Eu estava pendurando as roupas no varal quando a dona Larissa apareceu na porta da área e falou: “Arruma suas coisas agora mesmo. Vou acertar tudo que te devo e você pode ir, não precisa nem terminar o dia”. Virou as costas e foi saindo. Larguei tudo e fui atrás dela pelos corredores do apartamento: “Mas eu fiz alguma coisa, dona Larissa? A senhora me diga o que foi que eu fiz pra isso, assim, desse jeito...”, e ela respondeu que o que eu tinha feito ou não não era mais problema dela, e já foi logo entrando no escritório, debruçando na mesa e assinando o cheque cinco estrelas, arrancando do talão e me esticando sem chance de conversa.
Na certa ela calculou tudo na noite anterior e só esperou o seu Odair sair cedo pra me despedir. São sempre as patroas que me despedem, e sempre quando o patrão não está. Peguei minhas coisas, deixei a chave em cima da mesa da cozinha e fui embora. Ela ficou lá pra dentro e não disse mais nada.
De noite, encontrei a Crisleiny no mercadinho e voltamos pela rua conversando. Contei o ocorrido e ela me disse: “Ah, Suélem, não é pra menos, com esses paninhos que você usa, só pode arrumar mesmo é confusão com patroa, menina. Descola uma desquitada ou viúva, acho que só assim mesmo”.
E eu já andava mesmo era por aqui de patrão que vinha pra cima de mim babando, cheio de intenção. Com o doutor Milton, na outra casa que trabalhei, até que rolou um lance, mas ali a minha carne foi fraca, o homem era um gato e tava sempre de olho nos meus peitos. Quando me encontrou na cozinha tomando água numa madrugada, já foi logo me agarrando e eu dizendo o senhor está louco? Se sua mulher acorda? E aí já era tarde porque ele me arrastou pro meu quarto já suspensa no ar, e foi me levantando camisola, puxando calcinha pra baixo...
E depois desse dia era quase toda a noite que ele ia me fazer visitinhas de madrugada, que eu adorava, não nego; mas quando ele passou a me dar um dinheiro por fora, aí eu disse “não quero o seu dinheiro! Você tá me achando com cara de vagabunda, é?”.
Ai que se o Donizete sonha uma coisa dessas me dá um tiro!
Sei que um dia a dona Irene fechou minhas contas também, de repente, dizendo que era corte de despesas em casa, que era a crise e sei lá mais o quê. Mas que diabo de crise era aquela? Ali era compra de roupa nova toda hora, televisões fininhas pra todos os quartos, construção da casa pé-na-areia em Guaecá, cada carrão enorme na garagem, viagem pra Disney...
No fim, eu acabei mesmo foi no olho da rua.
Mas o estranho é que dessa última vez, com o seu Odair, marido da dona Larissa, não teve nada. Mas acho que ela percebeu os olhão de nojento que ele punha na minha bunda. É sempre o pobre que se dana!
Daí já tinha passado uns quinze dias que a dona Larissa tinha me dado as contas, e o dinheiro já acabando, e o Donizete me enchendo o saco que eu tinha que arrumar logo uma outra casa pra trabalhar, que o salário de polícia não dá sozinho pras despesas todas da casa, e foi daí que a Ritinha, que foi muito minha amiga quando a gente tinha 16, 18 anos, e que andava sumida, e todos diziam que tava ganhando bem, trabalhando num salão de bacana lá pros lados da avenida Paulista, sei que ela me chamou em casa e me disse baixinho, passando um papel dobrado pelo portão “Te espero amanhã lá no salão às três da tarde, o endereço ta aqui”. “Pra quê, Rita?, eu perguntei”. “Já ouvi que você tá sem serviço. Vai lá que vou fazer suas unhas de graça e te contar uma história. Se você quiser tem emprego pra você, mas é boca-de-siri total, Su, amanhã te explico”.
E fui dormir naquela noite pensando que devia ser pra fazer a faxina do salão, já que a Rita sabe que eu não sirvo pra fazer unha nem em mim mesma.
