Meu caro
Mário, vulgo Xará, quero dar-lhe os parabéns, a você e a Soraia, pelo
casamento. A noite deste sábado avançou sem que eu percebesse, e a Michele e a Vanessa já dormem,
e então me ocorreu te escrever para dizer que fiquei muito contente quando
recebi seu email durante a semana me convidando. Lamentei não ter conseguido ir
ao cartório pela manhã, mas me senti muito importante por ter estado no
churrasco à tarde. Especialmente por ter percebido que não havia praticamente
amigos na casa da sua sogra, eram na maioria familiares. Uma festa tão íntima,
e lá estávamos eu e minha família. Você não ter aceitado presente,
mas ter me convidado para ser fotógrafo e cinegrafista amador de momento tão importante me
deu uma grande alegria; e saiba que você não vai se arrepender, fiz mais de
duzentas fotos, além de uns dez filmes de cerca de cinco minutos cada, material que te entregarei na
próxima semana para que você e a Soraia guardem para a posteridade, para que
possam assistir ao longo dos anos.
Honestamente, Xará, creio que sejam essas as verdadeiras cores com que se pintam os bons momentos da vida. Dias haverá na vida da gente que só sobrarão recordações e saudades, não é mesmo?, e eu sei que você bem sabe disso, talvez melhor do que eu, do alto dessa sua simplicidade quase poética e filosófica, que eu admiro tanto, você que é um homem livre de certo tipo de necessidade de aparecimento, como tanta gente que conhecemos, desprendimento que eu já acatei também para minha vida, eu que já decretei a morte da minha capacidade de deslumbramento, onde as obtenções e demonstrações de ter e de ser se faziam objeto de vaidades vãs.
Vejo em você, Xará, um mestre nesse desligamento das coisas efêmeras. Você devia dar cursos, como fazem esses caras que acham que ensinam o sucesso. Um homem que tem um brechó, com orgulho e honra. Esse é você. Há muita dignidade em se ter um brechó, meu amigo, e você é o vendedor do seu próprio brechó, assim como eu sou o vendedor dos meus produtos lá no meu trabalho, o meu ganha-pão. Nem sei se você sabe, mas acabaram-se os vendedores. Repare, ninguém mais quer ser vendedor de coisas, nem as empresas querem funcionários com esse título. Nunca mais se viu escrito em um cartão de trabalho “vendedor”. Falta, na opinião dessas pessoas, dignidade em se ser vendedor. Agora são todos consultores, colaboradores disso e daquilo, analistas comerciais, assessores para contas, e toda uma sorte de títulos supostamente chiques que vêm para envernizar, mas fazem somente esconder a vergonha da humildade. Se fosse você membro dessa elite de pernósticos, meu amigo, faria como muitos têm feito. Produziria um cartão de visitas com seu nome, e poria abaixo o seu cargo aí no brechó, que poderia ser “Diretor Superintendente”. Sim, porque você é afinal o manda-chuva disso aí tudo! E eu tenho visto gente que montou um escritório no fundo da casa da sogra e que tem cartões assim, importantíssimos. Mas claro que você nunca diria às pessoas que tem um brechó; caso perguntassem, explicaria que é “empresário do setor de vestuário ao varejo popular”. Hã? Gostou? Bastante ridículo, eu sei, mas a verdade é que é assim que tem sido. Agora somos todos aristocratas de uma fidalguia oca, de um clero intangível e etéreo. Ninguém mais quer aparentar ser mero labutador, filho da simplicidade, humilde. Queremos o brilho e os holofotes, a fama e a glória; não existem mais plebeus e vassalos, somos todos regentes! E aí eu penso muito nessa coisa de escrever, que traz em sua natureza um pouco disso tudo, dessa aura da relevância social, há no escrever um certo quê do intelectual, do sujeito acima da plebe rude, essa fantasia enjoativa que hoje me intranquiliza muito e me pinica a pele, e sinto um grande desassossego em ser parte dessa coisa, de me ver em meio a essas almas que menciono acima, que povoam as empresas nas cidades (será essa uma patologia das metrópoles? Ocorrerá esse fenômeno também no homem do interior, do campo?), uma gente que faz crediário para comprar relógio caro, bolsas caríssimas de marcas famosas, gente que tem o jargão exato, as palavras do metiê, os gestos vegetais todos ensaiados e exigidos pela casta a que se consideram pertencentes, e assim pensam transpirar o perfume e reluzir a aparência de que chegaram lá, em um certo “lá” que nem elas mesmas sabem onde é que fica e do que vale, afinal.
Honestamente, Xará, creio que sejam essas as verdadeiras cores com que se pintam os bons momentos da vida. Dias haverá na vida da gente que só sobrarão recordações e saudades, não é mesmo?, e eu sei que você bem sabe disso, talvez melhor do que eu, do alto dessa sua simplicidade quase poética e filosófica, que eu admiro tanto, você que é um homem livre de certo tipo de necessidade de aparecimento, como tanta gente que conhecemos, desprendimento que eu já acatei também para minha vida, eu que já decretei a morte da minha capacidade de deslumbramento, onde as obtenções e demonstrações de ter e de ser se faziam objeto de vaidades vãs.
