A cadeira do dragão

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Capítulo I
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O homem de cabelos brancos escorregou uma nota graúda pela superfície de madeira encardida do balcão, ao seu lado havia uma resistência de chuveiro, um metro de fio para instalações em 220 volts e um rolo de fita-isolante.
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O comércio escuro, decadente e com intenso odor de tijolo molhado assemelhava-se a um calabouço. Na fachada, o letreiro gasto explicava que ali funcionava uma loja de utilidades domésticas e materiais para construção. Em situação de semi-abandono, o estabelecimento estava em semelhantes condições às do bairro operário em que estava localizado havia quatro décadas.
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Atrás do homem, três estantes metálicas serviam como prateleiras para produtos velhos enfiados em embalagens amarelas e empoeiradas, alguns, como donzelas amadurecidas, aguardavam havia anos por um comprador que ameaçava nunca chegar.
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Na parede à esquerda, pendurados em ganchos que pendiam do teto, havia vassouras, rodos, baldes, desentupidores e esfregões. Ao fundo, encaixados em um baixo e comprido suporte de madeira, um canavial de canos plásticos brancos e marrons, de diversos calibres, se erguia em direção ao teto; ao lado escadas de madeira e metálicas se avolumavam encostadas umas às outras.
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- O senhor não tem trocado? Já estou fechando e não tenho como trocar este valor – a mulher atrás do balcão desencaixou o organizador de notas de dentro da gaveta da máquina registradora e com a mão livre vasculhou o fundo vazio como que para corroborar o que acabara de dizer.
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A máquina registradora era um daqueles velhos modelos fabricados em ferro bruto; enorme, parecia pesar uns vinte quilos. As teclas alfanuméricas coloridas e gastas distribuíam-se ao longo de cinco degraus; pela lateral podiam-se ver as hastes metálicas que acionavam os resistentes mecanismos que ainda sobreviviam bravamente a dedos pesados e desinteressados.
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- Não, infelizmente só tenho esta nota comigo – respondeu o homem enquanto se certificava enfiando as mãos nos bolsos da calça e no bolso da camisa. Irene, que até então não havia reparado com atenção no freguês, levantou o olhar assustada. Havia algo de familiar naquela voz.
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- Nossa. Eu acho que conheço o senhor – falou pregando-lhe os olhos azuis e as pálpebras enrugadas e franzidas, gesto que poderia passar como uma simples expressão de curiosidade, mas não o era. Irene sentiu-se tomada por uma repentina certeza de que conhecia o homem.
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- Ah, acredito que não me conheça, senhora – replicou o freguês desviando os olhos dos da mulher e inconscientemente alterando em um tom a sonoridade da voz -, sou de outro lugar e nunca estive por aqui.
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Irene vasculhava sua memória a procurar de sons, imagens ou lembranças que pudessem se unir em uma construção lógica para lhe trazer uma resposta. O homem aparentava idade avançada, parecia ter algo como vinte anos a mais do que ela; talvez estivesse próximo dos oitenta.
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Enquanto o olhava, naquele instante de silêncio, achou que ele poderia ter sido amigo do seu pai; talvez fosse uma lembrança de sua infância, possivelmente da época em que o finado seu Laurêncio organizava grandes almoços para mais de cem amigos.
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Irene achou que o homem mentia ao dizer que não era dali. Como alguém que está só de passagem compra resistência de chuveiro? Lembrou-se de ter reparado na dificuldade com que ele passou pelo ressalto da portinhola metálica - que era o único acesso ao estabelecimento naquele horário. Ela já estava para fechar a loja quando uma cabeça branca de algodão enfiou-se no vão da porta e indagou “Ainda dá tempo de atender a um último freguês?”.
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Todos os dias, às dezoito horas, Irene descia a porta de enrolar, mas sempre deixava aquela portinhola aberta para permitir um mínimo de ventilação e a entrada de alguma luz. As poucas lâmpadas fluorescentes que pendiam do teto presas por correntes e teias, já não tinham mais a mesma vitalidade que tiveram um dia.
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Seus olhos permaneciam sobre ele; conhecia-se suficientemente bem para saber que um mistério como aquele não a deixaria atinar o sono naquela noite. O velho com um sorriso simpático, mas com os olhos estranhamente desviados, prosseguiu:
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- Eu deveria ter imaginado que num horário desses dinheiro trocado é artigo raro, mas se a senhora não se incomodar, posso vir buscar o troco amanhã, afinal um velho aposentado como eu não tem muito que fazer além de esperar pela morte.
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De repente Irene teve a impressão que o homem suava na testa e tentava disfarçar a voz. Ocorreu-lhe perguntar:
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- O senhor disse que é de outro estado? Desculpe-me, mas de onde é exatamente?
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Com um fortuito olhar em direção à porta, calculou a distância e o tempo que precisaria para cruzá-la e desaparecer dali sem dizer mais nada, mas achou que poderia estar exagerando em seu medo. Preferiu então contar uma história que inventara, cuidadosamente, havia muito tempo; justamente para ser usada em momentos como aquele.
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Apesar de ter feito a pergunta, Irene não estava interessada exatamente na resposta; sentia que ele mentiria de qualquer forma. Estava concentrada em captar dados subliminares que orbitariam, inconscientes, ao redor do discurso do velho.
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Enquanto ouvia, Irene desviou o olhar daquele rosto profundamente sulcado pelo tempo e foi descendo-o pelo braço emagrecido e manchado, até pousar sobre uma das mãos que repousavam sobre o balcão. Repleta de salientes tendões e veias azuladas, o dorso da mão apresentava uma grande mancha quase ao lado do polegar, uma mancha escura e disforme, do tamanho e do formato de uma folha de hortelã. Ao vê-la, Irene recolheu instantaneamente suas mãos do balcão como se tivesse sido subitamente eletrocutada, e recuou dois passos até dar com as costas na parede.
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- A senhora está bem? – perguntou o velho - Eu disse algo que a aborreceu?
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Agora ela sabia quem era ele, tudo se ligou, a voz, os olhos, a mancha na mão. O educado senhor parado à sua frente não era nem sombra do homenzarrão taludo que fora quarenta anos antes.
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Irene não podia acreditar que aquilo estivesse acontecendo, o protagonista dos seus pesadelos agora estava ali, parado na sua frente, transformado em um velho simpático.
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Respirou fundo e sentiu o ar abrasar os seus pulmões. Minuscúlas estrelas coloridas pipocaram na sua retina. Esforçou-se para que seus joelhos não fraquejassem. Finalmente se recompôs.
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- Não foi nada, é a minha pressão que às vezes cai um pouco – disse, achando que o som da sua voz soou muito artificial.
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O homem sorriu e comentou algo sobre como é difícil envelhecer, mas ela não estava mais ali.
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Irene estava agora em 1969, início do governo do General Médici. Aos 23 anos, era uma estudante de jornalismo, idealista e sonhadora. Assim como a maioria dos jovens da época, não aceitava a mão de ferro de um regime ditatorial que tolhia a liberdade de expressão, censurando, prendendo, torturando e matando os que se atreviam a desafiá-lo. Era o começo dos anos de chumbo. Os militares tinham por objetivo combater o “inimigo interno”, eliminando e calando os “subversivos”, como eram chamados os que de alguma maneira se levantavam contra o regime.
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Em uma manhã de sábado de dezembro daquele ano, ela voltava da padaria para casa trazendo pão, queijo e leite para sua mãe. Um Opala azul parou ao seu lado na virada da esquina, um homem pulou do veículo e a puxou para dentro do carro com tamanha força e astúcia, que ela não conseguiu esboçar a menor reação.
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Foi encapuzada e levada para um lugar que só depois de muitos anos, foi saber onde ficava. Caíra nas mãos dos milicos e acabou nos porões do DOPS, acusada de manter um namoro secreto com um professor que era tido como um dos mentores da insurgência universitária contra o governo.
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Irene mal o conhecia, nunca tivera nada com o tal professor, só que não conseguiu convencê-los disso. Durante meses comeu o pão que o diabo amassou nos porões da ditadura e, por pouco, não morreu.
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Forte como um touro aos 61 anos, sabia de uma única coisa naquele momento: não deixaria aquele homem sair dali de maneira alguma.
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- O senhor aguarde um momento – balbuciou enquanto se deslocava com dificuldade - Vou buscar o seu troco.
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Moveu suas pernas enrijecidas e avançou trôpega em direção à porta. O homem desconfiou, tardiamente, que havia sido reconhecido. Como não percebera antes? A velha ficara sem cor, assustara-se estranhamente; e se não havia troco há um minuto, como agora ele teria surgido? Pensou em fugir, mas dada sua fragilidade física achou que não conseguiria fazê-lo, pois ela já estava junto à porta e a puxava, firmemente, produzindo um retumbante eco metálico pelo salão.
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A mulher deu duas voltas na chave dependurada no tambor e retirou-a colocando-a no bolso das suas largas calças de algodão de velha gorda.
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- Delegado Fonseca – disse voltando-se para o velho e fitando-o - Eu não posso nem acreditar... e eu que achei que só te veria de novo no inferno!
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Fonseca ficou paralizado. A mulher, fosse quem fosse, o reconhera. Havia muita gente que poderia reconhecê-lo, mesmo após tantos anos. Era seu passado vindo buscá-lo. Arrependeu-se profundamente de não ter partido dali no primeiro instante em que sua intuição o tinha alertado.
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- A senhora deve estar me confundindo com alguém – disse, procurando disfarçar o choque – Não sou daqui, já lhe disse...
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- Fique quieto! – replicou Irene com energia. Só fale o que eu te perguntar – disse se aproximando dele em passos resolutos até parar à sua frente, corajosamente, com as mãos na cintura.
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- Você achou mesmo que terminaria seus dias em paz depois de tudo o que fez, delegado? Você tem idéia de quantas vezes, nos últimos trinta e oito anos e três meses, meus olhos o avistaram na rua e o perderam? Tem idéia? – Irene falava olhando para cima, dada a diferença de altura.
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- Deve estar havendo alguma confusão, eu... - A mulher parecia não o ouvir, pois prosseguia falando firme, baixo:
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- Tem idéia, delegado? Tem idéia de quantas vezes achei que tinha te visto atrás de um balcão, dentro de um carro que passava, misturado aos rostos na multidão? Tem idéia de como é viver uma vida assim?
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Fonseca estava nauseado pelo medo, não sabia nem ao menos onde pousar os olhos, já que a mulher o pressionava contra o balcão com uma proximidade coercitiva. Podia empurrá-la e tentar sair dali, mas ela não só falava firme, como agia com decisão e o olhava com a confiança de quem pode enfrentar um urso.
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A doença, um câncer no estômago, havia roubado dele quase trinta quilos e o transfigurando em um farrapo envelhecido e irreconhecível. Depois disso Fonseca acabou negligenciando os cuidados que sempre tivera; achou que como não o haviam reconhecido antes, não seria agora, tantos anos depois e naquele estado, que isso iria acontecer.
