Cadeia alimentar

Conto publicado no Jornal do Cambuci & Aclimação*
Edição 1142 - Agosto 2009.
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Dorival jantava na cozinha com sua mulher. Em dado momento, entre uma garfada e outra, passou a se queixar das coisas ruins que aconteceram a ele naquele dia. Então, como ocorria sempre, este seu queixar foi ganhando corpo, crescendo, transformando aquela sensação de injustiça e autocomiseração em fúria. Logo Dorival rasgava o pão com raiva, batia os talhares com força e vociferava de boca aberta revelando, além da comida semimastigada, todo o seu ódio pelo Metrô que entrou em greve, pelo chefe que pegou no pé, pelo dinheiro que nunca dava para nada e pela comida que, além de fria, estava ruim.
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Num afluxo de ira, levantou-se da mesa derrubando a banqueta e assustando a mulher. Levou o prato com quase toda a comida à lixeira sobre a pia. Enquanto xingava e empurrava, com a ajuda da faca, os punhados de arroz, legumes e carne para dentro do cesto, veio à sua mente uma imagem que, como na música do Chico, o fez calar com a boca cheia de feijão.
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Involuntariamente, começou a rememorar um programa que assistira havia anos na TV, do qual, acreditava, nem se lembrasse mais. Era uma reportagem jornalística que mostrava a rotina de um pai de família com mulher e três filhos, que diariamente disputava com cachorros sarnentos e urubus, no aterro sanitário de São Mateus, na periferia de São Paulo, a posse dos sacos mais gordos de lixo. A equipe familiar, todo o dia se postava ali, para revolver os detritos à cata da comida que os paulistanos cuspiam fora. Vinham cedo para não perder a hora boa, a hora da chegada dos caminhões basculantes que, vergados, vomitavam seu conteúdo gerando enormes pilhas azuis e pretas.
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A reportagem era de um impactante didatismo. A filha mais velha, menina inteligente, articulada, mas de feições sofridas, de uns onze anos, explicava de forma quase professoral os passos do processo de catação. Após uma hora de busca e seleção, todo o alimento encontrado pela família era limpo, recondicionado e colocado em um pequeno fogareiro ali mesmo, no meio da sujeira. Eram pedaços de carne, restos de arroz, feijão, macarrão e frango que eram separados de vidro, papel, embalagens, tocos de cigarro, chumaços de cabelo, fraldas e absorventes, compondo, assim, o cardápio para mais um dia.
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Então todos se assentavam em torno da panela, cansados, mas felizes. Faziam uma oração agradecendo a Deus por terem o que comer e, debruçados, empunhando colheres afoitas, devoravam rapidamente aqueles restos requentados. O pai completava a informação ensinando à repórter, visivelmente chocada, a importância de se observar que coisas que parecem podres, geralmente, estão apenas estragadas por fora. Após uma boa raspagem, ainda é possível se aproveitar boa parte de quase tudo.
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Dorival voltou à sua realidade com uma sacudida da mulher que o agarrava pelo braço, assustada com seu súbito estancamento e com seu olhar vidrado nos azulejos sobre a pia.
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Ainda impactado pela lembrança, o homem depositou o prato com um pouco da comida na mesa, buscou um saco plástico limpo e acondicionou, de maneira cuidadosa dentro dele, o que sobrou do seu jantar. Fechou o pacote com um amarrilho e, como se guardasse um objeto frágil no fundo de uma gaveta, acomodou-o dentro do cesto de lixo. Foi para a sala em silêncio e sentou-se na cadeira em frente à TV, sentindo um misto de vergonha, tristeza e impotência.
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Enquanto o telejornal tagarelava palavras sem sentido, ele só conseguia pensar que, para alguma família, naquela absurda cadeia alimentar humana, aquilo que para ele é lixo acabaria sendo uma abençoada refeição, dali a um ou dois dias.
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Cesar Cruz
Junho/ 07
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*crédito dos parceiros no rodapé do blogue
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4 comentários:

Anônimo disse...