*
Enquanto a Rita fazia a minha mão ia me dando as instruções, em voz tão baixa que eu nem conseguia ouvir com o barulho de televisão ligada o bate-papo e as risadas das ricaças. “Aqui você tem que trabalhar com uma roupa normal, discreta e limpa, mas têm uns segredos. Tem que ser roupa pra chamar a atenção só de homem, não de mulher. Uma calça jeans justa nessa bunda redonda aí que você tem, e uma blusinha leve por cima, vai ficar da hora. Aprendi com a dona Rosa, a gente tem que valorizar os pontos certos do corpo da gente, mas como se fosse por acaso, entendeu? O homem vê de longe e cobiça, e o mulherio nem percebe sua má intenção, que pra mulher se ligar tem que ser evidente e descarado. Se você põe uma blusa que valorize os seus peitos, que são médios e firmes, até sem decote os caras vão cair matando, mesmo que seja de gola rulê. Taí o segredo. É dar de um lado e tirar do outro.
Vestido florido, não muito curto, regatinha e cabelo preso, também é outra manha. Bracinho de fora, homem adora! Sovaco aparecendo, também, bem depilado, claro. Maquiagem é bom bem leve. Não venha toda sexy, evidenciando muito, não. Esse é o pior erro. Na sedução, menos é mais, é o que diz a dona Rosa. Perfume, pouco. Ou nenhum, o que é até melhor, os clientes desse tipo de esquema de-dia preferem assim. São casados, a maioria. Executivos, homens de negócio, autônomos, representantes de empresa, garotões ricos, filhinho-de-papai”.
Enquanto a Rita ia despejando aquele monte de coisas na minha cabeça, tudo ia clareando pra mim. Passei os olhos ao redor e reparei nas outras manicures. Só ali no salão eram três fora ela. Todas bonitas, gostosas e jovens. “Os clientes vem por indicação”, ela continuou, “ou porque viram os anúncios que a gente imprime no adesivo e cola nos orelhões dos bairros próximos. Eles ligam aqui, pegam o endereço e aparecem. Dão uma rapidinha, tomam uma ducha e vazam. Não é que nem zona noturna, boate, que o cara vai pra passar horas, beber e conversar as mágoas da mulher gorda dele com a menina. Não. A coisa aqui é que nem fazer pé e mão, é pá-pum.
A entrada deles é pela outra rua. Ninguém desconfia. Não tem bebida também, a dona Rosa proíbe, que é pra ninguém achar que pode ficar bebericando um aperitivo e enrolando, depois do tempo vencido. Aqui é que nem o Mc Donald’s, a dona Rosa gosta de dizer, lá eles põem aquele ar-condicionado bem forte que é justamente pra não dar aconchego, pra fazer a pessoa comer e vazar logo e desocupar a mesa. A cama, no nosso caso, ahaha!
Olha, espia discretamente, a dona Rosa é aquela coroa de vestido ali perto da porta. Bonita, né? O salão é dela e o esquema com as meninas também. Aqui no salão é comissão normal de salão, mas lá atrás é meio a meio, lá que está o rendimento grosso. São dois tipos de programa que o cliente pode escolher: de uma hora, que sai a cem reais; ou de meia hora, a sessenta. Calcula aí de cabeça que você vai ver que, num dia bom, com uns 6 programinhas de meia hora, você faz quase duzentos reais. Num mês são uns quatro paus, além de mais uns mil, mil e duzentos que você tira aqui no salão. Onde você vai arrumar um emprego pra ganhar cinco paus por mês, Suélem?”.
Nisso a tal dona Rosa fez um sinal com a cabeça pra uma loirinha que tinha acabado de fazer o pé de uma mulher que passou o tempo todo contando, para quem quisesse ouvir, da filha que é linda, que entrou pra faculdade de jornalismo, que é muito inteligente, que o pai vai dar um carro de presente pra ela, que o noivo é bom moço, que vão casar em maio, etecetera. A loira se despediu da freguesa e sumiu pelo corredor do fundo do salão.
