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por Gabriel e Cesar
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Prefácio
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Este é um conto escrito a quatro mãos. As minhas e as do meu amigo Gabriel. Gabriel é um escritor talentoso e criativo, aliás, foi ele que teve a idéia maluca de escrevermos um conto juntos!
Foi assim: um dia recebi um e-mail seu com o título e o primeiro parágrafo do conto. Acompanhava uma breve explicação de como procederíamos. Dizia que a regra seria cada um acrescentar um trecho e enviar ao outro. E assim sucessivamente.
Poderíamos dar o rumo que bem entendêssemos à história. O tempo que teríamos para escrever as partes também seria livre, um dia, uma semana, um mês.
E assim fizemos. Levamos exatos 30 dias para concluí-lo. Até que foi rápido, pois escrevíamos quando tínhamos tempo e quando a criatividade cooperava.
O interessante é que em certo momento, não estávamos mais apenas criando novos capítulos, estávamos também nos intrometendo e metendo o bedelho um no trecho do outro! Isso sem falar nos boicotes; em dado momento - preciso confessar - quase o impedi de levar o protagonista de volta a sua terra natal!
Vamos ao conto.
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I
O trem, puxado por uma locomotiva Baldwin-Westinghouse 1922, partiu da estação lentamente, como um fantasma clástico, um enferrujado amontoado informe de chapas de aço, porcas e parafusos que ameaçava ruir sem aviso a qualquer momento. A lua cheia atravessou relutante a densa neblina que se desprendia do negror do céu invernal e, através da vidraça embaciada do vagão, refletiu como uma minúscula pérola na lágrima solitária que deslizava do rosto entristecido de Elisa. Ela se foi como a infância, silenciosa e imperceptivelmente, mas deixou marcas indeléveis no coração das pessoas que tiveram o privilégio de contemplar-lhe os olhos de intenso azul que sobressaíam de seu rosto perfeito, de ouvir-lhe a voz sempre terna, doce, compassiva. Jonas ficou sozinho na estação, perplexo, alquebrado, abandonado como uma velha mala sem utilidade esquecida sob um banco qualquer da plataforma áspera e deserta. Sentia-se diminuído, desamparado como no dia em que seus pais morreram.
O auxiliar de plataforma, que observava à distância, compadecendo-se do homem, aproximou-se em silêncio, passou os braços ao redor dos seus ombros como se fosse um velho amigo e o conduziu a um dos bancos de cimento alinhados próximos às grandes vidraças da velha estação, ajudando-o a se assentar. Afastou-se em silêncio, possivelmente preocupado com tarefas e ponderações de sua vida ainda imberbe, não era realmente de se esperar que um quase-menino como ele pudesse compreender como o coração de um homem maduro padece ao ser remoído pelas circunstâncias de um destino aziago.
Jonas ficou ali como fora deixado, daquele jeito, sentado, só, sentindo o frio concreto lhe regelar as pernas e a alma. Apenas o silêncio da madrugada que se aproximava, abjeta, impiedosa, lhe fazia involuntária companhia. Com a mão esquerda segurava uma ponta de seu casaco próximo à boca e, inconscientemente, sugava seu polegar esquerdo. Estava prostrado, tácito, os ombros caídos e o olhar úmido encravado no denso matagal que imergia na insondável escuridão além dos trilhos. O gesto do adolescente destruiu o pouco da auto-estima que ainda lhe restava. Ele não admitia que sentissem pena dele, considerava a piedade, a comiseração, um sentimento que destrói o brio de um homem e ele havia se transformado num objeto de compaixão. A fumaça cálida que saía de sua boca esboçava lépidos e efêmeros redemoinhos esbranquiçados que logo se esvaiam no ar como fantasmas, intangíveis e irrecuperáveis como só o amor pode se tornar.
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Ele conhecia bem aquele monstro de aço que engolira sua Elisa e a levava para longe. Durante sua infância e adolescência, que já estavam muito distantes, brincara sobre os trilhos que cortava a cidade de São José dos Campos, imitava um maquinista nas cabines das locomotivas que invadia sem consentimento ou simplesmente dormia num dos vagões de carga estacionados ao longo da ferrovia. Queria ser maquinista como seu avô, que por décadas conduziu as pioneiras marias-fumaça, ou como seu pai, um homem rude e severo que pilotou por anos as primeiras locomotivas elétricas trazidas dos Estados Unidos. Com a decadência das ferrovias, a cidade também decaiu, os adultos perderam seus empregos, inclusive seu pai, e os jovens partiram atrás de um sonho qualquer. Para ajudar a complementar o rendimento familiar, sua mãe viu-se forçada a trabalhar na Companhia Fiação e Tecelagem Parahyba, antiga fábrica que costumava empregar centenas de moradores da cidade e de vilarejos próximos, e na qual o marido conseguira, por sorte, um emprego humílimo de ajudante geral.
