Pó, graxa e infância

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Crônica publicada no Jornal do Cambuci & Aclimação*
Edição 1122 - março de 2009.
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Publicada também no programa "Conte sua História de São Paulo" da Rádio CBN, sábado, dia 25 de julho de 2009. . Narrada na voz de Mílton Jung e com produção especial! (Ouça-o sem sair do blogue. Acesse-o na coluna à direita, junto ao logo da Rádio CBN).
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Fui provocado assim que pisei na calçada:
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- Esse pisante aí ta dando medo, hein tio?
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O menino, de uns oito anos, sotaquezinho e jeitão cariocas, surgiu sei lá de onde. Era como se ele estivesse à minha espera atrás do tapume e, agora, enquanto eu descia a rua em direção ao meu carro, ele seguia colado em mim, lado a lado, me olhando e esperando uma resposta à sua provocação.
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“Mas o que foi mesmo que ele disse?” Só então atinei com as idéias: “Pisante, é claro!” Ele se referira ao meu sapato. Estanquei o passo e olhei para baixo. O garoto tinha razão, estavam mesmo de dar medo. Nojentos para dizer a verdade. Eu havia acabado de sair de uma visita do tipo mais imundo que conheço: visita a canteiro de obras; e aquela era mesmo uma obra sujíssima.
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Não que existam obras lá muito limpas, mas essa era da pior espécie: construtora pequena, pouco afeita às regras de segurança, organização e limpeza mínimas exigidas num canteiro. E como agravante da minha situação, eu tinha acompanhado o Mestre quinze andares construção acima (e depois, abaixo) por escadas inacabadas, repletas de armadilhas, vigas pontiagudas que ameaçavam furar meus olhos, tábuas em balanço, precipícios sem proteção e pó, muito, muito pó.
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- O que tem meu sapato? – indaguei para testá-lo.
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- Pô, brother! Tá nojento!
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Não dava mesmo pra negar.
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- É... você tem razão – concordei -... é que saí da obra e...
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- Vamos engraxar, então, tio? – interrompeu-me, prático e determinado.
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A densa poeira parecia ter oxidado o meu cérebro, pois só então reparei que o menino carregava uma caixa de engraxates pendurada em um dos ombros. Estava tudo explicado. Era um engraxate mirim. Coisa raríssima de se ver, assim, solitário, numa rua qualquer, já que hoje eles trabalham em grupos, bolsões organizados, muitas vezes com o amparo de adultos. Mas esse era independente e autônomo! E muito perspicaz! Eu tinha que admitir que a jogada de marketing do guri era de fato muito boa, ele merecia crédito! Seria uma desonra da minha parte resistir. Além do mais, meus pisantes estavam mesmo de dar medo.
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- Eu topo. - disse. E quem é o artista da graxa, você? – desafiei-o, com um falso ar de desdém.
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- Opa, tio! – admirou-se ele – Você vai ver só a minha isshcova nerrrvosa!
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- Vamos ver então!
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O problema é que eu não tinha onde me sentar, e não estava disposto a me postar em pé, recostado no muro duma casa, em plena calçada, como ele tinha me sugerido.
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A única possibilidade seria usarmos o meu carro. Abri a porta do passageiro e sentei-me virado para o meio-fio, com os pés apoiados, um no chão, outro sobre a caixa de madeira.
Nos minutos que se seguiram, fiquei ali, na incômoda posição de um rei com um súdito prostrado aos seus pés.
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O delgado e ágil Elton (era esse o seu nome) esmerou-se em velozes estaladas de flanela e ritmados giros de escova. Obediente às eventuais batidas secas que soavam na caixa, fui alternando o pisante esquerdo e o direito sobre o apoio. Elton usava uma garrafinha plástica para borrifar sobre o couro, vez por outra, uma agüinha misteriosa. Voltava então a “flanelar” o calçado, extraindo dele um brilho quase metálico.
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Enquanto trabalhava, me contava sua vida. Morava com a mãe e dois irmãos na periferia, todos mais velhos. Vieram do Rio, havia dois anos, tentar a sorte em São Paulo. Um dos irmãos era ladrão e estava preso. A mãe sentia um grande desgosto por isso.
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Os outros dois irmãos, uma menina de onze anos e um rapaz de dezoito, moravam com eles. Também trabalhavam e entregavam religiosamente todo o dinheiro recebido à mãe. Fiquei curioso para saber em que uma menina de onze anos poderia trabalhar, mas achei melhor não perguntar, já que o próprio Elton, bem mais novo, vivia pelas ruas, curvado aos pés de adultos, como eu.
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Ele me contou ainda que guardava parte do que ganhava para comprar uma moto quando fizesse dezesseis anos. Tentei lhe explicar que moto só se pode pilotar depois dos dezoito, mas ele me disse que no seu bairro, com quinze, dezesseis anos, todos já pilotam uma.
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Terminado o serviço, fiquei surpreso ao saber que aquele belo trabalho me custaria apenas três reais. Dei-lhe dez, não por generosidade, mas por puro merecimento. Sugeri a ele que guardasse o troco para a compra da moto, mas o fiz prometer que só o faria aos dezoito anos e compraria também um bom capacete. Ele concordou com um sorriso maroto. Fiquei na dúvida se cumpriria mesmo a promessa.
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Enquanto eu tirava o carro da vaga, fiquei olhando-o pelo retrovisor. Voltou para a frente da obra e se encostou no tapume. Dali a pouco, certamente outro incauto deixaria a obra e seria provocado pelo menino: “Esse pisante aí ta dando medo, hein tio?”.
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Cesar Cruz
Out/ 08
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* créditos dos parceiros no rodapé do blogue.
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12 comentários:

Andre disse...