“Tá vendo como é?”, a Rita me disse, ao perceber que eu tinha me ligado no lance. “São casas unidas pela parte de trás. O cliente chega lá pela rua de cima e é recebido por uma atendente que mostra pra ele as opções num álbum de fotos. São três fotos de cada uma de nós: de frente, de lado e close de rosto. Fotos com roupas normais, feitas num jardim aqui perto, a gente vestida de roupinha simples e fresquinha, como a dona Rosa gosta de dizer, sutilmente sexy. Olha, Su, vou te falar, essa coroa sabe tudo de homem, você vai aprender um monte com ela. Ela diz que o lance com o homem não é aquele monte de maquiagem, enfeite, perfume demais, que a gente acha que eles gostam, unhas pintadas de escuro no pé e da mão, batonzão vermelho melado, cabelo cheio disso e daquilo, saltos enormes. Não, não. Ela garante que homem gosta mesmo é de mulher bonita e com produção casual e fresquinha. É assim mesmo que ela diz: ‘produção casual e fresquinha’, você vai ouvir ela dizendo isso. Mulher cheirando a banho tomado, sabonete, um cabelo preso por um palito atravessando o coque, um batom leve, um sorriso branco, pé descalço no chão, ah, a dona Rosa diz que homem adora isso, pé descalço. Nenhum resiste a um pezinho no chão. Ela valoriza mesmo é a beleza natural das meninas pro time. E pra entrar aqui só indicada por uma de nós. Por isso, quando sobrou a vaga da Damaris, que mudou com o marido pro interior, e eu soube que você estava sem trabalho, pensei, poxa, vou chamar a Su, isso aqui é a cara dela!
Mas deixa eu continuar te explicando. Aí o cara chega lá em cima e escolhe uma de nós pelas fotos, e diz se quer meia hora ou hora cheia. Paga antecipado e passa pela revista do Álvaro, que é o nosso segurança, e aí é só esperar que logo a menina chega. Aqui não tem putas. O fetiche é justamente esse, sermos iguais àquela garota que o cara vê na fila do banco, que trabalha com ele no escritório, que faz faculdade com o cara, ou que ele cresce os olhos andando aí pela Paulista, durante o dia, enfim, a menina comum e gostosa, gata, a menina que ele quer comer e não pode porque além desse tipo de menina não ser toda oferecida, não dar mole pra ninguém, é de família, namora sério... Sacou como é o estilo? Nada de lingeries rendadas, cetim, bocas vermelhas, fumando cigarro, fazendo cara de vaca. Quem gosta disso é velho pançudo, diz a dona Rosa, que entende mais de gosto de homens que qualquer mulher que eu já conheci nos meus vinte e cinco anos de vida! Tanto é que a casa dá um movimento louco, Su, e a clientela é ótima. Ótima nos dois sentidos, você me entende, né? ahaha! A região aqui também ajuda, né?
Su, te chamei também porque sei que você é da minhas. Se a menina não é do ramo, você entende o que eu quero dizer, né?, se nunca curtiu aprontar umas galinhagens por aí sem compromisso, só por diversão, como a gente fazia adoidado, lembra? Esse tipinho a dona Rosa não deixa nem a gente convidar. Pode ser a gata que for, estar precisando de grana, não interessa. Ela diz que dá problema, os clientes percebem que a menina tá ali contrariada, só pelo dinheiro, e não voltam. Homem, mesmo quando vai na zona, gosta de menina que curte a coisa. E a dona Rosa diz que reconhece menina que não é do ramo só de ver andar na frente dela, não precisa nem abrir a boca.
Olha, também aparecem aqui uns caras mais caídos, não vou dizer que não, mas aí é enfrentar, né, fazer o quê, como se fosse um serviço qualquer. Mas é difícil. Os sebosos, os bêbados e os velhos nojentos, acho que é como diz a dona Rosa, esses gostam mesmo é de uma puta de batom vermelho mascando chiclete de boca aberta. Você vai ver, vai ganhar bem e se divertir um monte, se te conheço um pouco!
Ah, e você não se preocupe, que isso aqui é a prova de marido. Todas aqui são casadas, inclusive a dona Rosa. É uma exigência ser casada, para ter uma boa dose de compromisso e bico-fechado; e morar bem longe também, que é pra não dar ligação de conhecimento. Vê só: eu e você somos de Carapicuíba; a Sthephany é da Brasilândia; a Ingrid, a que subiu agorinha, de Mauá; e a Mélani, aí atrás de mim, de Itapevi.