Jonas nasceu numa família pobre, mas de rígidos princípios de religiosidade e de valores éticos estritos. Perdeu os pais, ainda criança, no incêndio que destruiu parcialmente a única fábrica da pequena cidade. O incêndio provocado por um de seus proprietários, segundo especulação dos moradores, serviu para que a empresa recebesse uma indenização do seguro que lhe proporcionaria alguma sobrevida. O fogo matou os pais de Jonas e outros trinta e dois empregados, mas a indenização recebida não impediu que a fábrica fosse à falência alguns anos mais tarde. A polícia nunca investigou as causas do incêndio e as famílias vítimas da tragédia nunca foram indenizadas.
Sentado ali naquele banco frio, ele rememorava a trajetória de sua vida, de desafios precoces, de sofrimentos constantes, de infelicidades perpétuas e de desesperança. Para ele, parecia que os deuses, se existem, haviam tramado contra ele. A perda prematura dos pais constituiu um acontecimento de conseqüências nunca superadas. Em luto perene, o sorriso parecia haver se apagado de seu rosto para sempre.
Jonas foi criado pelo irmão mais velho, Haroldo, que apesar de jovem - vinte e dois anos – transformara-se num desvirtuado, beberrão, boêmio e mulherengo, desde sempre revoltado contra a educação rigorosa do pai. Cuidou mal do pequeno irmão, que na época tinha apenas três anos de idade. À noite, deixava o menino sozinho em casa e saía para se esbaldar em farras homéricas, em casas de tolerância, regadas a uísque vagabundo e entre meretrizes gordas, malcheirosas e infectadas por doenças venéreas. Só voltava pela manhã, sujo, cambaleante, muitas vezes ferido. Com freqüência vomitava no tapete roto da sala e emborcava sobre a própria imundície, acordando somente no meio da tarde. A criança ficava só, no escuro da casa miserável, um pequeno e imundo cobertor preso à mão esquerda e o polegar enfiado na boca. Chorava durante horas até, vencida pelo cansaço, entregar-se a um sono instável, agitado, povoado de pesadelos assustadores. Às vezes Haroldo trazia alguns companheiros de bebedeiras para continuarem a farra em sua casa até, completamente embriagados, adormecerem no cimentado sujo da cozinha. Foi nesse cenário e convivendo com esses personagens que Jonas cresceu e, desde cedo, aprendeu a se virar.
Uma manhã, sem explicação, Haroldo, às pressas, reuniu uns poucos pertences, espremeu-os em duas velhas malas e tomou o trem para a cidade da São Paulo. Parecia fugir de um fantasma, de uma grande ameaça. Jonas o seguiu como um cachorrinho impotente. Desembarcaram na Estação Central do Brasil, próxima ao Largo da Concórdia. Dirigiram-se a pé para uma pensão decrépita no coração do Bairro da Lapa. Abandonou o menino de apenas nove anos e saiu para a rua. O menino, sem entender o que acontecia, ficou sentado na beirada da cama. Procurou entre as tralhas das malas seu velho cobertor encardido, segurou-o por uma das pontas com a mão esquerda, colocou o polegar na boca e o sugou até adormecer.
Apesar de dissoluto e perdulário, Haroldo tinha lapsos de responsabilidade. Num desses momentos, matriculou o pequeno Jonas numa escola pública próxima à pensão. Aos poucos o menino familiarizou-se com o bairro e encontrou entre as professoras uma que, conhecendo seus problemas, o orientava como a um filho.
Aos doze anos, em 1962, já assumia as responsabilidades de um homem adulto. Saía do modesto quarto da pensão pouco antes do nascer do sol, equilibrando sua caixa de engraxate em um dos ombros franzinos. Perambulava pelos bares da Lapa, nas imediações da estação da Estrada de Ferro Sorocabana e do Mercado Municipal. Na época, o bairro não era decadente como hoje e suas manhãs eram povoadas de homens engravatados que se apressavam para bater o ponto nas empresas sediadas nas imediações. Acostumado a essa rotina, Jonas entrava confiante nos bares e lanchonetes e invariavelmente conseguia engraxar um ou dois pares de sapatos. Era muito comum ouvir os adultos que conheciam sua história cochicharem a seu respeito coisas como: “O pobre menino se vira sozinho que nem homem-feito e ainda cuida daquele porco, daquele traste do Haroldo”.
