A Crônica Encomendada






 amiga Nair Alves, que também é escritora, me manda um email dizendo que ela e seu marido, depois de lerem o meu livro de crônicas (A Idade do Vexame), acharam de me pedir para escrever uma crônica sobre um certo fusca, um fusca que eles gostam muito e que tem sido muito injustiçado.

Li o email da Nair e fiquei muito envergonhado, me sentindo incapaz de escrever uma crônica assim, sob encomenda. Respondi a ela dizendo isso, meio sem graça. Ela me respondeu como a treinadora da equipe de vôlei se dirigiria ao time, na partida final das olimpíadas:

“Você é capaz, Cesar, eu sei disso! Vamos lá!”.

Oh, Nair, você não nega sua vocação para escritora de livros de motivação pessoal.

O detalhe é que a história do fusquinha da Nair é mesmo boa. Houve até um pedreiro, que estava fazendo uma obra na casa deles, que se interessou pelo carro e que queria trocar o fusca pela obra, mas que no final recuou e ofereceu uma ninharia em dinheiro pelo veículo, oferta que ofendeu e tem tirado o sono do marido da Nair, coitado...

E por aí vai a valsa do fusquinha.

O problema, querida Nair, como eu te disse no email, é que simplesmente não consigo escrever crônicas solicitadas. Você e seu marido não são os primeiros que pedem isso a mim e ficam a ver navios ou fusquinhas, no caso. Devo ter amigos por aí achando que virei estrela, que só faço crônicas se me pagarem, e coisas assim. Nada disso.

Talvez seja incapacidade minha. Talvez seja característica do próprio estilo literário do qual a crônica faz parte, que pede uma intimidade, uma vivência com a experiência a ser cronicada, enfim.

Mas, espera aí. Matutando agora, lembro que já escrevi crônicas sobre assuntos que não eram meus, com os quais eu não tinha intimidade nenhuma. Porém, pensando melhor, vale lembrar que mesmo nessas vezes a decisão de fazer a crônica partiu de mim, só de mim. Nada me foi pedido. Pronto, está isolado o problema! Se me pedem, a coisa murcha, não vinga.

Viu, Nair? Se você em vez de me pedir tivesse simplesmente me relatado a história, como quem não quer nada, talvez eu teria sido visitado pela colorida borboleta da criatividade, que pousa no ombro da gente só quando bem entende.

Aproveitando que estamos falando de crônica, e como além de cronista sou um estudioso do assunto (aprendiz, na verdade), resolvi elencar abaixo algumas ótimas passagens capturadas de ensaios, estudos e constatações de escritores sobre essa forma de arte que, dirão alguns, é tipicamente brasileira. Veja, Nair, que interessante:

“A crônica é um gênero literário muito praticado no Brasil, consistindo num pequeno artigo sobre qualquer assunto, em tom coloquial, procurando estabelecer com o leitor uma intimidade afetuosa que o leva a se identificar à matéria exposta”. Antônio Cândido  

“A crônica é um gênero literário, de prosa, ao qual menos importa o assunto (em geral efêmero) do que as qualidades de estilo; menos o fato em si do que o pretexto ou a sugestão que pode oferecer ao escritor divagações borboleantes e intemporais; menos o material histórico do que a variedade, a finura e a argúcia na apreciação, a graça na análise dos fatos miúdos e sem importância, ou na crítica buliçosa de pessoas”.
Afrânio Coutinho

“E, afinal, o que é a crônica? Trata-se do voo livre da palavra, tão solta quanto na poesia, capaz de elevar o pensamento até os mais distantes confins, estabelecer os laços com a realidade ou se perder nas brumas da ficção, engajar-se às questões políticas ou se alienar nos domínios do amor, aprofundar-se na busca da verdade ou flutuar pelos imensos campos da dúvida. Ligada pelo cordão umbilical aos fatos do dia ou à época que se atravessa, ao momento histórico ou à situação eventual de uma comunidade, de um país, ao retrato de um instante qualquer na vida humana, filha do deus Khrónos (o tempo) por excelência, e por isso mesmo com a sua durabilidade abreviada pela transitoriedade intrínseca, a crônica pode subir tão alto a ponto de se tornar exemplar ou inalcançável. E, portanto, se eternizar”. Walter Galvani (do livro “Crônica, o voo da palavra”)

“A crônica, pela astúcia da linguagem, instaura um interessante paradoxo linguístico. Etimologicamente, tem origem grega, provém de Khrónos. No entanto, o tempo, no interior da crônica, não transcorre, ela é intemporal, descritiva (...) Talvez o paradoxo maior da crônica seja justamente superar seu próprio paradoxo: penetrar a substância íntima de uma época, refletindo os pequenos atos que a compõe, e, simultaneamente, suportar a corrosão do tempo e a irrefutável releitura das épocas futuras”. Davi Arrigucci Jr

 “As crônicas são como os cogumelos, brotam onde querem" Antônio Prata


Nair, me perdoe pela incapacidade de fazer a crônica do seu fusquinha. Leve minhas desculpas aí pro seu marido também. A propósito, que ano é o fusquinha? Já vendeu? O documento tá em ordem? IPVA desse ano vocês já...


Cesar Cruz
Fev 2013





2 comentários:

Anônimo disse...

caraca meu, gostei desse tiozinho aqui o Walter Galvani, Ele explicou o que é uma crônica praticamente com uma crônica... e não vem não porque já tinha lhe dito esses dias que meu próximo objetivo era adquirir um fusquinha, se acaso conseguir as condições do mesmo repasse-me, senão farei um crônica a seu respeito com título: " Cesar, o traidor?" e que por sinal será publicado em seu próprio blog.

abraços
xara - ipiranga - sp-sp

CESAR CRUZ disse...

Xara, esperemos a manifestação da Nair. Acho que esse fusquinha já é seu!

Cesar