O circo dos horrores

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publicado no Jornal do Cambuci & Aclimação*

Edição nº 1089 - sexta, 25 de julho de 2008.

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Uma antiga lenda conta que, numa certa noite, numa pequena cidade, um misterioso circo aparece sem aviso. Os moradores, animados, correm assistir ao espetáculo; vão entrando na tenda, se sentando e o show começa. Sob os gritos de horror da platéia que, paralisada pelo pânico, não consegue se mover do local, surgem o homem elefante, a mulher do bucho aberto, o garoto com duas cabeças, o domador de dragões, o demônio trapezista, a alma penada no globo da morte e o centauro, meio homem meio cavalo. Tamanhos são os horrores que, reza a lenda, olhos saltam fora das órbitas e cabelos se arrepiam. Ninguém por ali sabia, mas aquele, era O Circo dos Horrores.

Por aqui, temos o nosso próprio circo dos horrores. Nele vemos atrações de todos os tipos e espantos: o menino morto pela polícia, os corruptos rasteiros, a crueldade obscena dos marginais, a Lula barbada, os políticos que escarnecem do povo, a justiça facciosa, o pai que joga a filha pela janela, o buraco que engole o chefe de família, a iniqüidade explícita dos poderosos etc.

A diferença é que, por aqui, ninguém mais se espanta. O nosso circo, diferentemente do da lenda, não desaparece na madrugada deixando todo mundo sem saber se aquilo aconteceu mesmo ou não. Este aqui é real, perene, perpétuo e recorrente. Seus espetáculos são diários, sempre com eletrizantes e espantosas atrações!

Nossos olhos, já treinados para desgraças, não saltam mais das cavidades; nossos cabelos não mais se eriçam. Tornamo-nos habitués do descaso, do infortúnio, da calamidade, da miséria, da desgraça, da angústia, do despropósito, das desventuras e da privação. Nada mais nos assusta debaixo deste sol!

Somos prisioneiros desse esmorecimento pegajoso e dessa letargia gosmenta na qual estamos imersos, que, como areia movediça, nos suga um pouquinho mais cada vez que tentamos nos debater. Como zumbis de olhos vidrados e corpos rijos, somos tragados para o fundo escuro do poço da resignação apática que nos embasbaca e estupidifica.

. Completou um ano o acidente aéreo da TAM, que incinerou, vivas, 200 pessoas - numa espécie de 11 de setembro sem Bin Laden - aqui, pertinho da nossa casa. Lembro-me desse dia. Era começo da noite e eu estava em casa tomando uma sopa antes de sair com minha mulher para assistir a uma peça de teatro na companhia de alguns amigos. De repente, o plantão do jornal entrou interrompendo a programação com aquela musiqueta tão conhecida. A imagem que surgiu na telinha mostrava labaredas, bombeiros e pedaços de um avião. De dentro da minha poça de lama existencial, olhei aquilo e lamentei um lamento monótono, indolente. Em seguida, mergulhei um naco de pão na sopa, levei-o à boca e pensei, ainda mastigando: “o trânsito estaria ruim por conta disso?” Afinal, tínhamos teatro.

Enfim, saímos de casa. No caminho, entre outros assuntos, falamos do ocorrido. Engraçado pensar que, nem por um instante, cogitamos em não ir à peça porque alguns poucos seres humanos estavam sendo calcinados dentro de um tubo metálico bem naquele momento. Não, isso não, afinal... tínhamos teatro! Chegamos. Encontramos a turma, o assunto mudou. Passamos a falar do frio, da fila que estava grande, das reservas erradas, de onde estaria o Beltrano etc. Pouco antes das portas se abrirem e ocuparmos nossos lugares na audiência, comentei com um amigo:

- Você viu o avião que caiu?

Ele: - Vi sim.

Eu: - Que coisa, né?

Ele: - É, nossa.

Eu: - Deu trânsito pra você?

Ele: - Não, vim de outro lado.

Eu: - Abriu, vamos senão pegam nossos lugares.

Entramos. Entorpecidos. Um observador atento, certamente repararia em nossos olhos vidrados e em nossos corpos enrijecidos.

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Cesar Cruz

Julho 2008

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. * créditos dos parceiros no rodapé deste blog. .

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9 comentários:

Anônimo disse...

Oi, César.

Acho que já havia lido essa crônica...
Parabéns pela participação no jornal!

Beijo, Tânia
25.7.08

Anônimo disse...

Oi Cesar,

Acho que eu já tinha lido na ocasião em que foi escrita, um ano atrás. Como o noticiário chamou a atenção para o acidente que aconteceu há um ano, o texto veio bem a calhar!

Parabéns pela primeira publicação em jornal!!! Vou avisar minhas vizinhas, elas vão adorar.

bjs, Martha
25.7.08

Anônimo disse...

Legal, meu amigo.
Agora quero ver o jornal.
Abraço
Gabriel
25.7.08

Anônimo disse...

JÁ TINHA LIDO ESSE !! VC MUDOU ALGUMA COISA??
O ASSUNTO É BEM LEGAL PARA UM JORNAL...
OUTRA COISA, VC REPETE 2 VEZES A MESMA COISA "O MENINO MORTO PELA POLICIA" E A "POLICIA QUE MATA CIDADÃOS"; NO MESMO PARAGRAFO, SEI LA... FICO MEIO QUE O MESMO ASSUNTO.
ABRASSS!!
PJ
25.7.08

Anônimo disse...

Parabéns, Cesar! Você é competente. Vai longe com isso!
saudações
Ricardo
25.7.08

Anônimo disse...

Parabéns pelo artigo, César. Muito oportuno e verdadeiro. As contingências da vida nos deixam mesmo anestesiados.
beijos,

Raquel
(sou moradora do Cambuci e leitora do jornal do bairro onde escreves)
29.7.08

Anônimo disse...

Amigo articulista: concordo contigo em gênero, número e grau. O povo esta tão abatido que nem percebe mais o caos em que estamos! No caso do acidente da Tam, a mácula sobrou SÓ para as famílias. Quem mais se preocupa 1 ano depois? você? eu? ninguém, amigo. Ninguém...

sds Ulisses

obs. você não me conhece, mas li sua coluna da semana passada. gostei do seu blogue tambem. vou frequentar.
29.7.08

Anônimo disse...

Somando todo o custo dessa pantomima, caímos na real que preço do teatro sai caro à platéia, que financia a peça.

Falamos depois.
Um abraço.
Ale
29.7.08

Anônimo disse...

Excelente artigo César! muito apropriado para "celebrarmos" esse triste aniversário.

Anelson - Liberdade, capital
31.7.08