E temos um plano B pro caso de um marido ligar e a menina estar ocupada na casa de trás. ‘Ela tá fazendo a mão de uma cliente, assim que desocupar retorna pro senhor, ok?’. Pronto, sem galho. Até porque não tem desconfiança, é normal mulher trabalhar em salão. E se algum dia um aparecer aqui, de surpresa, e der o azar da menina estar com um cliente, já temos tudo combinado. ‘Seja bem-vindo! O senhor se sente por favor, ela está na sala privativa fazendo uma depilação e já vem’. E aí já é logo trazer um café, uma água, jogar um cabelo cheio de charme pra cima do cara, que é a corda pra ele se enforcar, e puxar uma conversa na boa. Aí, enquanto o maridinho-malandro se distrai todo babão, uma outra já corre dar um toque lá pra cima pelo rádio e aí se ajeita toda a encenação. Combinamos que no dia que isso acontecer com uma de nós, depois, em casa, é dar uma comida de rabo pro coitado ficar até torto, assim a gente reforça o nosso lado: ‘Você não se atreva mais a aparecer lá no salão! Lá não é lugar de homem, só tem mulher, e bem que eu te vi todo assanhando pra cima da Suélem, seu sem-vergonha! Cachorro-safado!’ Ahaha! E ainda se quiser judiar mais um pouquinho, é só colocar pra dormir na sala de noite.
Olha, uma coisa boa é que a gente tem o resguardo dos homens, a dona Rosa paga pro sargento do batalhão uma caixinha semanal. Ei, calma, não faz essa cara! Já sei o que você está pensando, esquece, não tem a menor chance... Aqui é a polícia dos Jardins, meu bem, tudo de farda engomada no ferro, ou você acha que esses policiais de filme americano aqui do pedaço são amigos dos fodidos que fazem a ronda nas favelas lá em Caraca-city?
Prontinho, acabei! Olha como essa cor marfim ficou ótima na sua mão? Bem casual e fresquinha. Você está pronta pra começar! Faz assim, Su, vai embora e pensa na proposta. Se topar, volta amanhã, às 9h, já pra uma conversinha rápida com a dona Rosa, as fotos do buqui e começar. Se você não vier, já vou entender que não quis, e nem preciso te dizer que nunca tivemos essa conversa, né? Você sabe como é lá em Caraca-city, se chega uma coisa dessas no ouvido de umazinha só que seja, estamos mortas!"
Na volta, no metrô, fui pensando que a Ritinha ia ter que me ensinar muito bem ensinado esse novo ofício... Não sei nadinha de pé, mão e depilação!
Ai se o Donizete sonha uma coisa dessas...
Vestido florido, não muito curto, regatinha e cabelo preso, também é outra manha. Bracinho de fora, homem adora! Sovaco aparecendo, também, bem depilado, claro. Maquiagem é bom bem leve. Não venha toda sexy, evidenciando muito, não. Esse é o pior erro. Na sedução, menos é mais, é o que diz a dona Rosa. Perfume, pouco. Ou nenhum, o que é até melhor, os clientes desse tipo de esquema de-dia preferem assim. São casados, a maioria. Executivos, homens de negócio, autônomos, representantes de empresa, garotões ricos, filhinho-de-papai”.
Enquanto a Rita ia despejando aquele monte de coisas na minha cabeça, tudo ia clareando pra mim. Passei os olhos ao redor e reparei nas outras manicures. Só ali no salão eram três fora ela. Todas bonitas, gostosas e jovens. “Os clientes vem por indicação”, ela continuou, “ou porque viram os anúncios que a gente imprime no adesivo e cola nos orelhões dos bairros próximos. Eles ligam aqui, pegam o endereço e aparecem. Dão uma rapidinha, tomam uma ducha e vazam. Não é que nem zona noturna, boate, que o cara vai pra passar horas, beber e conversar as mágoas da mulher gorda dele com a menina. Não. A coisa aqui é que nem fazer pé e mão, é pá-pum.
A entrada deles é pela outra rua. Ninguém desconfia. Não tem bebida também, a dona Rosa proíbe, que é pra ninguém achar que pode ficar bebericando um aperitivo e enrolando, depois do tempo vencido. Aqui é que nem o Mc Donald’s, a dona Rosa gosta de dizer, lá eles põem aquele ar-condicionado bem forte que é justamente pra não dar aconchego, pra fazer a pessoa comer e vazar logo e desocupar a mesa. A cama, no nosso caso, ahaha!
Olha, espia discretamente, a dona Rosa é aquela coroa de vestido ali perto da porta. Bonita, né? O salão é dela e o esquema com as meninas também. Aqui no salão é comissão normal de salão, mas lá atrás é meio a meio, lá que está o rendimento grosso. São dois tipos de programa que o cliente pode escolher: de uma hora, que sai a cem reais; ou de meia hora, a sessenta. Calcula aí de cabeça que você vai ver que, num dia bom, com uns 6 programinhas de meia hora, você faz quase duzentos reais. Num mês são uns quatro paus, além de mais uns mil, mil e duzentos que você tira aqui no salão. Onde você vai arrumar um emprego pra ganhar cinco paus por mês, Suélem?”.
