Ode ao Bom Ladrão



A história da humanidade é marcada por antagonismos, panoramas que se alternam de tempos em tempos. Quando o mundo está à beira do colapso, uma reviravolta na ordem das coisas põe fim a uma fase e instaura outra, muitas vezes oposta à anterior. Depois das chamas da Inquisição, surge o Iluminismo, arejando os pensamentos, fomentando as ciências, a filosofia e as artes. Às vezes acontece o inverso: quando o homem está prestes a atingir a tal felicidade, surgem ventos contrários que botam tudo a perder.

Aconteceu com o biquíni fio dental, você deve se lembrar, foi nos anos 80. Quando a coisa estava ficando boa e a gente achou que agora, finalmente, as mulheres ficariam todas peladas na praia, pra sempre, houve um terrível revés e os biquínis voltaram a crescer, e a gente ficou (na falta de coisa melhor) a ver navios...


Veja o amigo a questão da violência urbana. Em meio a uma recente onda de crimes brutais, nos quais a violência e a barbárie se materializam mesmo diante de vítimas indefesas e rendidas, eis que começa a surgir uma nova fase, protagonizada pelo personagem que chamarei aqui, como no Evangelho, de “o bom ladrão”. O bom ladrão é o criminoso fino, elegante e gentil, com diploma de curso de etiqueta fixado na parede, muitos são leitores contumazes de filosofia, sociologia, direito e política. O bom ladrão, portanto, é seguidor fiel dos fundamentos universais da ética e da humanidade, e sabe onde começam e onde acabam seus direitos de meliante.


Há algumas semanas ouvi na rádio o relato de um assalto a um restaurante, o vulgo arrastão. Só que nesse assalto a violência e a grosseria não tiveram espaço. De acordo com as vítimas e com o próprio dono do estabelecimento, o bando chegou por volta das 22h daquele sábado e anunciou o assalto. “Senhoras e senhores, um minuto da atenção de todos. Isto é um assalto e não queremos machucar ninguém. Basta que não haja gritos e que todos ponham as mãos sobre a mesa, inclusive o senhor aí de azul, isso mesmo, agora sim, muito obrigado...”.


E assim foi, sem desarmonias ou indelicadezas, que o assalto transcorreu na mais perfeita paz. Os criminosos, que usavam máscaras especiais que deixavam só as bocas sorridentes de fora, foram pegando celulares, dinheiro, joias e cartões. A cada objeto colocado dentro do saco, podia-se ouvir “obrigado”; “muito obrigado”. Dado os eficazes procedimentos usados pela quadrilha, o processo todo não durou nem 2 minutos. Segundo relatou alegremente uma senhora, devidamente assaltada naquela noite, um deles até fez festinha no cabelo do seu neto. Da porta, antes de partirem, o porta-voz se virou e desejou a todos: “Fiquem com Deus!”, ao que alguém teria completado “Amém!”.


Eu poderia até duvidar disso, se não tivesse acontecido com um amigo meu...


Ele não quis me contar, mas minha amiga Martha, mulher dele, entregou tudo. O Vagner havia acabado de sair de uma reunião no bairro da Água Branca, aqui em São Paulo. Na calçada, caminhando em direção ao estacionamento, foi abordado por um rapaz bem vestido, que bateu delicadamente com a mão no volume da própria jaqueta fechada e disse “Senhor, boa tarde, isto é um assalto, me passe por gentileza o seu celular”. O meu amigo, um veterano na arte da negociação, percebendo se tratar de um ladrão fino, arriscou: “Poxa, não faz isso comigo! Esse é o meu instrumento de trabalho. Se você levá-lo, posso perder o meu emprego e ficar com dificuldade de sustentar a minha família”. Conhecedor da psicologia humana, o Vagner contrabalançou a audácia do argumento com um gesto de obediência: estendeu o celular na direção do gatuno, esperando a decisão da sua consciência. Por um instante se olharam em silêncio, olhos nos olhos. Um observador que estivesse passando diria tratar-se de um amigo oferecendo o celular ao outro. Então, num gesto do mais nobre desprendimento, o larápio espalmou as mãos e franziu o cenho, em recusa à oferta, mas aproveitou para advertir: “Dessa vez vou deixar quieto, mas vê se não fica marcando toca com o celular no meio da rua, beleza?”.



Meu amigo agradeceu e ambos se despediram, como cavalheiros, e cada um seguiu para a sua lida diária.



Cesar Cruz
maio 2014



2 comentários:

Anônimo disse...

É o que sempre digo, e isso acontece em todos os setores, é exatamente a diferença entre o profissional e o amador, por incrível que pareça os bandidos profissionais tem todo meu respeito, segue parte de uma entrevista do Ivo Pitangy como ilustração.

As pessoas que foram feridas por golpes com arma branca, além
dos acidentados e dos mutilados constituem a sua clientela. Um
dia, ele remenda com sucesso o dedo seccionado de um batedor de
carteiras. Pitanguy lhe diz então: "Eu espero que daqui para
frente, você não me assaltará, caso me encontrar na rua". "O
senhor doutor vai me perdoar", responde o outro, sorrindo, "mas
eu sou igual ao senhor, um profissional: eu não olho para o rosto
daqueles que eu assalto".

xara

Andre Whitaker disse...

"Touca" filhote! Agora o Houaiss não te ajuda! Gol do São Paulo! Nos anos 80 a coisa estava ficando boa porque e gente era punheteiro! O Leo até projetou e executou um circuito que abria quando o Tio Fernando abria a porta, naquelas horas de sexta com o Sala Especial no 7!