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- Sente-se ali – a mulher apontou uma cadeira de madeira encostada em um esbelto pilar que parecia se esforçar para segurar sozinho a laje.
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- Não sei com quem a senhora está me confundindo, sou apenas um velho – Fonseca sabia que não adiantaria argumentar, os olhos da mulher mostravam certeza.
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Ruminava uma forma de sair daquela situação, mas ela os havia trancafiado e ele sabia que não conseguiria manter uma luta corporal contra aquela velha robusta com a mínima chance de sucesso.
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- Cale a boca, delegado, sente-se aí de uma vez - Irene escoltou-o firmemente até a cadeira agarrando-o logo acima do cotovelo de um dos braços finos, como um jovem que leva um velho à sua mesa no restaurante. Fonseca sentou-se com dificuldade deixando a bengala lhe escapar das mãos. Irene recolheu-a com agilidade do chão e atirou-a para o outro lado do salão num gesto rude que contrastava com a calma que, apesar da decisão, vinha demonstrando.
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- Você não precisará mais dela – falou encaminhando-se a uma das prateleiras e pegando um rolo largo de fita veda-caixote cor de carne - ponha os braços ao lado do corpo – ordenou em voz baixa.
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- O que a senhora vai fazer? – suplicou o velho – Eu não sei o que posso dizer para a senhora acreditar que não sou esta pessoa que pensa que sou...
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Irene soltou uma ponta da fita com a unha do dedo mínimo e colou-a ao peito magro do homem. Tracionou o rolo dando a volta em todo o perímetro do seu tronco, envolvendo-o juntamente com a cadeira e a coluna de concreto. Refez as voltas diversas vezes e em cada uma delas alterava a angulação para abraçar peito e abdômen com igual firmeza. Por fim curvou-se sobre ele e cortou a fita com os dentes.
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- Por favor, vamos conversar, não exagere com isso, que mal eu posso te fazer? – Fonseca estava especialmente assustado com a maneira pragmática com que a mulher agia. Ele havia feito algo de terrível com ela e ela iria se vingar, estava claro. Ele deveria ter ido embora sem olhar para trás na mesma hora em que ela o fitou daquela maneira, não se conformava de não o ter feito.
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- Ah, nenhum! Hoje você não pode mesmo me fazer mais nada, delegado. Mas já fez! Eu passei os últimos quarenta anos sofrendo os resultados físicos e psicológicos das torturas que sofri – Irene falava sem olhá-lo, estava concentrada em achar a ponta da fita que se escondera novamente no rolo. Assim que conseguiu colou-a nas coxas do velho e repetiu a operação anterior, prendendo-o com força ao assento, dos joelhos à pélvis.
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- Está firme aí, delegado? É bom que esteja, pois vai precisar.
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Fonseca foi sendo tomado por um sentimento de autopiedade. Havia passado a vida tentando esquecer o passado e o mal que havia feito a tanta gente. Arrependeu-se, aceitou Jesus, passou a fazer obras de caridade que serviam para compensar o peso que carregava. "O que a mulher iria fazer com ele? Quem era ela?" – ele se perguntava - Fosse quem fosse ela não parecia muito predisposta ao perdão.
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Irene sumira do seu campo de visão há alguns minutos e o deixara ali. Agora surgia do fundo da loja trazendo outra cadeira. Colocou-a invertida bem à sua frente e sentou-se nela a cavalo. Cruzou os braços sobre o encosto e passou a observá-lo fixamente.
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Ficaram ambos em silêncio. Fonseca baixou a cabeça, mas de um certo ângulo conseguia espiar os movimentos da mulher sem que ela percebesse. Seu cérebro fervia em pensamentos desordenados. Lamentava o momento em que resolveu sair à rua, mas havia prometido arrumar aquele chuveiro queimado e não teve escolha. Ah! Se ele soubesse! Nunca poderia imaginar que naquela altura da vida iria ter um encontro cara a cara com seu passado.
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Irene sorria-lhe, o sorriso cínico dos vitoriosos, e meneava a cabeça; seus olhos não se despregavam do homem.
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- Olhe pra mim – sussurrou –, olhe aqui bem nos meus olhos e diga que não se chama Fonseca, que nunca foi delegado e que nem imagina do que eu estou falando. Vamos, diga isso olhando nos meus olhos.
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Fonseca não via forma de sair daquela situação. Tinha mentido e isso seria um agravante. Levantou os olhos marejados e olhou para Irene.
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- Não vou mentir. Sou eu mesmo. Mas não me lembro exatamente de você.
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- Maldito! – bradou, saltando subitamente da cadeira como se saltasse de uma égua brava - Então não se lembra exatamente? Ah, desgraçado! Pois saiba que eu tenho pesadelos com você há décadas! – virou-se e caminhou com as mãos sobre a cabeça movimentando-a de um lado para outro como quem nega um absurdo. Voltou-se novamente para o homem pregando-lhe dois olhos fuzilantes de indignação:
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- Vejo que você achou mesmo que ia envelhecer em paz depois de tudo o que fez, “não me lembro exatamente de você”, é claro que não lembra! Imagino quantas jovens como eu você torturou e violentou naqueles anos de ditadura! Mas eu me lembrei de você e dessa sua voz nojenta que fui obrigada a ouvir em meio a todas as barbaridades que vocês fizeram comigo!
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Sentou-se ofegante na cadeira, baixou a cabeça sobre o encosto e respirou longamente expelindo o ar devagar por alguns minutos. Só então olhou para o homem e voltou a falar, desta vez em voz baixa:
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- Você acabou com a minha vida, acabou com a minha juventude e com a minha paz. Nunca mais tive uma noite sequer de sossego, só pesadelos, demônios, gritos de horror aqui dentro da cabeça, no escuro da noite. Você não imagina o que é isso.
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“Está firme aí, delegado? É bom que esteja. Vai precisar...” Fonseca de cabeça baixa pensava no que a mulher havia lhe dito. Ela iria torturá-lo, era certo isso. Matá-lo, talvez. O truculento delegado de uma época, agora era apenas um velho rendido. Mechas dos seus cabelos brancos e suados estavam colados à testa, os olhos vermelhos e inchados.
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- Essa mancha nojenta ai na sua mão, foi ela que te entregou. Eu podia nunca ter te reconhecido, mas essa mancha... Ah, essa mancha eu procurei pela vida nas mãos de homens homens em toda parte que estive! Todos, que de alguma maneira, eu achei que pudessem ser ao menos parecidos com você, eu logo olhava as mãos para ver se encontrava a mancha ali, me aguardando.
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Fonseca olhou para o dorso da sua mão atada ao lado do quadril. Lá estava ela, a mancha que o acompanhava havia setenta e oito anos. Lembrou que por muitas vezes após o fim do regime, cogitou retirá-la cirurgicamente, mas não o fez.
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Capítulo II
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Fonseca sentia-se indefeso e com sua fragilidade senil escancarada. Achou que seria incapaz de resistir ao horror de ter que padecer resignadamente a uma sessão de tortura naquela altura da vida. Nunca esteve em uma situação em que se sentisse indefeso, inerme e à mercê dos caprichos vingativos de alguém que o odiasse, com razão. No entanto, acreditava que a mulher não poderia ir muito longe.
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Seria improvável ela matá-lo ali na loja. O que faria com seu corpo depois? Os vizinhos certamente ouviriam algo. Provavelmente ela deveria ter funcionários que chegariam cedo pela manhã. Poderia torturá-lo? Parecia improvável, a mulher não passava de uma velha, não tão velha quanto ele, mas ainda assim uma velha gorda. Um torturador tem que ser treinado, preparado para a função. Uma dose de raiva e mágoa não torna ninguém capaz de praticar tortura física em outro ser humano.
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Seria possível que a mulher morasse na sobreloja, que parecia existir no segundo pavimento, conectada por uma escada de concreto em espiral que se escondia entre as sombras no fundo do salão, mas aquilo poderia ser apenas um depósito de trastes ou um almoxarifado; entretanto, pelo abandono do local, seria pouco provável que a mulher mantivesse um local com essa finalidade.
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Caso ela morasse ali, existiam algumas opções a serem consideradas. Ela poderia viver sozinha ou com marido. Poderia ter filhos ou não. Poderia ter filhos casados morando em outro lugar. Poderia, ainda, ter marido e, se o tivesse, era de se estranhar o fato do homem não ter aparecido até aquele momento caso a sobreloja fosse realmente sua residência, pois ali poderia haver apenas um cubículo ou um banheiro.
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Supondo ainda que a mulher fosse casada, existia a possibilidade do marido a estar esperando em casa, neste caso, logo estranharia o atraso; se bem que ele poderia ligar. Porém, teria ela um telefone na loja? Talvez ela vivesse só; talvez fosse viúva; talvez nunca houvesse se casado nem tido filhos. Eram muitas as possibilidades, mas avaliando todas as combinações, parecia mais plausível a ele que a mulher residisse ali mesmo, sozinha, na sobreloja.
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Irene, que estava em silêncio apenas observando-o, assustou-o ao lhe perguntar:
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- Delegado, você já tomou uma injeção de éter na sola do pé? – Fonseca mantinha a cabeça curvada para não cruzar diretamente o olhar com o de Irene, pois poderia parecer a ela que ele a estava afrontando, e tudo o que ele não pretendia fazer era irritá-la.
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- Já experimentou uma sessão de afogamento dentro de um barril? Já foi queimado com ferro em brasa ou incendiado com gasolina? A cada pergunta Irene levantava a voz e espichava um pouco mais o corpo à frente, inclinando a cadeira e dando pausas como se esperasse que o homem as respondesse.
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- E queimaduras de cigarro nos mamilos? – agora falava alto, nervosa – Perdeu a língua? Ah! Justo você que gostava tanto de conversar, delegado, que pena! Por falar em língua, podemos prender a sua em uma morsa. Ah! Essa eu conheço bem, você vai gostar! Irene irritava-se com seu próprio sarcasmo, que despertavam lembranças que estavam adormecidas dentro dela havia anos.
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- Oh, desculpe, que indelicadeza; talvez você prefira sugerir alguma coisa! Fique à vontade, posso atender a encomendas. Irene calou-se, endireitou a cadeira e pareceu se acalmar um pouco.
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O silêncio reinou, dessa vez por longos minutos. Lá fora, a noite já se instalara totalmente trazendo uma quietude atípica para o horário, porém comum para uma região fabril.
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Um ônibus passou em velocidade rugindo como um trovão na rua em frente à loja e emitindo sons que pareceram a Fonseca deliciosos indícios de vida e liberdade, mas que rapidamente se dissiparam deixando apenas o silêncio, opressor.
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- Delegado, delegado... Devem existir centenas de seres desprezíveis como você espalhados por aí e que não foram sequer citados em processos criminais e o pior é que a maioria acabará impune.
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Irene abandonara o ar sarcástico e dessa vez parecia esperar a concordância de Fonseca, como se falasse para conscientizá-lo da envergadura do mal que causara. Levantou-se e caminhou pelo salão segurando as maçãs do rosto com as palmas das mãos.
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Fonseca achou que ela deveria estar pensando o que fazer com ele. Do ângulo em que sua cabeça curvada permitia observar, viu-a circular lenta e pensativamente até voltar-se para seu lado. Por fim parou em pé à sua frente.
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- Delegado, você sabia que tortura é crime imprescritível? - calou-se aguardando uma resposta - Responda minhas perguntas, desgraçado! – berrou, produzindo um solavanco de susto no velho, que desandou a falar, em descontrolado nervosismo:
