A sua imprevisível chegada

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"O homem não sabe o seu tempo; assim como os peixes que se pescam com a rede maligna, e com os passarinhos que se prendem com o laço, assim se enlaçam também os filhos dos homens no dia mau, quando a calamidade se arremessa sobre eles de súbito"
Eclesiastes - 9:12
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O despertador soou às 4hs da madrugada sob o travesseiro do Jorge. Sem abrir os olhos ele desligou o aparelho antes que o som acordasse a todos. Mais um dia estava amanhecendo, ou melhor, começando para ele; começando ainda na escuridão da madrugada.
Jorge levantou da cama naquele dia absolutamente comum, uma quinta-feira como outra qualquer. Calçou seus chinelos de tiras que ficavam no sopé da cama e foi para o banheiro se barbear. Um dia que poderia ser qualquer dia. Como aliás era. Mas havia uma única diferença. Uma importante e derradeira diferença: este era o último dia do Jorge. Apesar de não saber, morreria nesse dia, jovem, aos 39 anos.
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Fazia frio lá fora no quintal, onde ficava o banheiro. A casa era humilde, Jorge e Maria a haviam construído quinze anos antes, quando se casaram e quando ela estava grávida do primeiro dos quatro filhos.
Jorge entrou no cubículo, fechou a porta com o trinco e puxou a cordinha que pendia de uma lâmpada e a fazia brilhar. Olhou-se no pequeno espelho e achou que estava bem, com a pele boa e com uma aparência jovial. Sentiu-se feliz. Uma pena, pois acabaria em breve.
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Escovou os dentes e fez a barba antes de voltar ao único cômodo da casa, que era dividido em duas metades por uma grande colcha antiga que pendia do teto e fazia as vezes de uma parede, separando o recinto em 2 quartos: o do casal e o das crianças.
Além deste cômodo havia uma cozinha interligada e o banheiro no quintal. A casa era isso. Nem laje tinha. Só isso e nada mais, mas era própria! Motivo de orgulho para Jorge.
Seria a única coisa que ele deixaria para os seus, pois a corda já estava trançada e o cadafalso travado.
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Como todo dia, colocou o uniforme em silêncio e saiu para trabalhar sem comer nada. Não conseguia comer tão cedo. Gostava mesmo era de tomar café no terminal Sapopemba com os outros motoristas, antes de saírem cada um dirigindo seu ônibus para percorrer seus percursos habituais.
Jorge sentia-se envaidecido, pois levava no bolso um pequeno boneco de plástico embrulhado pela Maria para presente. Mandaria para o pequeno Washington, menino bonito e bonzinho, filho de um motorista amigo seu e que faria três anos naquele dia.
Justo o dia em que Jorge seria desligado da tomada, deixando mulher e filhos inconsoláveis e desamparados.
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Chegou ao terminal e reuniu-se a um grupo falante de homens, todos vestidos de azul. Tomou seu café. Falou com um e com outro, riu de uma piada.
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Entregou cerimonioso o presentinho do pequeno Washington ao amigo. A imagem de um homem feliz, porém incauto, pois não sabia que seria definitivamente interrompido dali a pouco.
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Foi à sua plataforma, conferiu o carro com prancheta e caneta em mãos, por dentro e por fora, seguindo o procedimento que repetia diariamente havia dez anos, desde que começou a dirigir para a companhia. Após a vistoria sentou-se no seu assento e foi cumprimentando sorridente os passageiros que subiam. Fazia tudo isso alegremente, como era seu estilo, sem saber que a implacável guilhotina já estava armada para ceifá-lo em instantes, assim, sem aviso prévio.
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Saiu do terminal com o ônibus cheio de passageiros. Enquanto manobrava para pegar o acesso à avenida ia falando alto com o cobrador sobre futebol e olhando-o pelo retrovisor. Era homem de sorriso fácil.
Só não podia imaginar que no dia seguinte, neste mesmo horário, estaria dormindo dentro de uma caixa de madeira, no absoluto silêncio e na derradeira escuridão, sob uma laje pesada, absolutamente só. Emudecido para sempre.
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A manhã transcorreu normal, como uma manhã qualquer. De uma quinta qualquer. Poderia ser um dia comum, mas não era. A curva da estrada se aproximava, mas Jorge não sabia. Não sabia que morreria como o condenado à morte de Victor Hugo: “... naquela tarde às 4hs...”.
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Entre paradas, avanços e solavancos mais um dia ia se esvaziando. No dia seguinte, Jorge teria a prestação do televisor para pagar. Era uma prestação alta para os rendimentos da família, mas tinha valido a pena. Maria e as crianças tinham ficado tão felizes!
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O golpe final em sua existência estava por vir, mas Jorge, ingênuo, nem desconfiava. Não fora avisado.
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Pensava na TV e na felicidade da Maria. Lembrava feliz do sábado em que o caminhão da loja parou na porta de casa e buzinou. Da expressão de espanto e felicidade da mulher, com as mãos na boca e os olhos arregalados, quando dois entregadores segurando uma enorme caixa gritaram do portão se ela era a Dona Maria do Socorro, pois traziam uma entrega do senhor Jorge para ela. Lembrava disso, no silêncio e na solidão da sua atividade de transportador de gente.
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Parou o ônibus no semáforo. O último semáforo e a última freada de Jorge. Dentro de um minuto não existiria mais.
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Debruçou-se no grande volante aguardando o verde. Enquanto observava os camelôs e os pedestres na calçada à sua esquerda, ia tamborilando com os dedos no plástico ensebado.
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A trezentos metros dali, do lado leste da avenida principal que ele pretendia cruzar, um homem dentro de um bar puxara um revólver de uma sacola plástica e acabara de disparar cinco tiros em dois jovens que tomavam cerveja no balcão. Jorge não sabia nem tinha como saber de nada disso, mas para ele já não existia mais futuro.
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Agora só se lembrava da Maria e das crianças rasgando enlouquecidas a caixa de papelão do televisor. Um sábado feliz aquele! Jorge sorria e pensava que tinha que pôr a vida pra rodar mais rápido, arrumar um jeito de ampliar a renda em casa, para poder dar outras alegrias como aquela aos seus.
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O que Jorge não sabia é que, enquanto ele matutava e batucava o volante, uma bala perdida voava em sua direção, girando sobre seu próprio eixo a setescentos e cinquenta quilômetros por hora, e, desgraçadamente, sem obstáculos à frente.
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Seu destino estava traçado. Todos seus sonhos estariam inexoravelmente sepultados dentro de um segundo.
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Jorge pensava nas crianças e em como as amava. Recordava ainda daquele dia tão feliz. Pensava, inocente, que muitos dias felizes como aquele ainda estariam por vir... Sentia-se animado, cheio de planos. Pensava nisso quando o farol ficou verde...
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Pensava nas crianças e na Maria quando uma picada aguda, um calor abrasador o atingiu atrás da orelha. Pôs a mão automaticamente no local. Em uma fração de tempo, passou subitamente pela sua mente que talvez fosse uma espécie de fogo. Imaginou, num lampejo de pensamento, que não chegou a passar pela consciência, que alguém estaria encostando um fósforo quente atrás do seu ouvido. Teve a intenção de se virar para ver, protestar, seria uma brincadeira talvez...
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Antes do escuro total, Jorge ainda viu, pela última vez, o doce sorriso da Maria ao ver o televisor novo funcionando.
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Cesar Cruz
Junho 2007
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5 comentários:

