O urso sorridente



Stevan largou irritado o cinzel e o martelo sobre a bancada de madeira do atelier e subiu em grandes pernadas a escada em caracol que ligava o porão à sala da casa. Os punhos vinham cerrados e o cenho franzido pela irritação. Certamente algum moleque maldito havia posto um daqueles palitos de fósforo travando sua campainha e perturbando a sua concentração; tão necessária na atividade de esculpir em pedra. O homem havia jurado que, se um dia desses pegasse um daqueles fedelhos no pulo, arrancaria sua cabecinha com as próprias mãos calejadas e levaria pessoalmente para o pai. Avançou furioso em direção à porta da rua, destrancou-a e a abriu num amplo e violento puxão. Arfava de ódio e cansaço. Foi desarmado instantaneamente pelo que viu.
Na porta uma menininha de não mais que 5 anos o fitou assustada. O dedinho que estava cravado na campainha foi recolhido imediatamente para trás das costas como se houvesse tomado um choque. O som irritante da campainha cessou e o silêncio pairou. Stevan desfranziu as sobrancelhas, limpou as mãos e os braços peludos no avental de lona e fitou por um instante aquela coisa branquinha, de lindos cabelos lisos negros e olhos amedrontados. Usava um vestido branco com miúdas flores amarelas e vermelhas, na altura da barriga um urso sorridente fazia às vezes de um grande bolso central.
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- Oi filha... O que você quer? – falou da forma mais delicada que conseguiu, já que não era propriamente um especialista em crianças, muito menos em delicadezas.
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- Moço, m-me ajuda... – a menina balbuciou estas palavras e explodiu num choro convulsivo. As duas mãos foram ao rosto abafando os soluços descontrolados.
O homem ficou paralisado sem saber o que fazer. Olhou para fora checando todos os lados para ver se não havia um adulto por ali. Não havia. Na estrada só os carros passando em alta velocidade, a maioria com os faróis já acessos. A noite já havia posto um pé pra dentro do dia; era a hora do chamado lusco fusco.
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- Filha, tente se acalmar, está bem? – Stevan agachou o seu corpanzil de 1,90m e 130kg em frente à pequena criança.
Com suas enormes mãos tocou os bracinhos da menina que estavam colados junto ao peito. A criança tirou as mãos do rosto deformado pelo desespero e passou a falar de maneira confusa e desarticulada, em meio aos soluços que faziam seu pequeno peito subir e descer, lágrimas escorriam em abundância e do nariz descia uma espessa gosma transparente que chegava até o lábio superior:
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- O ca–carro ba-ba-teteu...e ... minha mã..mãe ta lá tio! - Calma mocinha! Tente se acalmar, vamos conversar com calma – Num golpe rápido, Stevan passou o braço por debaixo das nádegas da garotinha e a ergueu do chão como a um pequeno saco de panos.
Entrou fechando a porta e sentou-se no sofá da sala pondo a menina ao seu lado.
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- Vamos lá mocinha, pare de chorar um pouco e me explique bem devagar.
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– O coração do homem batia forte, Stevan era um homem maduro, experiente, mas nunca se casou nem teve filhos, não sabia lidar bem com crianças, além do mais, aquela era sem dúvida uma situação bastante peculiar.
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- O carro ba-bateu e ca-caiu do morro... ... pego-ou fogo... mamãe, ma-mãe!... – entregou-se novamente a um pranto descontrolado. Stevan sentiu uma faca afiada cutucar seu peito. Fora um acidente de carro, coisa grave.
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- Menina, ouça: como foi que você veio até aqui? A menina não respondeu, tremia e soluçava incontrolavelmente.
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- Você acha que consegue levar o tio lá onde está a sua mãe? - A menina assentiu com a cabeça. - Ok, então vamos lá agora mesmo, tá bom assim? Agora procure se acalmar um pouco. - A garotinha concordou novamente, silenciosa, ligeiramente mais calma graças ao consolo do adulto.
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O homem passou a mão na carteira e na chave da caminhonete que estavam sobre a mesa e saiu com a menina no colo agarrada ao seu pescoço. Entrou no carro e colocou-a no banco ao seu lado.
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- Qual seu nome, filha?
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- Isabel – respondeu limpando o nariz na manga de rendinha do vestido.
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- Isabel, preste bem atenção: você precisa me dizer de onde veio. Por aqui temos muitos morros, preciso saber exatamente onde é este morro que a mamãe caiu, entendeu?
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Isabel esticou o bracinho em direção ao vidro traseiro do carro. Apontava no sentido oposto da pista.
Stevan morava na beira de uma movimentada rodovia formada por 2 pistas divididas por um guard rail metálico com 4 faixas velozes em cada sentido. Olhou para a direção indicada e em seguida para a menina, incrédulo.