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- O que você quer que eu fale? Sim, sou culpado, mas o que eu poderia fazer? – disse choramingando - Eu era um funcionário a mando do Estado, recebia ordens, mas estou arrependido, já me arrependi há muito tempo e... – o velho irrompeu em choro convulsivo. Irene reagiu com fúria, dando-lhe um tapa no rosto e fazendo-o engolir o choro e perder a contenção muscular da bexiga. Urina quente escorreu por entre suas pernas e pelo assento de madeira.
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- Mentira, maldito-desgraçado! - esbravejava projetando-lhe perdigotos mornos no rosto - Você tinha prazer naquilo, e não me diga que não! Ninguém me contou, eu vivi na pele, na PE-LE! – Sua face enrubesceu e seu pescoço inchou, uma veia espessa saltou verticalmente no centro da sua testa.
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- Eu era só uma garotinha, só uma garotinha. Por que tanta maldade e violência? Por que, delegado? Me diga: por quê?– Irene passara surpreendentemente de um estado de nervosismo extremo para o entristecimento melancólico; de repente parecia cochichar como quem espera complacência:
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- Como vocês puderam? Como tiveram coragem?
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Os humores da velha eram instáveis. O cerco estava se apertando. Fonseca permanecia calado sem saber que espécie de argumento poderia utilizar para mudar sua situação, qualquer coisa que dissesse poderia fazê-la reagir de forma inesperada e violenta. Ocorreu-lhe gritar como último recurso, mas conscientizou-se de que não haveria ninguém nas imediações, de modo que tal atitude não teria efeito algum se não produzir na mulher um novo acesso de perigosa ira. Estava tonto e nauseado, todo o salão parecia ter ficado escuro, adquirido uma tênue coloração sépia, como se as cores tivessem perdido sua vitalidade e se entregado, como ele, ao medo avassalador.
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Irene, que estava em pé à sua frente, passou a abrir um a um os botões da sua camisa, até que a tirou soltando-a ao chão. Olhou para Fonseca com uma expressão fria e indefinida, quase nula. Fonseca devolveu-lhe o olhar, sua face estava congestionada pelo choro e pelo caos emocional. A mulher levou as mãos às costas e soltou o sutiã que desabou aos seus pés revelando em lugar de seios e ventre, cicatrizes largas e espessas, como quelóides que formavam em vários pontos terríveis rugosidades escurecidas que se projetavam como tentáculos de polvo do umbigo ao colo e do colo ao pescoço.
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Irene ficou assim, seminua, apenas olhando-o. Mantinha no rosto aquela expressão indefinida que só contribuía para agravar o quadro de temor que ganhava massa e espinhos no peito do velho.
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- Pelo amor de Deus, o que você vai fazer comigo? – disse ele, desesperando-se pelo que poderia vir após aquela acusação silenciosa e contrita.
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- Ora, mas veja só – disse interrompendo-o com o mesmo tom de voz sereno de momentos atrás -, quer dizer que você agora acredita em Deus? Interessante, realmente interessante – a mulher falou e calou-se novamente voltando a apenas observá-lo por mais alguns instante. Fonseca baixou a cabeça, não conseguia olhar para aquele corpo mostruoso.
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- Na hora do desespero todos se assemelham mesmo – prosseguiu a mulher - Você tinha razão quando me dizia isso – Irene abaixou-se e apanhou o rolo de fita que estava no chão, soltou um pedaço e cortou-o com os dentes. Levantou a cabeça do velho pela ponta do queixo e usando a mão livre colou a fita na sua boca com precisão, calando-o. Em seguida curvou-se até quase encostar nariz com nariz e sussurrou:
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- Pra mim chega, delegado. Você acabou de perder o direito de se pronunciar; provou que continua sendo um crápula, mentiroso e egoísta. Se tivesse mesmo se arrependido e se transformado numa pessoa boa, teria pelo menos uma palavra de consolo para me dar a respeito do que acabou de ver.
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Soltou o rosto do velho, rodou sobre os calcanhares e sumiu por detrás dele, saindo do seu campo de visão. Fonseca passou a ouví-la falando à distância; ela estranhamente parecia se dirigir a ele, mas em voz tão baixa que era como se estivesse falando sozinha.
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- Além do mais eu não queria mais ouvir sua voz. Ouço-a todo dia há quase quarenta anos. Chega! – segundos depois prosseguiu - Quero terminar este pesadelo hoje. Chega, chega, chega!. – mais silêncio e ruído de latas sendo arrastadas pelo chão.
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Fonseca tentou virar o pescoço para olhar, mas uma dor aguda na base da bacia o conteve. De repente teve a certeza de que ela apareceria empunhando um revólver, se aproximaria dele e lhe daria um tiro na cara. Pensou nas horríveis cicatrizes e mutilações no corpo da mulher e preparou-se resignadamente, não havia o que fazer, pelo menos um tiro seria rápido e indolor.
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Após longos minutos e ruídos indefinidos, Irene surgiu. Ainda vestia só as calças e exibia desafiadoramente o dorso deformado e nu. Segurava uma lata retangular nas mãos que depositou sobre a cadeira em frente a ele. Não lhe dirigiu olhar ou palavra.
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- Vamos apagar estas luzes, melhor ninguém saber que estou aqui com você a esta hora - disse, encaminhando-se para a porta. O encosto invertido da cadeira impedia Fonseca de enxergar as inscrições na lata, mas havia um revólver ali dentro, estava certo disso. Velhas comerciantes como ela, costumam guardar pequenas armas em latas espalhadas pelo estabelecimento para o caso de serem feitas reféns. No entanto, Fonseca teve a impressão de que a lata sobre a cadeira parecia estar lacrada.
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A mulher conferiu o trinco para ver se a porta estava mesmo trancada. Por um instante, Fonseca distraiu-se com o olhar e foi ter em algo que ele não tinha visto anteriormente. Na parede acima da máquina registradora havia um antigo relógio dependurado na parede, os ponteiros marcavam 21h40min. Se estivesse certo, significava que ele já estava atado àquela cadeira havia mais de três horas.
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Irene abaixou, de dois em dois, os disjuntores que ficavam expostos na parede sem reboco ao lado da porta. A cada “clack” que ressoava pelo salão um conjunto de luzes se apagava no teto, até que um breu total tomou conta da loja. Fonseca ouviu os passos da mulher vindo em sua direção. Sentiu sua presença e sua respiração quando ela parou ao seu lado. A iluminação vinda dos postes da rua invadia fracamente o recinto pelos vidraças encardidas que ficavam acima da porta de aço.
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As pupilas de Fonseca iam se acostumando ao escuro e ele já conseguia distinguir, com certa dificuldade, a silhueta assustadora de Irene. Ela estava entretida procurando algo no bolso da calça. De repente Fonseca ouviu um ruído característico e bem conhecido. Irene tirou a mão do bolso e jogou sobre a cadeira, ao lado da lata, um pequeno objeto. Uma caixa de fósforos.
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Capítulo III
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Irene recolheu sua camisa no chão e vestiu-a sem sutiã. Abotoou-a, ajeitou-a por dentro das calças moles e arregaçou as mangas, dobrando-as cuidadosamente. Não falava mais nada, como se tudo o que tivesse para dizer já tivesse sido dito. Já bem acostumado à escuridão, Fonseca agora conseguia distinguir razoavelmente tudo ao seu redor.
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Viu quando a mulher se curvou após arrumar as mangas da camisa e apanhou a lata na cadeira. Parecia a ele que ela o espiava de soslaio com uma expressão de satisfação e sadismo no canto da boca e no sorrir dos olhos, mas talvez fosse só uma impressão. Irene levou a lata para perto do rosto, cutucou algo com a unha forçando a vista para enxergar o que fazia. A penumbra e os movimentos que produzia no objeto não permitiam que Fonseca lesse o rótulo. Irene apoiou a lata no meio das pernas e puxou o que parecia ser um lacre plástico no topo do recipiente. Só então, e por um breve instante, Fonseca foi capaz de ler a inscrição: “SOLVENTE DE BORRACHA” escrito em letras grandes; e logo abaixo: “Benzina Industrial – 2lts – atenção - perigo inflamável”. Fonseca sentiu seu corpo regelar e estremecer. Seria pior que um tiro. Ela o queimaria vivo.
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O rompimento do lacre produziu um ruído oco. A mulher colocou cuidadosamente a lata sobre a cadeira para não entornar o conteúdo e encaminhou-se à porta em passos rápidos e macios; agia como uma atarefada mulher de negócios, decidida, parecia liquidar etapas de uma tarefa maior.
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Pegou a chave no bolso e destrancou a portinhola, atravessou-a passando os pés por sobre a chapa metálica com o mesmo cuidado de uma pessoa que chega em casa de madrugada enquanto todos dormem. Ganhou a calçada. A brisa fresca da noite de outono invadiu a loja. De fora não chegava ruído algum. Irene andou um pouco na frente do estabelecimento e por alguns momentos tornou-se invisível aos olhos do velho carrasco.
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Fonseca teve esperanças. Imaginou que poderia ter a sorte de alguém passar e vê-lo ali preso. Agarrou-se àquela tênue probabilidade que, somada ao frescor da noite que soprou sobre seu corpo cansado, revigorou-o um pouco. A porta aberta, a rua, a brisa e a liberdade estavam logo ali ao seu alcance e ao mesmo tempo incrivelmente distantes. O velho facínora não queria pensar, mas os pensamentos se impunham; pensou que seria sua última visão de liberdade naquela vida, seu último sentir de brisa e sua última noite.
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Irene voltou saltando o ressalto da porta com o mesmo cuidado de antes. Trancou a porta produzindo ruídos mínimos, guardou a chave no bolso e caminhou até Fonseca sem dirigir-lhe o olhar. Pegou a lata com cuidado, elevou-a sobre a cabeça do homem que passou a protestar meneando a cabeça para ambos os lados em negação e pronunciando palavras ininteligíveis por detrás da mordaça improvisada. As asas de suas narinas abriam e fechavam em movimentos ritmados de respiração, seus olhos estavam arregalados e suplicantes . Em seu silêncio forçado, Fonseca suplicava por uma última audiência, uma chance. Havia vencido o câncer, perdido um rim, distanciado-se dos amigos e dos parentes. Considerava-se um sobrevivente e, como um jovem, passara a acreditar inconscientemente que o fim de seus dias estaria muito longe, em algum lugar num futuro imprevisível . Não pensava mais na morte. Nunca poderia imaginar que teria sua vida ceifada em um incidente como aquele, obra do acaso e do azar. Nunca achou que ocorreria de forma tão abjeta.
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A mulher entornou o conteúdo da lata de uma vez sobre a cabeça do velho criminoso. Afastou seus quadris e suas pernas para evitar os respingos do líquido que descia gorgolejante e espirrava desordenadamente ao atingir a cabeça do homem.
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Fonseca dobrou o pescoço até colar o queixo ao peito. Tossia violentamente agora, expelindo pelas pelas narinas o líquido que o sufocava. Produzia ruídos desesperados e engasgos violentos. O solvente morno e oleoso, parecia querer invadir todos os orfícios de sua cabeça; escorria por sua face e caia sobre seu colo, abundantemente. Fonseca sacudiu a cabeça como um cachorro que se chacoalha na chuva, espargindo gotas por todos os lados.
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Sua agonia durou poucos segundos, pois logo desistiu de lutar e parou, resignado, de cabeça baixa, os olhos apertados queimando de ardor. O líquido de odor intenso e poderoso encharcava-lhe o corpo e invadia-lhe a mente. Sob sua cadeira, uma enorme poça se formava. Irene manteve o punho torcido até que a última gota caísse da lata sobre a cabeça do velho.
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Fonseca podia ouvir seu coração e sua respiração acelerada. De cabeça curvada, avistava o contorno de suas coxas magras sob o tecido das calças encharcadas que aderiam ao seu corpo. Uma veia túmida pulsava em seu pescoço.
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Seria queimado vivo. Conhecia a sensação, mas conhecia-a apenas intelectualmente. Havia estudado a respeito nos treinamentos do DOPS.
