A violência por trás da violência

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Crônica publicada no Jornal do Cambuci & Aclimação*
e na Gazeta do Ipiranga*
outubro de 2009.
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Aconteceu sexta passada, dia 25 de setembro. Foi no Rio de Janeiro, palco de constantes violências. Após ter sido perseguido pela polícia, o fugitivo, Sérgio Ferreira Pinto Junior, de 24 anos, acaba adentrando uma farmácia e fazendo a dona do estabelecimento, Ana Cristina, de 48 anos, refém. Durante a fuga, Sérgio fora baleado na barriga, mas ainda mostrava forças para, usando um braço, imobilizar a mulher com uma gravata no pescoço e ameaçá-la com uma granada que trazia na outra mão.
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A polícia cerca a área. A turba, sempre sedenta por espetáculo, se aglomera. Começam as negociações. A situação é tensa, o rapaz ameaça detonar a granada. Após quase uma hora de conversa, fica clara a impossibilidade de se dar seguimento às tratativas. A desgraça é iminente. O bandido vai explodir tudo. Frente a isso, o chefe da polícia autoriza, com um imperceptível sinal, o atirador de elite da Polícia Militar, já posicionado a distância e treinado em tiro de precisão, a disparar contra o sequestrador. A precisão do tiro é incrível. O projétil de fuzil corta o ar num milésimo de segundo e atinge em cheio a cabeça de Sérgio, fazendo seu boné voar pelos ares. O jovem desaba no chão, morto. A Rede Globo, ave de rapina, sempre ávida para manter a liderança na audiência, mostra tudo. Cada inescrupuloso detalhe.
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Eu, que já havia ouvido o relato pelo rádio do carro no dia anterior, pude então presenciar, em sua indescritível crueza, em imagens coloridas e bem focadas, enquanto almoçava um prato de macarrão no sofá da sala no início da tarde de sábado.
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Como num duelo no Coliseu, acabava-se assim, com aplausos, assovios e uivos da multidão enlouquecida, mais um sequestro. Sucesso! A exclamação é essa. Após a apresentação da execução do jovem Sérgio, foi exibida uma entrevista com a refém e sua família, com o relato emocionado de cada familiar e dos instantes de agonia pelos quais passaram. Apesar de traumatizados, todos estavam aliviados com o final feliz.
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Antes do encerramento da reportagem, uma surpresa, preparada pela sensível direção do programa. A porta se abre e entra inesperadamente na sala, em meio à entrevista, o major Busnello, o atirador de elite. O major, que ao invés de um fuzil empunhava dessa vez um delicado maço de flores, vinha a convite da produção para conhecer Ana Cristina, que chorou e se abraçou a ele, agradecendo pelo bom serviço prestado, pela boa pontaria... Afinal, se não fosse por sua presteza, ela não estaria ali, junto de sua família. Um momento de alívio, de gratidão, de festa.
Assim que a matéria terminou, a Vanessa, que estava ao meu lado no sofá, desabou num pranto copioso e dolorido. "Ficou sensibilizada, coitada" - pensei. Tentei consolá-la dizendo que ela não devia se entristecer, visto que tudo acabou bem: bandido morto e cidadã inocente salva.
O que ela me falou a seguir, com os olhos cheios d' água, me fez calar, envergonhado, com a boca cheia de macarrão.
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Encerro esse causo com as palavras da minha jovem mulher, que apesar de ter apenas 26 anos, continua a me surpreender com a humanidade com que enxerga certas dimensões (para mim muitas vezes imperceptíveis) do trato humano.
"Cesar, você acha mesmo que acabou bem? Acabou bem para quem? Alguém pensou que esse rapaz deve ter uma mãe, que pode ter assistido a esse programa? E se ele tinha 24 anos, pode muito bem ter um filho de 6, 8 anos; uma mulherzinha jovem... Gente que não tem culpa nenhuma de ele ter ido pelo caminho errado na vida... Você acha que esses inocentes mereciam ter visto à sua execução pela TV, com toda essa festa, essa gente brindando, trocando abraços, flores... Você percebe a violência que se esconde por trás da violência? Isso vai marcar uma criança, uma mãe, uma família para sempre... Além do mais, eles estão comemorando o quê? Que tiraram a vida de um jovem? Você percebe a barbaridade?"
Eu não tinha percebido...
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Cesar Cruz
Setembro 2009
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*crédito dos parceiros neste blogue.
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10 comentários:

Anônimo disse...

faço minhas as lágrimas e as palavras da sábia Vanessa, pois na ocasião refleti exatamente igual a ela, e para finalizar:

O método da não-violência pode parecer demorado, muito demorado, mas eu estou convencido de que é o mais rápido.