Como poderia aquela menininha ter atravessado 8 pistas de alta velocidade e ainda ter pulado a proteção de aço, sem ajuda? E como poderia estar limpinha daquele jeito e sem nenhum arranhão, tendo sofrido um acidente daqueles? Com todas essas dúvidas na cabeça, deu ré na caminhonete e saltou na estrada em velocidade levantando poeira.
Alguma coisa não batia naquela história, mas ele ainda não conseguia entender o quê.
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- Filha, vou fazer o retorno lá na frente e quando voltarmos pelo outro lado da rodovia, fique bem atenta pra me mostrar de onde veio, entendeu?
Isabel assentiu; soluçava baixinho e secava algumas lágrimas nas ombreiras do vestido. Os braços iam esticados e rígidos ao longo do corpo e as mãos com as palmas para baixo enfiadas sob as coxas. Isabel seguia assim, ao lado daquele homem desconhecido, que parecia ser bonzinho e resolveria tudo, como só os adultos sabiam fazer.
Na sua face de bebê estava estampado um terror contido, um medo de ter que encarar a realidade que ela, de alguma maneira, sabia que a aguardava. Era o rosto de uma menininha que fora confrontada precocemente com a dureza de uma tragédia. Isabel não sabia o que viria dali para frente, mas sentia inconscientemente que alguma coisa grande e cruel havia lhe atingido a vida; sabia de alguma forma, que as coisas seriam irremediavelmente diferentes a partir de agora.
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A noite avançava rápido. No horizonte, uma teimosa claridade alaranjada criava uma paisagem magnífica e insistia em lutar contra o domínio implacável da escuridão que chegava soberana. Stevan olhou pro relógio digital iluminado no painel: 19:17h. Voava na pista. Após alguns minutos acessou o retorno em velocidade, cantando os pneus. A caminhonete passou por debaixo da rodovia, os faróis iluminaram uma grande placa verde que pareceu para Isabel a princípio ser negra com letras brancas, e no instante seguinte dourada com letras pretas. Exibia um texto que ela ainda não conseguia compreender, só fora capaz de identificar os números 6 e 3, estes ela já havia aprendido na escola.
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- Filha, fica bem de olho agora, pois vamos pegar a pista do outro lado, está bem? A garotinha não disse nada. Sentia seu coração tomado pelo medo, sentia-se inteiramente gelada e insegura. A noite chegara e pela primeira vez em toda a sua vida, sua mãe não estava ao seu lado. Passou a rememorar a hora em que, de repente, a mãe gritou e arregalou os olhos. Lembrou em seguida de sentir o carro girando, girando, sua cabeça batendo, o corpo sendo jogado contra o teto e depois contra os bancos, estavam rolando por um penhasco... Sentiu pedaços de vidro e ferro contra seu corpo e rosto, ouviu barulho de metal sendo amassado, mato e árvores arrancados... Depois o fogo, o fogo! Tão quente, tão quente... Mamãe, mamãe! Isabel viu algo e voltou a si:
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- Aqui! – gritou apontando uma saída em terra que acabara de passar à sua direita. Stevan freou jogando o carro pro acostamento. O carro ainda rodou cerca de 25 metros antes de parar totalmente.
O homem lançou o braço grosso e repleto de cabelos loiros no encosto traseiro do assento da menina e virou meio corpo para trás. Isabel sentiu o cheiro do braço dele, um cheiro diferente do cheiro do seu pai, mas de alguma forma parecido.
O pai as esperava no sítio e já deveria estar preocupado. Stevan iniciou uma furiosa manobra de marcha à ré. Isabel sentia-se protegida por aquele imenso desconhecido: louro e peludo; esforçava-se para acreditar que ele daria um jeito e traria mamãe de volta; de volta do fogo.
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O homem peludo freou novamente o carro fazendo pedriscos rangerem sob os pneus. Parou de frente para o local que Isabel apontara.
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- Foi daqui que veio, filha? – perguntou indicando com a cabeça a escura estrada de terra que se revelava sombriamente diante dos dois.
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- Foi. - Você tem certeza, meu bem? – Stevan achou que a menina deveria ter se enganado. Estavam pelo menos a 3km da sua casa em uma linha reta.
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- Tenho, tenho sim! – respondeu começando a chorar um choro nervoso.
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- Vamos lá então. A caminhonete avançou devagar pela estradinha escura, ladeada por mato alto e iluminada pelos potentes fachos dos faróis bi-iodo. O piso irregular não permitia velocidade.
Stevan avançava resoluto, mas devagar, torcia o volante hora para um lado hora para o outro, de forma a desviar dos ressaltos e depressões do solo de terra batida. Os dois permaneceram em silêncio por cerca de 200 metros enquanto o carro rangia nas suspensões e avançava.
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- Filha?
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- Oi.
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- Olhe para mim, você tem certeza que andou isso tudo?
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- Tenho sim – Isabel respondeu olhando com seus olhos incrivelmente negros e redondos para o homem. Em seguida voltou a olhar para a frente e a se lembrar vagamente de ter feito aquele caminho, a pé, correndo.