Nisso a tal dona Rosa fez um sinal com a cabeça pra uma loirinha que tinha acabado de fazer o pé de uma mulher que passou o tempo todo contando, para quem quisesse ouvir, da filha que é linda, que entrou pra faculdade de jornalismo, que é muito inteligente, que o pai vai dar um carro de presente pra ela, que o noivo é bom moço, que vão casar em maio, etecetera. A loira se despediu da freguesa e sumiu pelo corredor do fundo do salão.
“Tá vendo como é?”, a Rita me disse, ao perceber que eu tinha me ligado no lance. “São casas unidas pela parte de trás. O cliente chega lá pela rua de cima e é recebido por uma atendente que mostra pra ele as opções num álbum de fotos. São três fotos de cada uma de nós: de frente, de lado e close de rosto. Fotos com roupas normais, feitas num jardim aqui perto, a gente vestida de roupinha simples e fresquinha, como a dona Rosa gosta de dizer, sutilmente sexy. Olha, Su, vou te falar, essa coroa sabe tudo de homem, você vai aprender um monte com ela. Ela diz que o lance com o homem não é aquele monte de maquiagem, enfeite, perfume demais, que a gente acha que eles gostam, unhas pintadas de escuro no pé e da mão, batonzão vermelho melado, cabelo cheio disso e daquilo, saltos enormes. Não, não. Ela garante que homem gosta mesmo é de mulher bonita e com produção casual e fresquinha. É assim mesmo que ela diz: ‘produção casual e fresquinha’, você vai ouvir ela dizendo isso. Mulher cheirando a banho tomado, sabonete, um cabelo preso por um palito atravessando o coque, um batom leve, um sorriso branco, pé descalço no chão, ah, a dona Rosa diz que homem adora isso, pé descalço. Nenhum resiste a um pezinho no chão. Ela valoriza mesmo é a beleza natural das meninas pro time. E pra entrar aqui só indicada por uma de nós. Por isso, quando sobrou a vaga da Damaris, que mudou com o marido pro interior, e eu soube que você estava sem trabalho, pensei, poxa, vou chamar a Su, isso aqui é a cara dela!
Mas deixa eu continuar te explicando. Aí o cara chega lá em cima e escolhe uma de nós pelas fotos, e diz se quer meia hora ou hora cheia. Paga antecipado e passa pela revista do Álvaro, que é o nosso segurança, e aí é só esperar que logo a menina chega. Aqui não tem putas. O fetiche é justamente esse, sermos iguais àquela garota que o cara vê na fila do banco, que trabalha com ele no escritório, que faz faculdade com o cara, ou que ele cresce os olhos andando aí pela Paulista, durante o dia, enfim, a menina comum e gostosa, gata, a menina que ele quer comer e não pode porque além desse tipo de menina não ser toda oferecida, não dar mole pra ninguém, é de família, namora sério... Sacou como é o estilo? Nada de lingeries rendadas, cetim, bocas vermelhas, fumando cigarro, fazendo cara de vaca. Quem gosta disso é velho pançudo, diz a dona Rosa, que entende mais de gosto de homens que qualquer mulher que eu já conheci nos meus vinte e cinco anos de vida! Tanto é que a casa dá um movimento louco, Su, e a clientela é ótima. Ótima nos dois sentidos, você me entende, né? ahaha! A região aqui também ajuda, né?
Su, te chamei também porque sei que você é da minhas. Se a menina não é do ramo, você entende o que eu quero dizer, né?, se nunca curtiu aprontar umas galinhagens por aí sem compromisso, só por diversão, como a gente fazia adoidado, lembra? Esse tipinho a dona Rosa não deixa nem a gente convidar. Pode ser a gata que for, estar precisando de grana, não interessa. Ela diz que dá problema, os clientes percebem que a menina tá ali contrariada, só pelo dinheiro, e não voltam. Homem, mesmo quando vai na zona, gosta de menina que curte a coisa. E a dona Rosa diz que reconhece menina que não é do ramo só de ver andar na frente dela, não precisa nem abrir a boca.