Mahatma Gandhi


xara
ipiranga

Tais Luso de Carvalho disse...

Oi, Cesar, a Vanessa tem razão, porém todos nós também dizemos a mesma coisa num caso desses, que o ‘final foi feliz...’ O que tem a ver a coitada da moça, dos filhos e do marido com ações tão violentas? Para eles foi um feliz final. Porém para o outro, não sei que final deveríamos pedir. Mas de qualquer maneira a violência está demais. Foi-se, ninguém mais pega.

Também assisti ao vídeo, rodado milhões de vezes. Como a gente assiste, não? É o hábito que temos de ver inúmeros jornais, e que mostram o mesmo vídeo milhões de vezes.

Também me emocionei ao ver a moça recebendo as flores e agradecendo... Nossa, sem explicação!

Bj
tais

Dalinha Catunda disse...

Cesar,
Os bandidos e a polícia medem forças. No meio deste confronto a população é quem sofre.

Eu que não gosto de ver cenas violentas, acabei vendo, diante de tanta repetição.

Infelismente a maioria da população, achou que a polícia marcou um gol de placa, salvando desta vez a refén.

As vezes temos um lampejo de sensibilidade, mas quando nos lembramos que estamos criando uma geração de covarde, a sensibilidade desaparece e vem a revolta.

Quando o filho sai de casa a única coisa que pedimos e para ele não reagir e entregar tudo, se for assaltado. com isso entregamos nossos brios e nos acovardamos diante da violência

Estão assassinando o pouco de sensibilidade que nos resta.

Um abraço,
Dalinha

Magali Neudís disse...

Olá Cruz,

Muito legal teu blog! Gostei muito desse artigo sobre o seqüestro. Pra falar a verdade eu também nao tinha percebido! A gente fica cego, né? nao enxerga como certas coisas que estao escondidas no meio do obvio, que vem pra cima da gente arrastadas no meio do tsunami do dia a dia, são tão evidentes. Parabéns para sua esposa, tão jovem e tão sábia.

Bjs
Magali
Z/s

Gabriel Fernandes disse...

Oi, meu amigo.
Estou realmente comovido, profundamente emocionado. Os comentários são realmente bastante sensatos e feitos por pessoas muito sensíveis.
Gostaria de saber se as reações de indignação e piedade seriam as mesmas se as pessoas estivessem chorando diante do caixão de um filho brutalmente trucidado por um facínora do naipe desse lixo do Sérgio.
Desculpe-me, mas é muita hipocrisia. É ser politicamente correto demais. É se deixar patrulhar demais. É fácil filosofar sobre as dores dos outros.
Abraço,
Gabriel

Anônimo disse...

O que a comentarista Dalinha disse do gol de placa é verdade!!!! eu mesmo achei que foi um gol de placa mandar bala naquele fdp daquele cara. nisso o Gabriel tem razão. se fosse com o filho da gente, com a mulher da gente ninguem ia ter sensibilidade!!!!!

entendi tambem que o artigo é na linha do que sofre quem é pai, mae e filho de quem é bandido......conheço a mae de um sujeito que cumpre pena na penitenciaria e vejo como é a vida dela!

tenho dó dos entes e nao do bandido!!!! mesmo porque eles nao tem dó da cidadão!!!!!!!!

abraços
Otávio
Aclimação

Ivo disse...

Acho que o cara é um filho da puta mesmo. Um a menos! Mas a pergunta que o artigo levanta é: devesse mostrar isso na TV pra ganhar audiencia? Agride a todos sem necessidade. Essa é minha opinião.

Ivo (Campinas,sp)

Pedro Luso de Carvalho disse...

Pois é, Cesar, parece que a violência que toma conta das nossas cidades não tem fim.

Pelo menos enquanto os responsáveis pela administração pública não tratarem de assuntos urgentes e pertinentes para acabar com essa desordem, como, por exemplo, dar maior atenção às crianças que vagam pelas ruas pedindo esmola, roubando, se entupindo de crack e outras drogas, ou então trabalhando, quando deviam estar nos bancos escolares.