Era uma vida de trabalho árduo e de resignação, mas que preservava sua dignidade. O pequeno Jonas tinha um único prazer na vida: ir à estação e ficar assistindo aos trens que chegavam e partiam. Tentava identificar os modelos das locomotivas e o ano de fabricação, o que o fazia recordar seus dias de inocência na pequena São José dos Campos. Era verdadeiramente apaixonado por aquelas caixas metálicas, coloridas e fumegantes que levavam e traziam as mais incríveis histórias.
II
A plataforma esvaziara-se completamente, apenas Jonas permanecia imóvel na frieza do banco de concreto. Fazia lembrar uma escultura de Rodin, uma imagem rija de bronze, a personificação da tristeza rude, do fracasso inflexível, da impotência peremptória. Nada se movia, apenas uma sombra, às vezes, projetava-se por uma das vidraças da estação sobre o piso áspero da plataforma e sugeria a existência de vida naquele deserto de argamassa, tijolos e vidros. Era o jovem ajudante de plataforma que de tempos em tempos conferia se Jonas ainda estava lá.
III
Passados três anos, Jonas tornou-se um adolescente bastante alto e forte para a idade. Certa noite, por volta das nove horas, lavava louças na pia, que servia de cozinha no minúsculo quarto e deixava cozer a escassa comida em velhas panelas apertadas sobre as duas bocas do fogão, quando ouviu baterem à porta. Olhou para o irmão e viu que ele dormia profundamente no sofá diante do televisor ainda ligado. Reduziu as chamas do fogão, secou as mãos num pano de pratos vermelho que estava sobre a mesinha, jogou-o sobre um ombro e abriu a porta. Deparou-se com dois homens mal-encarados, vestidos com roupas estranhas, um usava uma touca de moletom e o outro um inusitado óculos escuro; esbravejaram:
- Cadê o Haroldo, esse filho da puta?
Pressentindo que algo de ruim estaria por advir, tentou em vão mentir, sustentando que o irmão não estava em casa. Não lhe deram ouvidos. Afastaram-no com um tapa no peito e entraram no cômodo, sacando das cinturas revólveres escuros. Os homens desferiram doze tiros a queima roupa que desfiguraram completamente o rosto de Haroldo. O jovem nem mesmo acordou. Se realmente existe Inferno, como o que descreveu Dante, certamente Haroldo acordou diante do diabo completamente desorientado, sem ao menos saber que tinha morrido.
Jonas, instintivamente, pegou um pontiagudo facão sobre a pia e avançou em direção a um dos matadores que se curvara sobre o corpo de seu irmão. Desferiu um poderoso golpe, de baixo para cima, que entrou na base do pescoço do matador. Para o adolescente, tudo se passava como que em câmara lenta. O aço pontiagudo atingiu a touca que cobria a cabeça do assassino, rompeu a trama da malha, atravessou o tecido e avançou em direção à epiderme. A lâmina fria penetrou na pele quente, derme, intraderme, gordura, músculo; desviou numa das vértebras rígidas e seguiu seu curso; dilacerou a jugular interna, banhou-se no sangue denso da carótida e, através do maxilar, irrompeu na boca do desgraçado, decepando-lhe a língua, arrebentando-lhe os dentes e saindo com um rubro bólido pelas carnes de seu lábio superior. O sangue escuro jorrou de sua boca. O homem estrebuchou no chão como um porco. Urinou. Defecou. Contorceu-se num sinistro estertor.
Atônito com o gesto inesperado do garoto, e sem poder reagir a tiros, pois havia gastado todas as balas na encomenda, o outro homicida permaneceu estático por alguns segundos, a arma ainda fumegante à mão, os braços pendentes junto ao corpo. Enquanto vislumbrava uma maneira de se defender de tamanha fúria, uma lâmina faminta atravessou-lhe uma das lentes escuras dos óculos, destruindo-lhe o globo ocular e penetrando-lhe profundamente o cérebro. O infeliz caiu sobre o comparsa formando um amontoado aterrador de carne morta, sangue, urina e fezes.
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Jonas limpou suas mãos no pano de louças, tingindo-o de um vermelho ainda mais escuro. Olhou os corpos no chão, o rosto deformado do irmão, o facão cravado no olho do bandido. Sentindo o cheiro nauseante que infestava o quarto, vomitou.