Olha, também aparecem aqui uns caras mais caídos, não vou dizer que não, mas aí é enfrentar, né, fazer o quê, como se fosse um serviço qualquer. Mas é difícil. Os sebosos, os bêbados e os velhos nojentos, acho que é como diz a dona Rosa, esses gostam mesmo é de uma puta de batom vermelho mascando chiclete de boca aberta. Você vai ver, vai ganhar bem e se divertir um monte, se te conheço um pouco!
Ah, e você não se preocupe, que isso aqui é a prova de marido. Todas aqui são casadas, inclusive a dona Rosa. É uma exigência ser casada, para ter uma boa dose de compromisso e bico-fechado; e morar bem longe também, que é pra não dar ligação de conhecimento. Vê só: eu e você somos de Carapicuíba; a Sthephany é da Brasilândia; a Ingrid, a que subiu agorinha, de Mauá; e a Mélani, aí atrás de mim, de Itapevi.
E temos um plano B pro caso de um marido ligar e a menina estar ocupada na casa de trás. ‘Ela tá fazendo a mão de uma cliente, assim que desocupar retorna pro senhor, ok?’. Pronto, sem galho. Até porque não tem desconfiança, é normal mulher trabalhar em salão. E se algum dia um aparecer aqui, de surpresa, e der o azar da menina estar com um cliente, já temos tudo combinado. ‘Seja bem-vindo! O senhor se sente por favor, ela está na sala privativa fazendo uma depilação e já vem’. E aí já é logo trazer um café, uma água, jogar um cabelo cheio de charme pra cima do cara, que é a corda pra ele se enforcar, e puxar uma conversa na boa. Aí, enquanto o maridinho-malandro se distrai todo babão, uma outra já corre dar um toque lá pra cima pelo rádio e aí se ajeita toda a encenação. Combinamos que no dia que isso acontecer com uma de nós, depois, em casa, é dar uma comida de rabo pro coitado ficar até torto, assim a gente reforça o nosso lado: ‘Você não se atreva mais a aparecer lá no salão! Lá não é lugar de homem, só tem mulher, e bem que eu te vi todo assanhando pra cima da Suélem, seu sem-vergonha! Cachorro-safado!’ Ahaha! E ainda se quiser judiar mais um pouquinho, é só colocar pra dormir na sala de noite.
Olha, uma coisa boa é que a gente tem o resguardo dos homens, a dona Rosa paga pro sargento do batalhão uma caixinha semanal. Ei, calma, não faz essa cara! Já sei o que você está pensando, esquece, não tem a menor chance... Aqui é a polícia dos Jardins, meu bem, tudo de farda engomada no ferro, ou você acha que esses policiais de filme americano aqui do pedaço são amigos dos fodidos que fazem a ronda nas favelas lá em Caraca-city?
Prontinho, acabei! Olha como essa cor marfim ficou ótima na sua mão? Bem casual e fresquinha. Você está pronta pra começar! Faz assim, Su, vai embora e pensa na proposta. Se topar, volta amanhã, às 9h, já pra uma conversinha rápida com a dona Rosa, as fotos do buqui e começar. Se você não vier, já vou entender que não quis, e nem preciso te dizer que nunca tivemos essa conversa, né? Você sabe como é lá em Caraca-city, se chega uma coisa dessas no ouvido de umazinha só que seja, estamos mortas!"
Na volta, no metrô, fui pensando que a Ritinha ia ter que me ensinar muito bem ensinado esse novo ofício... Não sei nadinha de pé, mão e depilação!
Ai se o Donizete sonha uma coisa dessas...
Cesar Cruz
Jan 2012
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Obra: As garotas da Rua D'Avignon (Les demoiselles d'Avignon)
Pablo Picasso - 1907. Óleo sobre tela - The Museum of Modern Art (MoMA - NY / USA)
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4 comentários:
Fala Cesinha,
Agora entendi porque colocou censura no site...rs
Abração!
Marcelo
Gostei da ironia "Não sei nadinha de pé, mão e depilação!".
Pessoas reais, comuns, com uma veracidade incrível na fala. Coisa que flui fácil, parece escrita com uma mão nas costas.
Cesinha
Me deu mesmo foi dó do Donizete, que além de ter esse nome, vai ficar dando duro de um lado, e nem imagina que a mulher vai dar duro do outro!
abraços
H. Lanes
Cesar
Gostei. Acho interessante quando um texto consegue reunir humor com uma abordagem ao mesmo tempo analítica da sociedade. Isso possibilita diferentes camadas de leitura.
Um abraço,
Nelson
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