Ainda havia a luz do dia e ela corria rápido, muito rápido; rápido como nunca correu. Parecia saber aonde ir pedir socorro. De repente Stevan parou. Girou a manivela descendo totalmente a janela, virou as chaves no contato desligando o motor e apontou o ouvido para fora. Fez um gesto brusco com a mão na direção da garota, como para pedir silêncio total. Podia ouvir barulho de vozes ao longe, parecia vir uns 100 metros adiante de onde eles estavam. Isabel ouviu também e ajoelhou no banco excitada, pondo as mãos sobre o painel para ver se avistava algo.
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- Senta, filha, senta rápido! – ordenou o homem antes de engatar a marcha e partir cantando os pneus e levantando poeira. A menina se desequilibrou e caiu sentada no banco. Sentia uma veia do pescoço pulsar e o coração bater com força. Pensava na mãe. Queria acreditar que a mãe estaria bem, que apareceria de repente e viria correndo e gritando "Isaaa! Aí que susto meu amor! Você está bem? Onde você estava?".
Menos de 100 metros à frente, Stevan parou o carro novamente, desta vez aplicou tanta força no pedal de freio que o carro estancou lançando a menina à frente a fazendo-a cair em pé no assoalho com o queixo próximo ao painel. Não se machucou, mas ficou na estranha posição de alguém que espia na ponta dos pés por sobre um muro. A garotinha não teve tempo de dizer uma palavra. Ficou ali, parada, assistindo pelo vidro àquele gigante pular do veículo e correr pesado em direção às luzes e aos carros parados logo adiante.
Com seus olhos arregalados pelas possibilidades, podia ver fumaça ao longe, homens de capacetes vermelhos e macacões cinza. Bombeiros, ela sabia.
Luzes coloridas azuis e vermelhas lambiam a escuridão em círculos silenciosos se misturando aos fachos dos faróis dos carros que revelavam trechos da mata. Conseguia ouvir ruídos de vozes que saiam dos rádios das viaturas e a conversa dos homens que tratavam a respeito de guinchos e tratores.
Isabel viu quando o homem grande se aproximou correndo do grupo de policiais e falou a eles alguma coisa, em seguida se virou apontando na direção da caminhonete. Viu quando 2 deles saíram do grupo e vieram em direção ao carro...
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Stevan convenceu os policiais de que era um parente da família. Desceu com a ajuda de um soldado por uma corda, o íngreme barranco que levava até o acidente. Misturado ao matagal pôde ver um carro capotado com as rodas para cima e parcialmente incendiado...
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... Os 2 homens abriram a porta ao lado da menina. "Vão me levar para ver mãe", ela pensou. Isabel olhou bem nos olhos de ambos e não conseguiu dizer nada, apenas estendeu os braços para ser pega no colo. Estranhamente eles não lhe dirigiram nem uma palavra e nem corresponderam ao seu gesto. Pareceram não tê-la visto ali, em pé. Apenas vistoriaram o interior do veículo e partiram batendo a porta...
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... Stevan chegou à parte baixa do precipício. O policial que o acompanhava agachou ao lado de um saco fechado por um zíper e lhe disse de forma grave e em tom respeitoso:
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- Senhor, a mulher foi levada para o hospital em estado grave, mas com vida. Infelizmente esta criança não resistiu. Achamos que morreu instantaneamente, lamento muito...
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A menina continuou olhando pelo pára-brisa, continuava em pé, as mãos novamente apoiadas sobre o painel; fitava imóvel cada movimentos do grupo de policiais. Ansiava por ver sua mãe aparecer, de repente, por entre aqueles homens para buscá-la. Pensava no que ouviu os homens que vieram ao carro comentar enquanto partiam deixado-a de braços estendidos: “mas cadê a garotinha que ele mencionou?”. Isabel achou que de alguma forma, não a enxergaram ali. Estava com medo, medo e frio. Começou a chorar e a tremer. Passou a pedir em voz baixa ao Papai do céu que trouxesse mamãe de volta do fogo: “Por favor, papai do céu, por favor, por favor...”
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... Stevan assentiu com os olhos e o policial desceu o zíper do saco preto de lona com o logotipo da cruz vermelha impresso. A imagem que surgiu aos olhos do homem o fez estremecer de horror. Dentro do saco, jazia o corpinho de uma menina de não mais que 5 anos, ensangüentado e parcialmente desfigurado; o rosto parte queimado, parte sujo de terra, deixava entrever um pequeno trecho de uma tez muito branca. De um lado do ombro, ele pode reconhecer o cabelinho liso e negro caindo sobre um conhecido vestido branco com flores miúdas amarelas e vermelhas.
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Cesar Cruz
Agosto 2007
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3 comentários:

Anônimo disse...

Oi, César.

Este é o conto que mais gosto. Nota 10 ! Parabéns.

Beijo, Tânia

19.3.08

Anônimo disse...

todos viveram felizes para sempre....... cansei de historinhas que tudo termina nisso: tiveram filhos e viveram felizes para sempre.
GOSTEI!!!
INDIQUEI PARA A PROFESSORA DE LITERATURA DA ESCOLA!

Alessandro

10.6.08

Anônimo disse...

Oi Cesar,

Muito bom.

Você conseguiu criar um suspense!

Você está realmente evoluindo. As comparações, as descrições dos cenários e as características dos personagens estão muito mais trabalhadas.

Beijos
Martha

29.9.08