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Cobriu o corpo do irmão com seu velho cobertor e sentou-se no chão ao seu lado. Com a mão esquerda reteve uma ponta do cobertor junto ao rosto e introduziu o polegar na boca. Ficou ali desorientado, sugando avidamente seu dedo. Sua indecisão, entretanto, durou poucos minutos. Recobrando seu autocontrole, levantou-se num salto e rapidamente recolheu alguns de seus pertences nas duas velhas e imundas malas, as mesmas que anos antes tinham acondicionado a bagagem dos dois na vinda para São Paulo. Agora decrépitas e com os fechos defeituosos, eram as únicas de que Jonas dispunha. Ajoelhou-se pesadamente sobre elas e amarrou-as fortemente com um barbante grosso de cisal. Com alguma dificuldade, desceu a vidraça guilhotina fechando-a completamente. A comida queimava. Apagou o fogo, mas deixou o gás escapando, propositalmente, pelos queimadores do fogão. Colocou uma vela acesa perto do corpo do irmão e abandonou o quarto, fechando a porta atrás de si.
IV
Afixado à parede acima do banco em que Jonas permanecia sentado, um relógio elétrico, cujo painel exibia esmaecidos algarismos romanos, badalou mais uma vez a hora exata como vinha fazendo havia mais de oitenta anos, vinte e quatro vezes todos os dias. Jonas não se virou para olhar, mas os ponteiros góticos marcavam duas horas já vencidas daquela gélida madrugada. Elisa tinha partido havia quase três horas.
O jovem ajudante aproximou-se novamente do homem. Carregava alguma coisa em uma das mãos. Surpreendeu Jonas ao lhe cobrir as costas com uma manta de lã com tramas que formavam losangos azuis e verdes. Com mais coragem do que alguém de sua idade costuma demonstrar, quebrou o silêncio que até então prevalecera entre eles:
– O senhor gostaria de tomar um café pra se esquentar? – ofereceu o ajudante, estendendo-lhe uma xícara fumegante.
Jonas meneou a cabeça negativamente sem dirigir-lhe o olhar ou agradecer-lhe a oferta. O rapaz não sabia, nem tinha como saber, mas aquele homem estranho e sombrio prostrado à sua frente no rude banco de cimento não pretendia ficar ali, inerte, sentado por muito mais tempo. Para onde ia, certamente não precisaria de café quente para aquecer seu corpo.
V
Ele tinha pressa, projetava o corpo à frente, andava a passos largos. Quando chegou à Rua Guaicurus sentia-se cansado. Olhava para os lados disfarçadamente temendo ter sido seguido. As malas pesavam como halteres em suas mãos. Parou na área de estacionamento em frente a uma pequena loja. Retirou suas bugigangas de ambas as malas e as espalhou pelo chão. Separaria o que considerasse que teria mais utilidade para ele, sem exceção. Trabalhou rapidamente. Colocou o que lhe interessava na mala que lhe pareceu em melhores condições. Meteu seus documentos dentro de saco plástico junto com um velho canivete suíço e o protegeu entre algumas cuecas. Fechou a mala com sofreguidão. Preparava-se para partir quando percebeu seu velho caderno de poemas semi-oculto por uma velha calça de jeans. Voltou a abrir a mala: aquela seria a única exceção, confirmando mais uma vez a regra inescapável.
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Uma ambulância passou em alta velocidade. Os gritos lancinantes de sua sirene ameaçaram arrebentar seu coração. Apressou seus passos, agora facilitados pela menor carga que carregava. Deixou a rua Carlos Vicari e entrou na avenida Francisco Matarazzo. Caminhava apressadamente. Em pouco tempo, viu surgirem à sua esquerda os muros da Indústria Matarazzo, as três chaminés fumegantes, o cheiro acre no ar. Mais adiante, à direita, assomou a fileira de árvores frondosas que ocultavam, ajudadas pela neblina e pela fumaça, as cocheiras do Parque da Água Branca. Sentia-se mais seguro, ninguém parecia segui-lo. A avenida estava praticamente deserta, o frio era cortante, mas Jonas suava intensamente. Um bonde solitário deslizava pela avenida. O motorneiro pilotava sonolento enquanto o trocador dormia a sono solto em um dos bancos de madeira. Apesar de suas preocupações e seus medos, não pôde deixar de se impressionar com a grandiosidade da fábrica. Lembrou-se do amido Brilhante, do azeite Iguape, do licor Brasil, em especial do sabonete Rex, do enjoativo perfume Sedução e da suave fragrância da água de colônia Mimi que vira as prostitutas, que seu irmão costumava levar para a pensão, deixarem sobre a mesinha do quarto.