Esse seria o trabalho de fundo, para evitar a formação de um sem número de criminosos.

Também, o Governo deveria dedicar mais atenção para a difícil tarefa de fazer com que os detentos sejam reintegrados à sociedade, dando condições humanas para esse mister.

E, para isso novas leis deveriam ser editadas para constranger os governos estaduais a construir mais presídios, os quais deveriam comportar um número certo de apenados, e não jogá-los em celas onde ficam amontoados, curtindo mais ódio aos que ficam fora do presídio, e depois voltam mais "preparados" para cometer mais crimes, vingando-se dos inocentes, que deveriam estar sob a guarda dessa sociedade.

É isso, amigo Cesar, enquanto tivermos um monte de ladrões na política, com exceção de uns poucos, que cumprem com dignidade o mandato que o povo lhes outorgou, não teremos saída. É correr, que vem tiro.

Um forte abraço.

Unknown disse...

Avé Cesar

Chego aqui por mor do Blog Panorama do Pedrão Luso de Carvalho, boa praça. Conheço bastante do Brasil. A minha cidade preferida? Adivinha... São Paulo. Estive várias vezes no perímetro do ABC. Vidas.

Chego, vejo e... gosto. Se fores até à Minha Travessa verás quem eu sou: jornalista e (dizem...) escritor. Não é grande apresentação, muito menos recomendação - mas é o que se pode arranjar.

Violência é violência em qualquer parte do Mundo. O Rio, porém, é uma das cidades mais conhecidas por essa infeliz circunstância. E não é de agora. Explico.

Em 1987 um irmão meu morava no Botafogo ali mesmo na Cidade Maravilhosa. Houve um assalto a um banco, os ladrões fugiram no que vocês chamam uma perua (nós é mais carrinha...) e a polícia atrás deles. E não é que a TV Globo deu em directo a perseguição?... Até um helicóptero usaram para colher imagens em grande plano!

Fiquei pasmado, a minha mulher também e muitíssimo espantado quando ouvi o meu irmão comentar que aquilo é que eram reportagens. Não queria acreditar - mas foi assim.

É um flagelo, a violência; mas também o é a cobertura que se lhe dá. A fronteira entre o bem e o mal tem muito que se lhe diga. É uma dicotomia dificílima de entender. Mas, a opinião da tua esposa faz-nos pensar. A vida é um bem precioso. Porquê, então, dar cabo dela?

Fico à tua espera lá no meu covil. Obrigado por me aturares.

Abs

Natália Cassiano disse...

Oi César,

Desculpe a demora em responder. Não estou entrando no blog e demorei a ver seu comentário. Li seus textos, confesso que me fizeram pensar e repensar... Quase nunca nos colocamos no lugar do outro, não é mesmo?!

Adoraria conhecer a Vanessa. Estou no segundo ano de SS. É fascinante mesmo, dá vontade de ir logo para a prática, de fazer tudo. Muito bacana trabalhar com deficientes. Acho Libras muito interessante, vou começar a aprender esse ano. Tenho vontade de trabalhar em alguma ONG também, ou lidar com idosos. Mas ainda não sei, o campo é muito amplo.

A violência por trás da violência. Nossa sede de vingança supera muitas vezes nosso senso de humanidade. E a mídia contribui transformando tudo em palco. Formando opiniões, incitando o desrespeito à dignidade do indivíduo em troca de ibope. A Vanessa viu a situação como muito poucos a enxergariam.

A moça que saiu cedo de casa para trabalhar e se viu nas mãos de um bandido...
O seqüestrador pelos quais não se sabem os caminhos que levaram ao destino trágico, nem suas razões para roubar, as oportunidades que lhe foram negadas, ou quem ele deixou para trás com sua morte...
O atirador que apenas cumpriu seu dever...
Nós que assistimos a tudo, e como em uma novela onde nada é real e, portanto não pode nos atingir, nos vemos no direito de julgar, condenar, delimitamos os papéis de mocinho e bandido. Sempre nos colocamos no papel do mocinho, por sinal, incapazes de imaginar uma realidade diferente da nossa e incitamos a violência dentro de nós, o ódio sem perceber...

Quem é a vítima? Quem é o culpado?


Realmente... Belo causo...
Uma pena ser sobre uma situação real.

Bjus
Deva