Este conto integra o livro O Homem Suprimido, Scortecci 2010.
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Meu nome é Odilon. Ou melhor, era Odilon, pois morri. Escutem vocês, quero atenção, senão vou embora e vocês ficarão sem conhecer a minha terrível história! Contarei como isso se deu uma única vez, ainda que vocês não me creiam.
Pois bem, nunca pensei que tal coisa pudesse acontecer comigo, um homem em plena idade produtiva, e de forma tão brutal.
Entrei no compartimento do chuveiro e corri a porta de vidro. Era um dia comum, como qualquer dia, e seria um banho comum, como qualquer banho que um filho de Deus possa tomar para se refrescar. Refrescar! Arará, antes eu soubesse! Ah, se eu soubesse!
Era verdadeiramente um dia de muito calor lá em Vargem Arada, naquele fim de tarde, verão de 1994. Calquei a mão na torneira e a girei toda, até o limite do curso, para fazer sair bastante água. A princípio, a água começou a cair sobre mim um pouco mais aquecida do que eu desejaria. De repente, estava quente demais. Muito quente. Olhei para cima e percebi que o indicador das estações estava numa graduação que eu nem havia reparado que existia: inferno. Inferno? Não seria inverno?, pensei. Olhei com atenção, tentando escapar da água que se precipitava escaldante. Sacudi a cabeça, fixei a vista, havia ali quatro graduações: primavera, verão, outono e inferno. Como eu nunca havia percebido aquilo? Pulei para trás, mas parei na parede de azulejos que estava, estranhamente, quase colada às minhas costas. Para frente também não havia mais espaço. De alguma maneira, a área do box fora repentinamente reduzida, encolhida. A água, de escaldante, passou a cair fervente. Comecei a gritar e saltar, enlouquecido. Berrei. Pedi socorro. O espaço parecia ainda menor, tão exíguo e justo que não me deixava desviar, o mínimo que fosse, das gotas amaldiçoadas que pelavam meu corpo. Eu estava emparedado. Tentei fechar a torneira, mas a manopla emperrara, estava rija, sólida, como se nela não houvesse elementos móveis. Já com a pele queimada, parte dela se soltando dos meus braços, peito e rosto, tentei correr a porta de vidro. Travada, não se movia. Esmurrei-a, bati com os joelhos, com a cabeça para quebrá-la. O vidro parecia blindado, resistente como concreto. Caí de joelhos, torturado e encolhido pela dor, aos berros do mais puro horror. Então, enfraquecido, vencido pelo pânico, em meio ao vapor sufocante, chorei convulsivamente. Os gritos já não saíam mais da minha garganta. As lágrimas de suplício e medo desciam abundantes pela minha face e logo se evaporavam. Por um breve instante, vi meu próprio reflexo no vidro do box, meu rosto estava roxo, congestionado, descarnado. Nessa hora compreendi, definitivamente, que não haveria chances de evasão. Soube que iria morrer. De repente, um violento estrondo e a energia acabou. Uma rápida esperança me atingiu, logo frustrada. Só o chuveiro infernal continuou a funcionar. Já em estado de semi-inconsciência, reparei que toda a energia da casa parecia ter sido sugada, concentrada e canalizada para o chuveiro, que agora aquecia ainda mais, intensificando seu poder calorífico.
Conto isso a vocês, assim, com essa riqueza de detalhes, lentamente, mas saibam que a coisa toda durou cerca de quarenta, cinquenta segundos, quando muito. Vergado no chão, como um homem espancado que tivesse sido metido de joelhos dentro dum barril, com a cabeça escalpelada, encostada nos ladrilhos, vi que as gotas d’água não mais saltavam e explodiam sobre mim, mas penetravam, rubras e incandescentes nas minhas carnes, como pingos de aço fundido atravessando plástico. Não era mais água, era fogo! As gotas iluminavam o banheiro como o amarelo intenso de uma usina siderúrgica em funcionamento. As carnes do meu tronco e cabeça se desfaziam em um caldo grosso, cor de caramelo, que escorria lentamente como um melado cremoso em direção ao ralo; meu crânio e ossos se revelavam brancos e brilhantes, alguns se incendiavam, estalando e ardendo como gravetos verdes surpreendidos pelas chamas duma lareira. Sem forças, entreguei-me. Sem ouvir ou sentir mais nada, imergi para sempre na derradeira escuridão.
As gotas fosforescentes continuaram a cair, assoviando, como pequenos sóis sobre a minha carcaça. Todo o recinto chiava e sacudia como um caldeirão de fervura sobre uma grelha de fogão.
– Pronto, crianças, já contei! Não, não, não, senhor! Largue a perna do papai, chega! Quando eu voltar à noite conto de novo, mas só se a mamãe confirmar que vocês fizeram toda a lição de casa, agora deixem o pai de vocês ir para o escritório trabalhar.
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.Cesar Cruz
Nov. 2010
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6 comentários:
Esse eu já havia me deliciado com ele no livro. Mas, curioso é que relendo-o aqui parece ter ganhado vida nova (não é trocadilho infame. rsrs). Excelente, meu bom César, como de resto, todo o livro. Abração. Paz e bem.
Cesar
Confesso
Esse conto me dá gastura! Só li novamente por uma pontinha de masoquismo. O conto é ótimo, mas tô com medo de ter pesadelos...
Boa noite
Bjo
tb já tinha lido, é no mínimo apavorante, o cara literalmente entrou numa "quente"...eheheh
xara - ipiranga - sp-sp
abraços... a todos.
Oi, Cesar... É, realmente este conto é ótimo pra gente pensar em nunca mais tomar banho! Mas que é criativo, ah é!!! E apavorante.
beijos, amigo.
tais luso
Cesar,
Já havia lido "Inferno" no teu livro "O Homem Suprimido"; e como ocorreu nessa leitura, gostei agora da releitura. Sem dúvida, uma história muito bem urdida, com esse forte sentimento trágico, ou absurdo, como dizia Camus de suas histórias.
Esta não é a primeira vez que o cumprimento pelo seu trabalho, e certamente não sera a última.
Grande abraço,
Pedro.
Acho que não tomarei banho hoje, arigatô...rs
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