Anônimo disse...

puta que pariu, cara!!!!!! Maravilhoso esse causo!!!!
Valeu.
Ciro

2.9.08

Anônimo disse...

Nossa César! muito forte essa história. Até arrepiou!
Meus parabéns, Daniel Tostani
SPaulo, SP
d_tostani@gmail.com

José Carlos disse...

Cesar,
Absolutamente impactante e emocionante este seu causo, sobre a morte. A introdução, pescada da Bíblia, é perfeita, perfeita! É essa a vida da gente, Cesar, a realidade humana. Gosto de um poema do Drummond, menos bíblico e mais contemporâneo, mas que pode ser entendido da mesma forma:

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra

José Carlos Rocha - Cambuci SP

Anônimo disse...

meu Deus Cesar que coisa mais triste!!! Mas é como a vida da gente, né? O que se há de fazer? Só me resta torcer para que demore para a calamidade se arremessar sobre mim...

bjos
Amanda
leitora do JCambuci e do seu blog.

Pedro Luso de Carvalho disse...

Caro Cesar,

O teu conto começa bem, já a partir das 4hs da madrugada, quando Jorge é acordado para o trabalho, e, na seqüência, o leitor toma intimidade com o personagem, homem simples, um trabalhador preocupado com sua família.

Essa forma de apresentar Jorge ao leitor deixa-o preocupado com seu destino, já que logo fica sabendo, pelo narrador da história, que esse seu novo conhecido terá uma morte trágica no trajeto que faz na direção do ônibus.

Em que pese o leitor saiba como será o término da história, não fica desinteressado pelo seu desfecho, ao contrário, quer saber como será sua a morte, não por sentimento sádico, mas, por compaixão para com esse chefe de família, que é mais um trabalhador pobre, dentre tantos que conhecemos no nosso dia-a-dia, um herói do nosso cotidiano.

No fim da história, o leitor sensível certamente se compadecerá do pobre Jorge e de sua família, que ficará desprotegida, e, também, numa avaliação serena, dirá: eis uma história muito boa.

Parabéns.

Um abraço,
Pedro.