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Dizia-se que a sensação do calor intenso e das chamas queimando a pele assemelhava-se à dor resultante de facas afiadas cravadas e torcidas na carne. A princípio a dor seria aguda e lacerante, mas após alguns instantes a violência do calor repentino e avassalador produziria tamanha descarga de adrenalina no corpo da vítima que provocaria confusão no cérebro, dando-lhe a impressão de que o calor se transformara repentinamente num frio extremo, semelhante à sensação que um homem experimenta ao tentar manter sua mão dentro de um recipiente de água muito gelada.
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Irene nunca havia matado ninguém, mas sentia um forte impulso que a impelia a fazê-lo. Aquilo não seria matar, seria justiça, quase nobreza... De qualquer forma não recuaria agora. Queria vingança e sabia que só o fogo poderia lhe trazer. Só o fogo poderia purificar o mal que fora feito e só o fogo poderia queimar suas lembranças. Pretendia se sentar a certa distância e assistir o velho ser incinerado vivo. Queria vê-lo sacudir desesperadamente nos primeiros instantes sob as chamas e, gradualmente, esmorecer em seu esforço para lutar contra as chamas inclementes e ininterruptas. Queria ver seus ossos serem pouco a pouco descarnados e esbranquiçarem-se, até que o homem e a cadeira se confundissem em um monte irreconhecível de carvão e cinzas.
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Largou a lata que caiu ecoando notas metálicas pelo chão. Fonseca respirava os gases tóxicos e sentia-se tontear. Ela iria queimá-lo vivo!
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Apanhou a caixa de fósforos e abriu-a com o indicador. Sacou um palito. Seu coração estava disparado e sua respiração ofegante, sentia um nó na garganta e uma pontada no peito, certamente fruto da mistura dos vapores de benzina e da excitação. Calafrios percorriam o corpo do homem em todos os sentidos. O velho torturador esperava a hora do calor, do calor furioso que chegaria intenso e repentino, lacerante e impiedoso. Iria queimar até a morte e não teria ninguém para socorrê-lo. Pensou na mãe, morta havia muito tempo e chorou tomado por intensa autocomiseração.
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Irene ajeitou o palito entre o indicador e o polegar e apoiou-o na lixa na lateral da caixa. Fonseca baixou a cabeça, apertou os olhos e orou mentalmente a Deus: “Senhor, tenha misericórdia da minha alma e faça com que seja rápido, é o que lhe imploro em nome de Jesus...”.
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De repente um ruído assustador o desconcentrou de sua prece. Fonseca esperava pelo som áspero da lixa da caixa contra o palito, mas o que ouviu foi um guincho como o de um gato pisado no rabo; um grunhido agudo e um tanto abafado que parecia vir da garganta da mulher. Levantou a cabeça e viu Irene bem de perto. Ela havia largado a caixa e o palito que caíram ao chão e tinha agora uma das mãos no peito e a outra esticada por cima dele para se apoiar na pilastra. Seu queixo estava colado ao pescoço e ela parecia bambear. Parecia sufocar-se.
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A escuridão não permitia que ele visse claramente o rosto da mulher para interpretar o que estaria acontecendo. Suas dúvidas não duraram muito tempo, pois os joelhos de Irene dobraram-se em um movimento repentino e ela desabou verticalmente como um prédio implodido, os olhos perdidos em desespero, arregalados pela surpresa. Na queda chocou violentamente o maxilar no joelho do velho e no assento da cadeira entre as pernas do prisioneiro. Caiu ao chão como um velho fardo, sobre a poça de combustível, bem em frente aos pés de Fonseca.
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Durante longos minutos o homem observou a mulher imóvel, ali, espatifada à sua frente. Lentamente foi recobrando o fôlego e se refazendo psicologicamente da descarga de medo que circulara por suas veias na forma de um louco coquetel de hormônios.
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Em certo momento teve a impressão de ter visto a mulher se mover no chão, mas teria sido apenas impressão, provavelmente causada pelo esgotamento psicológico. Tremia de frio, medo e tensão. Finalmente despregou os olhos do corpo caído e olhou para o relógio na parede que indicava 11h50.
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Voltou a cabeça para trás até tocar a coluna de concreto e expirou pelas narinas congestionadas um longo fluxo de ar. Sentia o corpo da mulher pesar sobre suas canelas e pés, mas as amarras adesivas não lhe permitiam flexionar o tronco à frente de forma a poder ver como a mulher estava prostrada. Fechou os olhos e ficou assim por muito tempo. Só respirando. Não sabia o que pensar. Todas as dores latentes em seu velho corpo pareciam querer emergir juntas agora.
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Naquele momento ainda não era capaz de compreender a dimensão do que lhe aconteceria se a mulher tivesse mesmo morrido. Queria acreditar que fosse verdade, mas não se atrevia a tal pensamento. Receava que ela recobrasse os sentidos a qualquer instante. Receava se entusiasmar com a possibilidade de ter se salvado, e de repente se ver de novo no mesmo pesadelo caso ela acordasse.
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Vencido pela exaustão e sem se aperceber, adormeceu. Acordou horas mais tarde com uma luz intensa invadindo o recinto pelas vidraças embaciadas e pelas frestas da porta metálica. Por um breve instante não entendeu onde estava, achou que estivesse sonhando, pois deveria ter acordado em sua cama, na pensão, mas rapidamente tudo se encaixou.
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Olhou para o relógio na parede: 7h20. As partículas de pó em suspensão revelavam-se faceiras sob os fachos do sol matinal que cruzavam à sua frente. Sentiu um peso sobre as canelas. A mulher estava mesmo morta.
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Capítulo IV
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O sol que entrava pelas vidraças trazia um ameno, mas reconfortante calor para o ambiente frio e úmido do salão. A luminosidade de uma nova manhã devolvia ao delegado a esperança que ele já havia perdido depois do que vivera na noite anterior. Sentia dores no corpo e na cabeça, mas de alguma maneira estava espiritualmente renovado após a confirmação da morte da mulher.
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Parte dele acreditava que bastaria se levantar dali, pegar as chaves no bolso da defunta, abrir a porta e sair, mas racionalmente sabia que não conseguiria se livrar sem ajuda e não podia solicitá-la aos berros, pois estava amordaçado. Tratava-se de um paradoxo o fato de ter escapado da morte certa por tão pouco e estar preso àquela situação terrível com a liberdade logo ali, acenando-lhe tão de perto.
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De repente, Fonseca percebeu que estava com a parte debaixo das pernas solta; em meio ao tormento que passara simplesmente não tinha se dado conta de tal fato. Entretanto, a mulher pesava sobre seus pés prendendo-os entre o chão e os pés da cadeira. Mesmo depois de morta ela parecia querer impedir-lhe de exercer qualquer tipo de liberdade, morrera bem ali, propositadamente, para certificar-se de que ele não se livraria dela; era como se quisesse agarrá-lo pelos pés com suas mãos de cadáver gordo.
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Mais de doze horas haviam se passado e ninguém veio procurá-la, nem marido, nem filhos. Ela devia ser mesmo sozinha, como Fonseca previu. Isso agravava sua situação. Se ela não tivesse mesmo ninguém no mundo, Fonseca estaria fadado a ficar ali, naquela masmorra, sentado até morrer de sede e fome.
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Todas as sensações físicas que tinham ficado obscurecidas pelo terror pareciam emergir agora, juntas. Fonseca sentia uma sede terrível, a garganta estava seca e sua língua parecia colada ao palato, sua saliva estava viscosa como cola e ele não conseguia engoli-la.
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A impossibilidade de mover os lábios e abrir a boca, a compressão das fitas contra o peito, a rigidez forçada e o aperto dos quadris sob o assento causavam-lhe uma horrível sensação de sufocamento. Uma de suas narinas estava congestionada e ele respirava com dificuldade pela outra. Assim que se deu conta de tal limitação, descontrolou-se acometido por uma apnéia psicológica súbita, sufocante e desesperadora. Entrou em pânico. Amordaçado, grunhiu e sacudiu-se em seu martírio; lutou para respirar e para livrar-se da cadeira com as forças que só o desespero consegue reunir. Digladiou contra as amarras, contra o defunto que pesava sobre seus pés e contra a mordaça que dificultava sua respiração. Uma luta inglória.
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Seu coração estava disparado, fruto duma angústia incontrolável. Foi tomado por uma sensação de opressão claustrofóbica tão insuportavelmente grande que sentia pontadas de dor agudas em suas têmporas, vertigens, náuseas e fisgadas musculares fortíssimas. Uma mão invisível parecia apertar-lhe a garganta para fazê-lo render-se. Tombou a cabeça ofegante e chorou um choro longo, abafado e dolorido, cheio de autocomiseração pelo destino que o aguardava.
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Algumas horas se passaram. Batidas na porta metálica tiraram-no de um sono provocado pela exaustão. Dirigiu olhos esperançosos na direção do som. Olhou para o relógio na parede. Eram 10h em ponto. Finalmente seu tormento terminaria! Alguém abriria a portinhola e o veria; estaria livre!
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Desgraçadamente o som parecia não vir do trinco, mesmo assim poderiam estar tentando destravar a porta principal pelos tambores junto ao chão. Aguardou; respiração suspensa. Esperou o momento que veria a porta ser rapidamente enrolada parede acima jogando luz do dia e ar puro sobre seu corpo exausto. Não aconteceu.
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Fonseca permaneceu de ouvidos aguçados. Identificava agora vozes muito agudas. Vozes de pré-adolescentes; pareciam compor um trio. Logo compreendeu. Eram meninas que estavam sentadas no chão, recostadas na porta. Seus corpos esguios bloqueavam parte do brilho do sol e produziam sombras no vão inferior da chapa metálica de forma que ele podia identificá-las com exatidão. O peso que exerciam abaulava a porta para dentro formando uma pequena barriga.
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Estavam tão perto, conversadoras e risonhas, certamente ávidas por novidades para colorir suas juventudes irrequietas. Caso o descobrissem ali, contariam por anos a história do dia em que acharam um velho amarrado a uma cadeira dentro de uma loja com uma gorda morta aos seus pés. Seriam heroínas na escola!
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Fonseca precisava achar um jeito de chamar-lhes a atenção. Forçou novamente os braços e os quadris contra as amarras. Se conseguisse soltar um braço estaria livre! Forçou intensamente produzindo uma forte contração isométrica em sua frágil musculatura pélvica, abdominal e dorsal. As vozes das meninas e o barulho produzido pelas batidas de suas costas contra a porta, traziam-lhe ânimo crescente. A liberdade estava a poucos metros. “Se fosse há alguns anos, eu estouraria isto em segundos!" - pensou.
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Tentou esfregar a face contra o ombro para soltar a atadura dos lábios e gritar, mas logo concluiu que isso seria impossível, pois as pontas da fita estavam fora do alcance dessa manobra. Precisava forçar novamente para criar algum espaço que o permitisse livrar ao menos um dos braços. Respirou profundamente e armazenou forças. Ouvia seu coração bater pesado, ansioso.
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Voltou a forçar, dessa vez violentamente. Seus músculos contraíram-se alternando força nos braços e ombros, nos quadris e nas coxas; tracionava e torcia no exíguo espaço que dispunha com toda a energia possível. Manteve a pressão por vários segundos, gemeu, prendeu a respiração buscando por um supremo esforço, empurrou a pilastra com a cabeça, espremeu os olhos. A cadeira rangeu sob seu peso; as fitas pareceram querer ceder alguns centímetros, seria por ali que ele livraria um braço! No momento mais intenso da força, Fonseca foi acometido por uma repentina e lacerante pontada nos quadris, uma fisgada tão forte e profunda que o paralisou em uma cãibra violentíssima, aguda. Soltou um grito sufocado. O topo da cabeça colado ao pilar. Os olhos esbugalhados e lacrimejantes fitando o teto. Permaneceu assim por alguns instantes. Longos instantes.
