Quem escolhe os temas?

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Tânia,

Minha querida amiga. Depois de ler no Facebook o seu comentário criticando o meu último conto, Dois Segundos, onde você diz:

"Cesar, com tanta desgraça acontecendo na última semana, você bem que poderia escrever algo para melhorar o ânimo de seus leitores. Seu texto me deixou ainda mais deprimida. Não gostei."

...pensei em lhe mandar um email no qual debateríamos, talvez longamente, a função da literatura e de quem a produz, além da discussão sobre a escolha dos temas.

Entretanto, como você fez seu comentário publicamente, decidi fazer o mesmo. Sendo assim, os que foram inseridos nesta nossa discussão literária iniciada por você, poderão também acompanhar e participar de seus desdobramentos.

De antemão preciso confessar que fiquei feliz. Você não sabe, porque não escreve, mas a solidão do escritor é brutal e atroz. Não há leitores, e os poucos que há fazem leituras superficiais do que leem. Talvez seja por isso que Cristóvão Tezza diz que os escritores são animais agonizantes.

Então é assim. Diante da monumental legião de não-leitores que temos, qualquer fiapo de misericórdia, de atenção, mesmo que venha na forma de uma dura crítica como neste caso , é para o pobre escritor uma dádiva, uma benção, uma boia na qual ele se agarra loucamente para não afundar, sozinho.

Quando você sugere que eu escreva algo que anime meus leitores, ao invés de deprimi-los ainda mais (já que andam presenciando tantas desgraças, como a do Japão, recentemente vitimado por catástrofes terríveis), o que certamente, segundo você, não se deu para quem leu o conto Dois Segundos, percebo que lhe falta a compreensão dos fatores fundamentais presentes no universo da literatura, mais especificamente no íntimo de quem escreve. Coisas que você não tem a obrigação de saber, como eu já disse, já que não se dedica a isso.

Talvez você se pergunte por que eu, por exemplo, insisto em escrever sobre a Morte, o sofrimento humano e as variantes que orbitam o tema. Não sei, Tânia. Sinceramente. Ou melhor, sei sim, sei um pouco. E vou tentar lhe explicar, baseado nos estudos de teoria literária aos quais tenho me dedicado, e no processo de criação que ocorre dentro de mim.

Os contos começam a se formar no meu útero de escritor (sim, existe isso), como numa gestação. Crescem, criam volume, esqueletos e músculos. Então, já animados por uma alma, começam a chutar e cabecear lá dentro, até que irrompem como uma massa amorfa, que sai se contorcendo e estrebuchando na minha frente.

A partir daí, nada me resta a não ser acolhê-lo como uma mãe acolheria a um rebento. Então eu o limpo, às lambidas, cuido, trato, dou-lhe de comer, até que subitamente aquela massa disforme começa a se revelar um ser completo, autônomo, consistente, enfim.

É desta forma que a coisa se dá para mim. E com boa parte dos escritores, segundo tenho aprendido.

“O escritor não escolhe seus temas, é escolhido por eles. Trata-se de uma servidão. O escritor que não escreve sobre o que lá no fundo do seu ser o estimula com insistência, mas que friamente escolhe temas ou assuntos de maneira racional, porque assim acredita que terá mais chances de sucesso, de agradar às pessoas, carece de autenticidade, e o mais provável é que seja, por causa disso, um mau escritor. A mim parece improvável alguém se tornar um autêntico criador, um transformador da realidade, se não escrever nutrido por aqueles fantasmas que o atormentam, que carrega dentro de si, que lhe puxam os pés à noite; fantasmas que fizeram de nós, escritores, rebelados convictos, reconstrutores da vida real nas ficções que produzimos. Os escritores que espantam seus fantasmas e se auto-impõem temas por acreditar que os que emergem de seu íntimo não são suficientemente atraentes, cometem um erro monumental, que lhes cobrará um alto preço”

Quem escreveu isso foi o grande escritor Mario Vargas Llosa, ganhador de centenas de prêmios ao longo de uma vida dedicada à ficção, além do Prêmio Nobel no ano de 2010.

Quanto a escrever coisas que animem as pessoas, já tão deprimidas, como você sugere que eu deveria fazer, penso que esta deva ser uma missão, uma temática, própria dos escritores dos chamados livros de auto-ajuda. A mim não me move este tema. Verdadeiramente não me interessam os finais felizes em ficção  só na vida real. Nem mesmo acho que caiba a mim a hercúlea missão de animar as pessoas.

A ficção, para mim, é uma forma de, de maneira oblíqua, poder mostrar o absurdo da vida, jogar luz numa certa escuridão da alma das pessoas, revelar as mazelas, as paranoias, o individualismo, o autoritarismo, a vileza e outras das mais obscuras tendências humanas, que insistem em produzir morte, e morte em abundância.

É essa a matéria prima, enfim, que compõe a minha modesta produção. Pelo menos no terreno da ficção.

Sim, Tânia, assim como há a possibilidade de se combinar infinitamente as palavras, os temas e suas variáveis são também inúmeras. Cabe ao leitor garimpar os autores que, além do tema, desenvolvam a narrativa da forma que mais lhe agrade.

Se você assim fizer, evitará se aborrecer mergulhando na leitura de coisas que para você são deprimentes e, quem sabe, evitando sentenças categóricas e lacônicas como aquele “não gostei”, dedicado ao meu conto.

Escrevi um artigo a respeito da temática dos escritores, especialmente sobre a minha própria temática.

O Tema Recorrente.

Lá desenvolvo um pouco mais desta reflexão. Acho que você pode (ou não) gostar. Quer se arriscar?

Fico por aqui,



Beijos a você,
Cesar

(Março 2011)
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Um comentário:

Anônimo disse...

Tudo isso me lembra uma certa vez em que meu filho, na época menor, quando falou uma coisa muito, mas muito engraçada, não me lembro o que, aí perguntei a ele: filho, da onde você tira essas coisas? Ele parou uns eternos 2 segundos e respondeu: ah! Pai, sei lá, de mim mesmo.
Então é mais ou menos isso, pra quem escreve “alguma coisa”, entende-se aqui alguma coisa = ficção, poesia, estórias, romances, o que for, sabe que tudo surge praticamente do nada, é incontrolável, as vezes de uma forte emoção incontida e inexplicada, as vezes de algum fato recentemente vivido e marcante, surge, simplesmente surge e se não escrevemos a respeito parece que um câncer vai surgir em nós sem chance de cura. Mas independente disso tem a Tânia todo direito de se sentir A ou B quando lê algo, independente dos motivos, isso é democracia sentimental , de expressão, que seria de nós se não fosse a diversidade?

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