Esse aí tem espírito de vendedor! Eu também, detesto dar esmola, mas quando o sujeito faz por merecer, pago a mais!

Anônimo disse...

Pô Cesinha! Tava indo dormir e pesquei essa! Bôa a beça! Valeu! Eta cara pra inventar causo!
abzzzzz
Marcelo

Anônimo disse...

Veja voce amigo! Que país é este? onde crianças de 8, 11 anos tem que trabalhar? Elas deveriam estar brincando e estudando, que nem os filhos da gente...
Boa história. Mostra o absurdo do fato sem precisar escancará-lo. O absurdo está na simplicidade da sua história, na sutileza. Parabéns.
Edson

Anônimo disse...

Gostei! Leve, quase etérea. Você acertou nas cores, amigo.
Abraço
Gabriel

Anônimo disse...

Hi!

Ler isso me deixou mais transtornada.. mas obrigada, isso é bom no caso de uma Pedagoga! rs!

E sabe, antes fosse um trabalho com graxa, antes os irmãos trabalhassem pra ajudar a mãe, antes esse menino realmente pudesse ter uma moto, se não aos 18 aos 16 mesmo... Antes essa história fosse possível de ver!

Trabalhar onde trabalho, vendo o que vejo, ouvindo o que ouço, sentindo o que eles não sentem, conversando com quem converso... volto a dizer: antes fossem meninos da graxa... só da graxa... antes fossem!

Ótimo texto! Beijo Mara Ruzza

Anônimo disse...

legal!!! Esse menino vai longe, hein...

bjos

Silvana

Anônimo disse...

Brother escritor:
Show! Gostei pra carai!

Bjs no anus
Marcos (Marcão da Healthy)

Liga aí pra nóis enxugar umas.
Cel xxxx-xxxx

Anônimo disse...

ué? cesar porque essa cronica não esta no jornal? este seu site é das cronicas que vc poem lá no jornalzinho certo?
então porque essa aqui tão legal nao esta lá?!?!
bjinhos!!
Deise - jardim da glória

Anônimo disse...

Saudações escritor! Gosto do que escreves!
Mas que merda de país filho da puta este nosso! Tenho 53 anos e vejo crianças na rua desde que nasci, logo morrerei sem ver a solução desse problema, que deverá se perpetuar indefinidamente. Que país é este?!
Romero, Aclimação

Anônimo disse...

Bonita construção de "Pó, graxa e infância" que li hoje no Jornal do Cambuci. Parabéns.

A propósito, tenho um irmão, o mais velho dos 7 filhos, hoje com 71 anos, com sequela de Paralisia Infantil, que há mais de 40 é engraxate. Uma criança, mas um amor de pessoa. Sua vida é sair com um guarda-pó cinza (ainda se lembra dessa expressão? expulsa de nossos costumes, já que o asfalto acabou com o pó das estradas) e ficar sentadinho num banquinho, junto a uma monumental cadeira de engraxate no requintado Pálace Hotel, em Poços de Caldas, MG, à espera da freguesia.

Faça chuva, faça sol, sai muito cedinho, embora hóspede granfino não levante cedo, e no Hotel permanece o dia todo. Fica feliz da vida quando alguém resolve dar um trato no seu pisante. Se recebe gorjeta, fica todo prosa, que poucos entendem, pois o seu lado esquerdo ficou afetado com a Paralisia, incluindo a língua que é um pouco travada.

Mas é bem falante com quem lhe dá corda. Depois de uns poucos minutos de boa vontade, dá para entender perfeitamente o que ele diz. E ele gosta de prosear. Tem muitos amigos. Conhece meia Poços de Caldas e faz questão de comprimentar a todos os conhecidos. Uma criança feliz num corpo marcado pela idade avançada.

Bom fim de semana junto aos seus.

Abraço
Profº Jayro

LUA DE LOBOS disse...

estória deliciosa e muito bem escrita :)
parabéns ! eu quase senti o cheiro da graxa e ouvi o estalar da flanela
xi
maria de são pedro

Neylinha disse...

Não comento mas leio todos os seus textos e a cada um uma surpresinha. Esse me deixou uma ponta de tristeza, mas a vida é assim mesmo, não podemos mudar tudo , né?
abraços
E beijocas na filhota linda!!