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Finalmente a cãibra aliviou e lentamente Fonseca pôde afrouxar a tensão muscular entregando-se às dores terríveis que chegavam em ondas. Lágrimas de dor desceram-lhe pelo rosto. Lá fora as meninas pareceram se levantar do chão dando gritinhos e falando algo sobre uma professora da escola que teria uma mãe adepta de costumes pouco familiares. Enfim partiram deixando a calçada da loja imersa na calmaria dominical.
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Fonseca sentia tudo rodar, sentia-se de pernas para o ar, a loja havia virado ao contrário. Achou que despencaria do teto de cabeça; nauseado, desmaiou.
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Capítulo V
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Recobrou a consciência depois de um intervalo de tempo que não soube mensurar. Abriu os olhos com dificuldade, sentia suas pálpebras estranhamente coladas aos globos oculares. Estava com o corpo gelado, fazia frio. O salão mergulhara novamente na escuridão. A luz do poste na calçada em frente a loja dessa vez parecia não querer atravessar os vidros imundos que encimavam a porta.
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Esforçou-se para ver as horas no relógio, mas não conseguiu distinguir o tamanho dos ponteiros, de forma que poderiam ser 11h20 ou 3h55. De qualquer maneira, era noite. Fonseca não sabia de qual dia. Estava muito confuso. Havia perdido a noção do tempo. Suas roupas tinham secado por completo sobre seu corpo. Estavam ressequidas e duras, coladas à sua pele como cascas de ferida. O cheiro do combustível parecia haver se adensado e, por trás dele, outro cheiro parecia querer insinuar-se. Era um odor acre, vil, penetrante. Cheiro de podridão.
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A velha apodrecia aos seus pés.
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A rua estava em silêncio, com exceção de alguns latidos de cachorros a grande distância. A sede avassaladora torturava-o, estava também com fome, mas a sede era seu pior martírio. Sentia-se enfraquecido, seus músculos doíam graças ao esforço que fizera para se soltar das amarras. Sabia que a carência de água logo aumentaria seus batimentos cardíacos trazendo-lhe cãibras e fisgadas musculares ainda piores. A carência de líquido secava-lhe por dentro. “Vou morrer de sede, meu Deus do céu, vou morrer de sede!” - pensava.
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Seria capaz de tomar qualquer água que lhe dessem. Tomaria água da privada ou da sarjeta se houvesse.
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Deixou tombar a cabeça. O fedor do cadáver estava muito forte. Sentia-se febril. O frio causava-lhe agora uma tremedeira quase convulsiva. Começou a pensar na morte. Deveria ser mesmo de madrugada, pois o cansaço o estava vencendo. Dormiu novamente. E sonhou.
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No seu sonho a mulher gorda arrancava a blusa e mostrava-lhe as horríveis cicatrizes. Só que dessa vez eles estavam em uma sala azulejada, iluminada com uma luz muito branca. Era a sala que ele usava nas instalações do DOPS na região do parque da Luz, em São Paulo. Fonseca era jovem e forte no sonho, mas a mulher tinha a aparência dos dias atuais. Ela virou-se para ele e disse, com o torso nu:
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- A porta da sepultura não se abre por dentro, delegado!
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Ele perguntou assustado:
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- Quem é você?
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A mulher respondeu:
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- Ah! Você não sabe, seu cachorro, você me incendiou viva, hoje cedo, sobre aquela maca metálica ali! - dizendo isso apontou uma maca encostada à parede.
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Fonseca olhou para a maca e estremeceu. Sobre ela havia uma massa disforme de carne fumegante, do tamanho de um corpo humano. Um enorme carvão soltando densa fumaça escura. Em uma das extremidades do carvão humano havia uma profusão de cabelos longos, retorcidos. Voltou-se para a mulher ao seu lado, mas ela não estava mais ali. Arrepiou-se tomado pelo pânico.
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Acordou em um espasmo de susto, ofegante. Havia defecado um líquido quente e ácido, como uma diarréia nervosa, que saiu comprimida por entre suas pernas e nádegas coladas ao assento, fervendo-lhe por baixo. Desesperou-se. Chorou novamente. Dessa vez um choro convulsivo, descontrolado. Chorou por quase uma hora, até que, rendido, dormiu, ou desmaiou, sem se aperceber.
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Horas se passaram. Fonseca despertou novamente. O dia parecia querer clarear e ele ainda estava sentado naquela maldita cadeira. Um galo cantou a certa distância e ele ficou ouvindo o ruído de passos que se aproximaram apressados, cruzaram o trecho de calçada defronte à loja e gradualmente dissiparam-se. Circunstâncias do mundo exterior, como essas, agora pareciam a ele como acontecimentos de um filme de ficção, que até certo ponto se parece com a realidade, mas estão muito distantes de sê-lo.
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O relógio acima do balcão marcava 5h40. O fedor do cadáver tornava o ambiente inóspito, irrespirável; o cheiro havia piorado muito e misturara-se ao odor da diarréia ressequida grudada ao tecido de suas calças. Fonseca aspirou-o e nauseou instantaneamente. Controlou-se para não vomitar, pois se o fizesse sabia que sufocaria até a morte. Tocou a cabeça na pilastra e, horrorizado com sua situação, fechou os olhos. Não agüentava mais, queria morrer logo se assim tivesse que ser. Queria, precisava descansar.
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Pensou em Deus novamente, mas dessa vez não orou. Lembrou-se do Arlindo, um bom amigo que fizera dezoito anos antes. Juntos foram voluntários no trabalho comunitário em favelas de palafitas às margens da represa Billings. Além de líder comunitário, Arlindo era padre em uma paróquia na zona sul da cidade. Certo dia Fonseca perguntou-lhe onde estaria Deus que não via o sofrimento daquela gente e por que não fazia alguma coisa. Arlindo respondeu-lhe que acreditava que a participação de Deus na vida do homem fazia-se de forma menos invasiva do que a maioria dos cristãos a concebe. No seu modo de ver, Deus teria dado aos homens total liberdade para fazerem o que bem entendessem de sua vidas. O homem poderia, portanto, fazer o bem ou o mal, ser justo ou ser injusto, pois Deus havia se proposto a não manipulá-lo como a uma marionete. Desta mesma forma, também não interferiria no curso de suas vidas para livrá-los ou protege-los do mal que eles mesmos geram pelo desamor que insistem em promover com seu egoísmo e individualismo.
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Em um supremo esforço, dizia Arlindo, Deus, para ensinar o ser humano a amar o próximo como ama a si mesmo, fez-se carne e habitou entre nós. Despojou-se totalmente de sua onipotência e viveu sua humanidade como um ser humano comum, provando que não é o poder e sim a misericórdia e o amor que salvam. Por fim, deixou-se matar na cruz em uma atitude de supremo amor, para salvar a todos nós.
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Fonseca ouvia as considerações do amigo, mas discordava. Achava que Deus impedia, ou pelo menos deveria impedir o mal de ocorrer no mundo.
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Agora, quase vinte anos depois, após ter vencido a morte por várias vezes, Fonseca pensava que de alguma forma aquilo tudo fazia sentido. Foi livre para fazer todo o mal que quis fazer. Deus não segurou sua mão em momento algum.
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Sentado naquela cadeira que possivelmente seria seu ataúde, ele lembrava-se de uma passagem do livro de Eclesiastes que parecia ratificar o que o amigo padre lhe ensinara e que agora fazia todo o sentido:
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"Vi ainda debaixo do sol que não é dos ligeiros o prêmio, nem dos valentes a vitória, nem tampouco dos sábios o pão, nem ainda dos prudentes a riqueza. Assim como não é dos inteligentes o favor. Porém tudo depende do tempo e do acaso. O mesmo Sol que aquece o justo aquece também o ímpio”
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Capítulo VI
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Fonseca passava as horas mergulhado em reminiscências e recordações. Experimentava uma alternância entre razão e inconsciência, sonho e realidade. Por vezes não conseguia se distanciar do sofrimento físico que vivia, por mais que tentasse afastar seus pensamentos daquela realidade.
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Estava com sede, fome e frio. Um frio cortante. As vestes secas e coladas ao corpo repuxavam-lhe a pele produzindo inúmeros e inatingíveis pontos de coceira e formigamento que o torturavam lenta e diligentemente. Sua cabeça pesava e doía de uma maneira como ele nunca havia provado em toda a vida, sentia-a como se contivesse algum líquido criando uma camada aquosa que fazia seu cérebro se chocar contra as paredes do crânio a cada mínimo movimento que fazia.
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As horas passavam, chegava o dia, caia a noite.
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Com o espírito entorpecido pela dor, Fonseca revirava idéias e pensamentos acerca das teorias maniqueístas; o bem e o mal, Deus e o diabo, o digno e o indigno etc.
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Em certo momento, de forma súbita, veio-lhe à mente o nome de uma mulher. Irene. Foi como se alguém tivesse lhe soprado no ouvido, Irene.
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A Irene que lhe ocorreu era uma jovem linda, loira, cabelos cacheados, olhos azuis, corpo esbelto e maravilhosos seios que um dia levaram até ele, numa manhã de sol, há quase quarenta anos. A moça estava sendo acusada de namorar um líder estudantil insurgente, um professor. Foi presa e interrogada. Jurou que nem conhecia tal professor, a única coisa que confessava corajosamente era sua antipatia pelo regime. Sua coragem e ousadia a vitimaram. Poderia ser libertada, mas acabou presa e foi violentada e torturada por Fonseca e seus homens, semanas a fio, até quase a morte.
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Fonseca gostava de estar com ela. No DOPS ele era Deus. O dominador, o chefe a quem ela tinha que obedecer e responder. Era um homem de coração empedernido, mas algo que ele desconhecia havia ganhado envergadura e crescido dentro dele. Irene estava ali, presa em um cubículo úmido e escuro, havia sido arrancada da sua família, da sua vida. Era então sua prisioneira, estava ao seu alcance e ao seu dispor, mas ao mesmo tempo tão distante dele; e Fonseca sabia que nunca poderia tê-la de fato.
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Um dia descontrolou-se e tomado pelo ódio que sentia pelo próprio sentimento, tomou uma decisão. Mandou buscar Irene e pediu que os deixassem a sós. Obrigou-a a tirar a roupa. Amarrou-a numa maca, jogou gasolina sobre seus seios e riscou um fósforo. O fez por inveja, por ciúmes, por sadismo, por uma mistura louca de sentimentos que envolviam a posse e o poder. Ele era o algoz e ela a vítima que o execrava, já havia inclusive cuspido no seu rosto. Se ele não podia desfrutar do seu amor e de sua formosura, pensou na época, então ninguém mais poderá. Sentenciou-a ao fogo. Queimou a vaidade e o futuro daquela jovem.
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Seria ela? A gorda que tentara lhe imolar, e que agora apodrecia aos seus pés? Parecia ser ela mesma, Irene. Ela tentara se vingar dele, quatro décadas depois, mas não conseguira.
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O insuportável fedor do corpo em decomposição voltou a lhe atingir as narinas. Dessa vez seu estômago reagiu mais rápido do que sua razão e ele vomitou suco gástrico e bile em um jato ácido e quente que lhe saiu pelas narinas queimando-as. Sua boca se encheu com a mesma mistura que ele tentou engolir, engasgou-se mais uma vez e em agonia espargiu novos jatos de vômito sobre seu peito, colo e no cadáver que apodrecia no chão. Conseguiu, enfim, se controlar e voltar a respirar.
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Em meio a esse martírio, o velho lembrava-se das palavras que seu amigo Arlindo lhe dissera acerca de Deus. Desejou ter o amigo perto dele naquele instante. Precisava de uma palavra de conforto, de um ser humano bondoso que o consolasse, tanto quanto precisava da luz do dia, de água.