Vejo em você, Xará, um mestre nesse desligamento das coisas efêmeras. Você devia dar cursos, como fazem esses caras que acham que ensinam o sucesso. Um homem que tem um brechó, com orgulho e honra. Esse é você. Há muita dignidade em se ter um brechó, meu amigo, e você é o vendedor do seu próprio brechó, assim como eu sou o vendedor dos meus produtos lá no meu trabalho, o meu ganha-pão. Nem sei se você sabe, mas acabaram-se os vendedores. Repare, ninguém mais quer ser vendedor de coisas, nem as empresas querem funcionários com esse título. Nunca mais se viu escrito em um cartão de trabalho “vendedor”. Falta, na opinião dessas pessoas, dignidade em se ser vendedor. Agora são todos consultores, colaboradores disso e daquilo, analistas comerciais, assessores para contas, e toda uma sorte de títulos supostamente chiques que vêm para envernizar, mas fazem somente esconder a vergonha da humildade. Se fosse você membro dessa elite de pernósticos, meu amigo, faria como muitos têm feito. Produziria um cartão de visitas com seu nome, e poria abaixo o seu cargo aí no brechó, que poderia ser “Diretor Superintendente”. Sim, porque você é afinal o manda-chuva disso aí tudo! E eu tenho visto gente que montou um escritório no fundo da casa da sogra e que tem cartões assim, importantíssimos. Mas claro que você nunca diria às pessoas que tem um brechó; caso perguntassem, explicaria que é “empresário do setor de vestuário ao varejo popular”. Hã? Gostou? Bastante ridículo, eu sei, mas a verdade é que é assim que tem sido. Agora somos todos aristocratas de uma fidalguia oca, de um clero intangível e etéreo. Ninguém mais quer aparentar ser mero labutador, filho da simplicidade, humilde. Queremos o brilho e os holofotes, a fama e a glória; não existem mais plebeus e vassalos, somos todos regentes! E aí eu penso muito nessa coisa de escrever, que traz em sua natureza um pouco disso tudo, dessa aura da relevância social, há no escrever um certo quê do intelectual, do sujeito acima da plebe rude, essa fantasia enjoativa que hoje me intranquiliza muito e me pinica a pele, e sinto um grande desassossego em ser parte dessa coisa, de me ver em meio a essas almas que menciono acima, que povoam as empresas nas cidades (será essa uma patologia das metrópoles? Ocorrerá esse fenômeno também no homem do interior, do campo?), uma gente que faz crediário para comprar relógio caro, bolsas caríssimas de marcas famosas, gente que tem o jargão exato, as palavras do metiê, os gestos vegetais todos ensaiados e exigidos pela casta a que se consideram pertencentes, e assim pensam transpirar o perfume e reluzir a aparência de que chegaram lá, em um certo “lá” que nem elas mesmas sabem onde é que fica e do que vale, afinal.
Nem tudo o
que reluz é ouro!
Então a
Soraia, estimulada pela Vanessa, me tomou pelo braço em meio à festa e me levou
casa adentro, e eu fiquei meio encabulado a princípio, mas daí os cômodos iam
se revelando pra mim, câmara em punho, e pessoas da família de vocês surgindo
sorridentes, e eu clicando, e as crianças, os seus pais, os seus e os dela,
gente de idade, moças grávidas, clique daqui e dali, e de repente uma mesa de
cozinha com toalhinha, com bolo e doces em cima, e alguém lavando a louça, e as
roupas num cesto para lavar, e a churrasqueira acesa no quintal e todas essas
coisas que compõem o que eu chamo definitivamente de vida, e se não são essas
as que têm real valor, meu amigo, me aflige ter que pensar quais serão as que
hão de ter. Será toda aquela sorte de soberbas criadas para impressionar os
demais?
Aí me lembro
do amigo Ricardo, que é pastor, e que faz alusão às pessoas que vivem assim,
equilibradas sobre essa casca fina da aparência social, até que um dia uma dor,
um incomodo aqui, ó, no canto atrás da costela, e, depois dos exames, poderão
ouvir do médico: “Olha, lamento, mas é um câncer...”. E agora, José? Onde está
toda aquela sua importância?
E assim
penso que se essa minha literatura infame e inútil, patacoada que ninguém se
interessa, e que queira eu ou não parece servir como alimento e recheio para
esse vazio existencial em que todos estão imersos, se ela me serviu até aqui de
alguma coisa, serviu para fazer um amigo como você, que me leu no jornal e me
escreveu em certo dia um email simples e elogioso, e que se surpreendeu com a
minha resposta ("um escritor se dar ao trabalho!", você me disse que
pensou). Então fomos trocando emails e você me tratava com toda a deferência e
respeito que dedicamos aos mitos, aos grandes, até que um dia eu ia ali pelo
Ipiranga nas minhas andanças de vendedor, e apareci de surpresa no seu brechó,
e ficamos a falar efemeridades várias, em língua de gente comum, e também das
lutas da vida, e acho que você enfim percebeu que sou um mero qualquer-um, como
você, como aquele cara ali que passa na calçada, e acabamos obrigados a
concordar com Bertold Brecht, os homens parecem mesmo maiores quando vistos à
distância, já que atrás das cascas reluzentes que criam são todos feitos da
mesma coisa; e seja o câncer, o raio, a bala do bandido ou pelas mãos de um
motorista bêbado, vamos acabar mais dia menos dia naquele buraco, numa certa
alameda numerada, com ou sem relógios de grife, com ou sem cartões de
superintendente.
Felicidades
a você e à Soraia! Dia desses passo no brechó para te entregar as fotos, aí
você me paga uma média na padaria.
Abraços do
amigo,
Cesar
3 comentários:
Cesinha
Tem um poema do Fernando Pessoa que diz:
"Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido"
Sorte do Xará e sua de terem se livrado dessa máscara, disso que vc chama de roupa pinicante. Eu, com meus 63, graças a Deus já me livrei disso faz tempo. Mas vc está certo, gente que vive para essas aparências estão infestando a cidade. O meio empresarial está cheio delas.
Linda carta, parabéns.
HL
por hora me limito a responder apenas com uma palavra: "honra" e obrigado!
xara
Grato, amigo. Por dois motivos: pelo privilégio de ler uma carta particular; por ser citado em um contexto tão absurdamente frágil - e humano.
beijos
Ricardo
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