carvalho disse...

Caro Cesar,

Aí está mais um bom conto, que atende os três pontos essenciais, exigidos por esse gênero da literatura, quais sejam: relato curto com rapidez de ação; reduzido número de personagens, e concentração de tempo e espaço; reduzido número de eventos.

Parabéns.

Um abraço,
Pedro