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Fonseca adoeceu pela primeira vez naquela época e afastou-se do voluntariado. Nunca mais viu Arlindo, mas passou a ler a bíblia para tentar entender os desígnios desse enigmático Criador. Quis se redimir, quis ser perdoado por Ele, quis terminar os seus dias como um homem bom! Lembrou-se também da mãe. “Ah! A minha mãezinha correria para me tirar daqui se ainda estivesse viva” – pensou.
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Um fio de ar, parcialmente impedido pelo vômito que se acumulara, passava por sua narina esquerda e o mantinha vivo. Fonseca achou que houvesse sufocado e ficado desacordado por algum tempo, pois já era noite e o relógio indicava 11h25min. Não conseguia conceber mais nenhum pensamento organizado, não sabia há quantos dias estava sentado naquela cadeira, naquele calabouço úmido.
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Adormeceu novamente e foi acordado muitas horas depois pelo frio da madrugada e por uma dor profunda nos ossos das pernas e do quadril. Sentia a pele do seu rosto ardente, como se tivesse rachada, fissurada e em carne viva. Achava que se colocassem um espelho à sua frente, veria seu rosto fendado, com escuras, profundas e sangrentas trincas.
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Os primeiros ônibus da manhã começaram a passar, barulhentos, em velocidade em frente à loja, ainda vazios, sacudindo suas latarias soltas. O dia ainda não havia amanhecido.
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Em meio à sua dor, lembrou-se de outra passagem bíblica, sobre as contingências e fatalidades da vida. Essa passagem, por fim, tornar-se-ia, para ele, uma derradeira realidade.
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"O homem não sabe a sua hora. Como os peixes que são apanhados pela rede traiçoeira e como os passarinhos que se prendem com o laço, assim se enredam também os filhos do homem no tempo da calamidade, quando esta salta repentinamente sobre eles"
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Fazia frio, muito frio. Fonseca tremia como se estivesse sendo acometido por um ataque epilético. Não sentia mais a parte inferior do corpo nem das costas, nem o incomodava mais o peso do cadáver sobre seus pés. Chegou a ter inveja da mulher, pois ela já não sofria mais. Para ela foi rápido, quase imperceptível, indolor.
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As moscas voavam ao seu redor, ávidas. Fonseca não conseguia ver de onde vinham, mas junto aos seus pés desenrolava-se uma cerimônia de tremendo horror. A mulher inchara horrivelmente e uma profusão de pequenos insetos aglomerava-se sobre sua tez fria e branca formando uma máscara negra, túmida e movediça. As moscas disputavam espaço com minúsculos vermes brancos e anelados que devoravam aquela face, saindo dos olhos abertos e escorrendo como lágrimas pelas bochechas. Muitos entravam e saíam da fenda semi-aberta, escura e ressequida em que se transformara a boca da velha.
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A cada mínimo movimento de Fonseca, as moscas desprendiam-se do cadáver e revoavam sobre seu corpo gélido, úmido e febril. Algumas entravam em suas orelhas e em suas narinas ofegantes provocando-lhe engasgos fracos, sem força, mas intermitentes. Dois mosquitos entraram e ficaram colados em seu globo ocular esquerdo. Fonseca os fechou ali dentro, propositalmente; sentia-os se debater; deliciou-se por um momento em ter aquela inusitada companhia. Morreriam ali, presos como ele, compartilhando do seu absoluto desespero.
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Frio. O velho sentia um frio intenso e cortante como nunca sentiu. Uma recordação lhe veio à mente, confusa, misturada com outros pensamentos. Lembrou-se das ocasiões em que ele e seus homens acordavam um prisioneiro no meio duma madrugada de inverno rigoroso. Obrigavam-no a tirar a roupa e colocavam-no no chuveiro sob a água gelada fazendo-o chorar de dor e frio. Depois o largavam para dormir no pátio de estacionamento, ao relento, nu. Alguns morriam de frio ou pegavam pneumonia que os levavam a morrer em poucos dias.
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Mais dois dias se passaram. As manhãs e tardes eram barulhentas, cheias de sol, sons, vozes, cheiros, perfumes de vida que chegavam aos sentidos de Fonseca vindos detrás da porta. Já as noites eram silenciosas e as madrugadas geladas e solitárias; à exceção da companhia oferecida pelos latidos dos cachorros e pelo cantar dos grilos.
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Fonseca passou a sofrer convulsões provocadas pelo frio e pela falta d’água no organismo. Em meio à sua angústia e padecimento físico, seu organismo aproximava-se de uma pane. Seu sangue estava espesso e seu coração esforçava-se para bombeá-lo; do estado acelerado em que estava trabalhando, passou a fraquejar gradualmente.
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As freqüentes dispnéias que o acometiam foram se acelerando, acelerando. Entrou em estado de catalepsia e sonhou sonhos confusos enquanto morria. Num deles, estava na rua, caminhando nu. Era uma noite de frio. Alguém o agarrava por trás e tapava-lhe a boca e o nariz. Uma mão enluvada, uma luva negra: "Ar, preciso de ar! "- delirava em agonia.
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O coração do velho carrasco parou de bater naquele dia às 18h15min. Irene vencera, conseguira realizar seu intento. Seis dias exatos após ter sido atado à cadeira de madeira pela mulher que torturara e que apodrecia aos seus pés, Fonseca finalmente expirava.
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Final
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O homem olhou profundamente nos olhos do zelador. Estavam sentados frente a frente, separados por uma mesinha de madeira que ocupava metade do cubículo e que fazia as vezes de escritório do hotel. A pequena sala cheirava a café frio e bolor, conseqüência da sujeira anosa que impregnava o velho carpete que cobria o assoalho quase em frangalhos.
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- Vamos recapitular, seu José. Hoje é quinta-feira e o senhor disse que a última vez que viu o senhor Tonico foi na sexta-feira passada, confere?
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- Sim, senhor. A noite tinha acabado de cair quando ele chegou e subiu pro quarto.
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- Compreendo. Quer dizer que nesse dia ele passou pela recepção, comentou algo que o senhor não se recorda bem, algum gracejo, uma piadinha, certo?
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- Isso mesmo, doutor.
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- Compreendo. Depois disso, o homem ficou no quarto por todos esses dias sem sair nem mesmo para ir ao banheiro e, nesse período vocês o teriam ouvido chorar e conversar sozinho como se estivesse louco, confere?
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- Isso, doutor.
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Além do senhor e do seu filho, ninguém mais fica na recepção?
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- Não senhor.
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- Ele não poderia ter saído e voltado, sem que vocês o tivessem visto?
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- Não, senhor, isso não. Sempre um de nós fica lá na frente, nunca a entrada fica sozinha e, depois das dez da noite, eu fecho a porta e só volto a abrir às seis da manhã. Quem quer entrar tem que bater pra eu abrir. Eu durmo no sofá e tenho o sono bem leve, doutor. Pra sair é a mesma coisa, tem que passar por mim.
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- Seu José, olhe bem pra mim. É bom que o senhor colabore com a polícia dizendo tudo o que sabe sobre o ocorrido. Caso continue me escondendo as coisas, mando a fiscalização aqui e fecho esta pocilga, estamos entendidos?
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- Por favor, doutor, não me faça uma desgraceira dessas com a minha vida, tudo o que eu tenho é esta pensão; e é familiar, doutor.
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- Familiar, seu José, convenhamos! Sou inspetor de polícia há vinte anos e conheço muito bem o que é um motel, um puteiro disfarçado de pensão – enquanto falava, o inspetor passeava os olhos pelas paredes sujas da salinha e fazia cara de asco.
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- Vocês ganham dinheiro com prostituição e aluguel de quartos para travestis, putas e seus clientes, sei bem como funciona isso - o inspetor Orlando era um homem muito gordo, alto e calvo. Aparentava cinqüenta anos e respirava de forma pesada e ruidosa, como só os muito-gordos respiram. Sacou um maço amassado de cigarros do bolso interno do paletó e, com um gesto do punho, fez saltar um cigarro que se ajeitou entre seus lábios sem o auxílio das mãos.
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Olhava fixamente o zelador, pálido de medo, sentado à sua frente. Pegou o isqueiro que estava sobre a mesa e fazendo uma conchinha com a mão acendeu seu cigarro. Debruçou-se sobre a mesinha de tampo de madeira circular com um único apoio central, quase a fazendo virar e projetar o homenzinho à distância; então cochichou como se contasse um segredo:
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- Seu José, não quero prejudicá-lo, longe de mim isso, sei como é duro ganhar a vida, mas o senhor tem que me ajudar - apanhou alguns documentos no bolso da camisa e colocou-os sobre a mesa em frente ao pobre homem:
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- Com qual nome o senhor disse que ele se identificou para alugar o quarto?
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- Antônio Carlos, doutor...
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- ... Ribeiro Valente? - completou Orlando.
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- Isso mesmo, foi esse o nome que pus na ficha e que vi no documento dele.
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- Seria um desses documentos aí? - perguntou o policial, apontando com os olhos as duas cédulas que acabara de pôr sobre a mesa. Seu José pegou os documentos e analisou-os atentamente. Ambas traziam a foto do mesmo homem, mas em épocas diferentes. Na fotografia do documento mais antigo, o homem aparentava ser bem jovem, tinha o pescoço grosso, o maxilar quadrado, os olhos brilhantes e os cabelos densos e escuros. Subtraindo-se a data de expedição do documento da data de nascimento, a idade do homem na época era de trinta e oito anos. A outra cédula era bem mais recente, nela a idade era de sessenta e dois anos. A foto mostrava o mesmo homem, porém já bem grisalho e com o rosto emagrecido, com uma tonalidade esverdeada.
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- Foi este aqui o documento que ele me apresentou - disse o zelador abanando a cédula mais nova no ar e largando-a sobre a mesa com convicção.
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- E este outro documento, o senhor havia visto? - o inspetor olhou-o inquisidor.
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O homem apanhou novamente o outro documento, aproximou-o do rosto, ajeitou os óculos velhos que tinham uma das hastes presa por fita isolante.
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- João Carlos Meringelli Fonseca - leu em voz alta. - Pela foto se vê que é o mesmo homem, doutor, mas esse nome ele nunca me deu não senhor e este documento eu nunca vi.
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- Seu José, preste atenção! O velho duro sobre aquela cama poderia ser só mais um velho que empacotou. Bastaria jogá-lo num buraco e encerrar o assunto, mas com duas cédulas de identidade e nomes diferentes, a coisa muda de figura, o senhor pode me entender?
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O zelador olhava-o e concordava com a cabeça.
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- Ele morreu dentro de um quarto do seu hotel, o senhor sabe o tamanho do problema que pode ter? Essas duas identidades podem significar muita coisa, seu José. Esse velho poderia ser ligado a redes de tráfico de drogas, vendas de armas pesadas, prostituição infantil, procurado pela Interpol ou ligado a algum outro tipo de falcatrua que nem posso imaginar!
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A pressão do inspetor era proposital. Precisava apertar o homem para saber se ele estava dizendo tudo o que sabia. Precisava ter a certeza de que ele não tivera nenhum contato anterior com o velho.
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- O senhor percebe a gravidade da sua situação?
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- Percebo sim, senhor.
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-Por isso, seu José, preciso que me conte tudo o que sabe sobre esse homem. O senhor está me entendendo?
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- Doutor, não sei mais nada, dou minha palavra.