Carta enviada ao Jornal do Cambuci
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Caro Cruz (e amigos deste Jornal),

Não é de hoje que aprecio suas escritas semanais neste simpático jornal. Suas palavras são lépidas e faceiras. Escorrem rápidas pelo entendimento do leitor, que, enquanto as lê, nem se dá conta de que já se acabaram, deixando-o na vontade de mais... Isso é a leveza e a velocidade juntas numa equação invulgar. Não sei se conheces o conceito literário que explica a diferença entre a pressa e a rapidez.

Disse invulgar, pois a pressa é o desleixo, o relaxamento e o descuido, erro que não cometes; já a rapidez, pode ser uma virtude que vai ao encontro das necessidades modernas, de um tempo que urge sobre as pessoas, empurrando-as para suas inúmeras outras atividades cotidianas, incessantemente.

Os textos rápidos e eficazes, como os seus, além de não serem simples cascas, onde não há vida por detrás (onde não se acha nada de palpável ou crível, apenas maquilagem e factóide), são bons para se ler de uma assentada, num trajeto de ônibus, numa espera de médico ou em duas paradas nos semáforos da cidade. São eficazes, visto que depois da leitura, deixam-nos um resíduo que leva-nos à reflexão, à lenta digestão de sua mensagem; ou ainda, imprimem em nossos rostos um sorriso que perdura, dado o humor e a leveza cotidiana da história.

No conto, O Homem Suprimido, que li no site do jornal e também no jornal propriamente dito, encontramos matéria orgânica pungente. O leitor experiente e atento, que lê por de trás das palavras, saberá que aquela fantasia insólita, representa nada mais nada menos, do que o esmagamento social de um indivíduo, que poderia ser qualquer um de nós, e que se vê alijado da sociedade, abandonado por uma mulher, esvaindo-se dia a dia como ser humano, até que não seja mais nada, apenas um ouvido que ainda escuta o mundo prosseguir indiferente, sem se preocupar com sua sorte; ele agora se acha irremediavelmente vencido, visto que não tem mais braços nem pernas para lutar por mais nada. É a imagem dos nossos tempos. A vida que esmaga as pessoas. Esplêndido!

Parabéns a você e ao jornal,
Flávio Peres
Professor de literatura dramática
morador da Vila Monumento

Donizete disse...

Bom dia Cesar!!! já li varias das suas histórias no jornal do cambuci e gostei de cada uma. Mas nunca tinha entrado aqui no seu blog. Muito bom!!! Cada história que voce escreveu aqui que vou te contar em!!!
Absurda e triste essa cadeia aimentar humana!!! assino em baixo com tristeza.

abração
Donizete, 26 anos, comerciante,
Liberdade

Luiz Rogério de Carvalho disse...

Meu caro Cruz,

Acabo de ler o belo conto Cadeia Alimentar. Parabéns pela maneira que, com inteligência e sensibilidade, abordastes um tema que é parte integrante da realidade brasileira.
Pena que nossa revolta com as injustiças e desigualidades sociais não encontre eco nos dirigentes deste país tão maltratado. Mesmo assim, vamos continuar nossa caminhada, ainda que correndo o risco de nos tornarmos Quixotes, tentando destruir os moinhos da imoralidade, que tem sido a tônica da política brasileira.

Um grande abraço

Luiz Rogério de Carvalho
Florianópolis-SC
Blog do Tio Ruja

sueli schiavelli jabur disse...

adorei seu blog, li seu texto muito bom, pena não acesso ao jornal ao qual você escreve, mudei-me de sampa, há alguns anos, morava no meu querido e amado bixiga, hoje pela primeira te faço uma visita e espero voltar sempre, pois o que é bom merece ser visto e recomendado,
http://suelischiavellijabur.blogspot.com.br
cidade: mongaguá
bairro: agenor de campos