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O homem levantou-se com energia, deu uma tragada no cigarro e apagou a bituca no cinzeiro sobre a mesinha com o peso dos seus cento e trinta quilos, quase fazendo-a virar novamente. Perguntou irritado:
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- O senhor quer mesmo que eu acredite que é natural um velho com dupla identidade aparecer morto num quarto de pensão após trancar-se por seis dias, ficar conversando e chorando sozinho, sem sair nem ao menos para urinar? Não parece ao senhor muito estranho isso tudo?
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- Pode parecer estranho para o senhor, doutor, mas pra gente não. Como o senhor mesmo viu, aqui só vem gente estranha, as pessoas chegam e vão e nem sabemos direito quem são. A gente não estranha mais nada aqui não, doutor.
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O inspetor voltou a sentar-se, estava ofegante. Novamente falou baixo, em segredo, como quem pede consideração:
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- Vamos lá, seu José, esforce-se. – Orlando cruzou os braços gigantes sobre o tampo da mesa e fixou os olhos no homem, que, com as mãos enfiadas entre as pernas, prosseguiu:
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- O que sei é que esse velho chegou aqui há dois meses. Veio sozinho com uma malinha pequena na mão e uma bengala na outra. Vi até quando desceu do táxi bem ali na frente. Entrou me pediu um quarto e eu expliquei que aqui alugamos por hora ou por dia, mas não recomendamos para senhores de fino trato como ele. Foi aí que ele me disse que não se importava, pois estava só de passagem por aqui. Pagou três meses adiantados e em dinheiro, doutor! Eu não tive como não aceitar, o senhor entende isso...
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- Compreendo, claro. - disse o chefe de polícia de cabeça baixa enquanto anotava em seu bloquinho - Foi então que o senhor pediu para ver o documento dele?
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- Isso mesmo. Pedi para ver um documento pra poder fazer a ficha que a gente faz sempre que a pessoa quer ficar mais de um dia hospedada. Essa aqui - disse pegando a ficha do velho que estava ao seu lado sobre a mesa oferecendo-a ao policial. A ficha trazia apenas o nome e o número da identidade que o velho havia apresentado, todos os outros campos estavam sem preenchimento.
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- Aí ele me apresentou este RG aqui - o zelador bateu com o indicador sobre a cédula mais nova que estava sobre a mesa, a cédula que trazia o nome de Antônio Carlos.
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- De que maneira ele se apresentou ao senhor?
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- Como Antônio; disse que as pessoas o chamam de Tonico e que eu poderia chamá-lo assim.
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- O senhor então passou a chamá-lo de Tonico?
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- Isso, Seu Tonico, por respeito à idade dele. E vou dizer ao senhor, nesse tempo todo eu não tenho nada de mau pra dizer dele, não mesmo; sempre foi bem educado e nunca reclamou do barulho que a turma faz aí nos quartos, o senhor sabe como é.
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- Seu José, diga-me: havia um saquinho plástico sobre a cômoda ao lado do corpo contendo uma resistência de chuveiro, um rolo de fita isolante e um pouco de fio. O senhor sabe pra quê isso, já que os quartos aqui não têm banheiro e são apenas quatro banheiros com chuveiro para atender os dez quartos?
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- Ah, sim! O que ocorreu, doutor, foi que o seu Tonico viu que a resistência do chuveiro do primeiro andar tinha queimado e se ofereceu pra comprar uma nova pra mim. Eu disse que ele não precisava se incomodar, mas ele disse que fazia gosto e que um aposentado como ele não tem muito pra fazer da vida e que ele mesmo iria instalar, pois essas coisas de eletricidade ele conhecia muito bem.
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- Compreendo. Já falamos com a mulher da loja onde ele comprou o material, na rua de trás. Ela disse que se lembra de um senhor que foi lá na sexta logo no fim do expediente, lembra-se da venda. Disse que o homem pagou em dinheiro e com uma nota de cem reais, pois não tinha trocado. Ficou inclusive de voltar para pegar o troco, mas não voltou mais. Pelo jeito ela foi, juntamente com o senhor, a última pessoa que o viu com vida. O senhor a conhece?
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- Conheço sim, é a dona Irene. Gente boa. A gente compra coisas lá na loja dela aqui pro hotel.
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- Compreendo. Mais uma pergunta, seu José: ele nunca disse ao senhor se tinha família, nunca ninguém veio aqui procurá-lo?
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- Não senhor, ele nunca disse nada disso. Quando saía pra rua e quando voltava, ele passava rapidamente e dizia um bom dia, um boa tarde, sempre sorrindo. Nunca parava pra prosear, isso nunca fez, mas sempre dizia alguma coisa de passagem, o senhor sabe como é.
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- Não, não sei, diga-me o que mais ele dizia.
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- Dizia essas coisas: “calor, hein seu José!” ou “um bom dia pro senhor, seu José”, essas coisas. Ele sempre me chamava de seu José.
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Nesse instante um jovem alto e forte, de rosto ossudo e comprido, aparentando uns trinta anos apareceu na porta da saleta e fez um sinal chamando o inspetor. Vestia calça social, camisa de mangas arregaçadas e usava luvas de borracha em ambas as mãos. Passando por ambos os ombros, duas tiras de couro formavam um "x" às costas do policial e prendiam dois coldres negros que acondicionavam suas armas, uma de cada lado da cintura.
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- Seu José, vou subir ao quarto e já volto. Tente se lembrar de mais alguma coisa que ele possa ter lhe dito, ou alguma atitude estranha que teve. Pretendo encerrar este assunto hoje e deixá-lo em paz, mas lembre-se de que qualquer informação pode ser importante para a polícia.
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Orlando já havia se convencido de que o zelador não tinha nada a ver com aquela história. Subiu com o outro policial ao quarto e pararam frente a uma cama onde jazia um velho muito magro e alto, de cabelos brancos como algodão. Seus braços enrijecidos estendidos ao longo do corpo, como que grudados. Uma das mãos apresentava uma mancha, possivelmente de nascença. A posição do velho assemelhava-se a de um garoto que finge ser um soldado em posição de sentido. Seus lábios e as extremidades dos dedos das suas mãos estavam muito roxos. Ambos os policiais ficaram em silêncio observando aquela estranha forma de morte.
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- Orlando, não consigo entender isso - falou o jovem de rosto ossudo, quebrando o silêncio. - Veja essa posição rígida e essa rouxidão nas extremidades. Aparentemente este homem morreu de hipotermia, frio intenso. Mas veja que está totalmente vestido, inclusive calçando os sapatos, e as janelas do quarto estão fechadas. – disse apontando a janela guilhotina fechada e trancada com os trincos borboleta.
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Orlando caminhou até a janela, olhou para a rua lá embaixo, deu um profundo suspiro de gordo e voltou-se para o perito:
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- Então não deve ter sido hipotermia, Daniel, pode ter sido um infarto...
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O outro o cortou exaltado:
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- De jeito nenhum, disso eu tenho certeza. Você verá que o laudo definitivo vai comprovar o que estou dizendo.
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- E este cheiro forte de gasolina? - perguntou o inspetor gordo.
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- Isso é ainda mais esquisito; e não é gasolina, é cheiro de benzina – enquanto falava, o jovem policial tirou as luvas de borracha e as enfiou no bolso das calças.
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- Quer ouvir uma coisa estranha? Esse cheiro exala dele. Cheire-o pra você ver.
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Orlando olhou-o com o cenho franzido de estranheza. Agachou-se com dificuldade junto à cama do defunto e cheirou-lhe o rosto e as roupas. Levantou-se com a ajuda do amigo e concluiu:
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- Esse velho bebeu benzina e morreu, foi isso.
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- Não, não! Não há nada além de água e sais em sua saliva.
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- Meu Deus! Parece que mergulharam este velho com roupa e tudo numa banheira de solvente! Mas Daniel, isso não faz sentido algum, está tudo tão seco! Encontraram algum frasco de benzina por aqui?
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- Nada. Nem vestígios ou respingos em local algum; fizemos testes com reagentes em todo o quarto e no corpo. Nunca houve benzina neste quarto; é só um cheiro e nada mais.
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O inspetor passou os braços pelas costas do jovem e falou com um sorriso faceiro:
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- Vamos encerrar nossa parte, acho que agora não é mais conosco - dizendo isso fez sinal para dois rapazes que conversavam no corredor.
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Os dois entraram vestindo suas roupas azuis com a inscrição "Instituto Médico Legal" às costas. Carregavam uma maca de alumínio. Colocaram o velho sobre ela, cobriram-no com um lençol e desceram as escadas de carpete vermelho, seboso e malcheiroso, que ligava o primeiro andar ao térreo do antigo prédio que um dia fora uma repartição pública e que virara hotel havia vinte e cinco anos. Foram seguidos pelos policiais.
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Chegaram à rua carregando o defunto, abriram as portas traseiras dum furgão branco com a inscrição "I.M.L. - Serviço de Medicina Legal - Secretaria de Estado da Segurança Pública". Colocaram o corpo do velho na parte traseira, bateram as portas e partiram.
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Os dois inspetores, o gordo e o jovem, passaram pela recepção. Seu José estava sentado numa banqueta de pernas altas, junto à porta da rua. O sol incidia sobre ele. Levantou-se quando os dois se aproximaram. Orlando estendeu-lhe e a chave do quarto e um cartão.
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- Seu José, mantenha o quarto trancado, por favor. Amanhã uma equipe virá recolher os pertences do seu Tonico, ou sei lá qual o nome que devemos dar a esse defunto velho; depois disso o quarto estará liberado. Qualquer coisa de que lembrar, por favor, ligue-me neste número. Os homens já iam descendo as escadas quando o pequeno zelador interpelou-os:
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- Doutor, desculpa, é que eu lembrei do que o seu Tonico me disse naquele dia que vi ele pela última vez.
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- Então, desembucha logo, homem!
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- Quando ele voltou da rua, eu estava sentado bem aqui, ele passou por mim e perguntou: "Seu José, o senhor já ouviu falar na cadeira do dragão?". Eu disse pra ele que não, aí ele deu uma gargalhada com gosto e subiu as escadas pro quarto. Foi estranho, doutor, parecia uma risada de hiena, o senhor sabe como é?
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Os policiais olharam um para o outro e não disseram nada. Seu José prosseguiu:
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- Aí eu fiquei ouvindo ele dar aquela risada esquisita até fechar a porta do quarto lá em cima, doutor. Achei muito esquisito, sabe?
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- Compreendo, compreendo. Mais alguma coisa que o senhor se recorde? - disse Orlando enquanto anotava num caderninho o que o homem acabara de dizer.
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- Não, senhor. Era só isso mesmo, o resto o senhor já sabe.
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Orlando fechou o caderninho e colocou-o no bolso interno do paletó.
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Os policiais dirigiram um cumprimento de cabeça ao zelador, desceram os dois degraus que os deixou no nível da calçada. Entraram num carro preto parado logo ali e partiram.
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FIM
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Cesar Cruz
Julho/ 08
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17 comentários:

Anônimo disse...

Bom dia, meu amigo.

Espero ansiosa pela segunda parte.
Adorei.
Beijo, Tânia
9.7.08

Anônimo disse...

Quando que vem a segunda parte ?
PJ
9.7.08

Anônimo disse...

Adorei... rico em detalhes...
E a segunda parte? Vai demorar?

Beijos, Carla
9.7.08

Anônimo disse...

Anônimo disse...
Desejar o indesejavel
Alcançar o inalcançavel
Suportar o insuportavel
9.7.08

Anônimo disse...

Anônimo disse...
A coisa esta ficando boa, já estou esperando a parte 3...
PJ
9.7.08

Anônimo disse...

Poxa Cesar!
Lança logo a terceira parte, to curiosa!

Bjos
Regina
9.7.08

Anônimo disse...

Cé aguardo a 3º parte, estou adorando
bjs
Dri
9.7.08

Anônimo disse...

Caralho cesinha....a mulher morreu?? tava ficando cansativo , imaginei que ela ia riscar o fosforo e depois se livrar do corpo....agora ficou bom de novo !!

abraços pj
9.7.08

Anônimo disse...

Ce, estou ansiosa pelo final!!Está muito bom!!!
Bjs
Van
9.7.08

Anônimo disse...

Oi Cesar,

Estou adorando. Muito bom e surpreendente. Quando vem a próxima parte?

Martha
9.7.08

Anônimo disse...

Emocionante!!!
Bjs
Dri
9.7.08

Anônimo disse...

Você e suas sobrenaturalidades. Infernal!
Abraços
Gabriel
11.7.08

Anônimo disse...

Gostei muito, mesmo sabendo que vou ficar imaginando o q houve com o velho até tarde...
Após longas horas de leitura, minhas costas estão doendo e minhas mãos congeladas, afinal, ja eh tarde da noite.
Só uma linda canção me vem à mente:

Ôô ôô...quero voar mais alto que um condor...
Thais
16.7.08

Anônimo disse...

Caralho césar! o fdp do velho teve uma ilusão? ou oq? Vc precisa me explicar essa merda senão dou-lhe um caratê nessa cabeça careca!
abração Marcelo
17.7.08

Anônimo disse...

Muito bom esse conto! Você conseguiu manter o suspense todo o tempo.
O final é muito bom, inesperado, surpreendente.
Gostei que o torturador morresse por sua própria consciência. Se a justiça não foi feita...

É isso, vai firme que você tem estilo.

Beijos,
Martha
17.7.08

Anônimo disse...

Bom, finalmente terminei de ler a Cadeira do Dragão, estou imaginando
ainda como ela matou o velho, mas ainda eh cedo 23:47, tenho a noite
toda pra pensar nisso!
Nao consegui parar de ler, capitulo 1 ate o final direto! Escreve
muito bem, pra prender minha atenção ultimamente ta dificl, nem
revista consigo ler!

bjs Thais
17.7.08

Anônimo disse...

Nossa, tive que reler desde o começo e não consegui parar um segundo... caramba! muito bom, o final é surpreendente... e eu já disse isso antes, muito rico em detalhes... Parabéns! Simplesmente adorei!
Beijos, Carla
10.9.08