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Jonas queria chegar logo ao seu destino, sabia o que devia fazer. Seus passos comiam vorazmente as distâncias: a avenida General Osório e a São João, o Largo do Café, a Praça da Sé. Seus pensamentos viajavam ainda mais rapidamente. A mala parecia arrancar-lhe o braço. Trocava de mão, colocava-a sobre os ombros, sobre a cabeça, abraçava-a junto ao peito. O dia amanheceria em no máximo duas horas. Avenida Rangel Pestana, agora seriam umas poucas centenas de metros de decida, teria algum alívio na sua caminhada. À frente, algumas poucas árvores do Largo da Concórdia já podiam ser vistas. Um pouco mais de esforço e determinação e conseguiria.
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Um carro da Rádio Patrulha passa num farol vermelho e aproxima-se rapidamente. Seu coração bate em sobressaltos. Jonas pára resignadamente junto à esquina. Deposita a mala na calçada e controla a vontade de chorar. A viatura policial agora está mais perto. Ele já pode imaginar a violência com que será abordado. Cobrirá o rosto, cairá de joelhos e deixará que o espanquem. Seja o que Deus quiser. Sem sinalizar, a RP faz uma conversão à esquerda e segue em direção à Rua do Gasômetro. Jonas fica sem respirar por alguns segundos. Não era com ele.
Finalmente pôde ver o Largo da Concórdia. Enfim, e antes dele, a Estação Roosevelt. Entrou na estação, sentou-se num banco de ripas espaçada longitudinalmente, colocou as pernas sobre a mala e adormeceu instantaneamente.
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Alguns raios tíbios de sol, que tentavam atravessar os vidros baços da grande vidraça em que Jonas se apoiara, atingiam suavemente sua cabeça. O burburinho das primeiras pessoas que desembarcavam para ir ao trabalho o faz acordar. Eram centenas de operários que trabalhavam nas fábricas situadas na região do Brás: Moinho Matarazzo, Souza Cruz, Alpargatas, Irmãos Spina, Confiança entre outras. Amanhecera havia poucos minutos. Inda meio desorientado, dirigiu-se a uma das bilheterias:
– Uma passagem de segunda classe, só de ida, para São José dos Campos, no Expresso, por favor! - e voltou a sentar-se.
A locomotiva elétrica fabricada pela General Electric, a gigante pintada com as cores azul e amarela, encosta lentamente na plataforma empurrando velhos vagões de madeira desbotados e gastos. Os alto-falantes ruidosos e fanhosos anunciam agudamente:
– Senhores passageiros do Trem Expresso com destino à cidade do Rio de Janeiro. A partida da composição está prevista para as oito horas. Por favor, apresentem-se para embarque imediato na plataforma de número um.
Jonas pega sua mala e praticamente arrasta-se pela plataforma. Entrega sua passagem ao chefe do trem que confere os dados, picota o bilhete e lhe indica o vagão em que deve embarcar. Ainda temeroso, o jovem olha para todas as direções antes de subir no trem. Procura sua poltrona, encaixa sua mala no compartimento para bagagem, senta-se, fica observando, pela janela, o movimento das pessoas que embarcam e circulam na plataforma. O sono começa a se insinuar.
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Atravessar uma cidade carregando pesadas malas teria derrubado qualquer um, mas não Jonas, pelo menos não fisicamente. Certo de que tudo o que vivera nos parcos quinze anos que o separavam do ventre de dona Lair, fizera dele um adulto precoce, mas as últimas horas, desde o momento em que aqueles dois facínoras bateram à sua porta, não haviam sido nada fáceis. Sua estafa mental era tão grande que nem se deu conta quando seus olhos se fecharam e ele adormeceu, aconchegando-se instantaneamente nos braços de Morfeu. Sonhou com a farmácia do pai de Elisa. No seu sonho, eles estavam sentados na calçada, de mãos entrelaçadas, eram namorados. Ela estava com medo. Temia que seu pai surgisse do fundo da farmácia e os visse assim, íntimos. Certamente a poria de castigo. De repente um ruído estridente: sirenes da polícia. Jonas levantou-se do meio-fio, soltou a mão de Elisa e olhou ao longe em direção à outra rua. O céu, repentinamente, congestionou-se. O sol foi encoberto por nuvens que se aproximaram numa velocidade incomum. Gotas grossas de chuva começaram a pipocar. Jonas sentiu seu coração disparar: a polícia estava ali. Virou-se para Elisa, mas ela havia sumido, não estava mais sentada na calçada. Olhou por sobre os ombros, não havia mais farmácia, em seu lugar surgira um muro alto, sujo, todo pichado, uma barreira que parecia querer afastá-lo de seu objetivo, de sua Elisa, de sua liberdade! Voltou a olhar para a esquina. Novos sons de sirenes. Seria preso.
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Acordou com um sobressalto. Suava; a camiseta colada ao corpo. Olhou pela janela e viu duas baratinhas da polícia que contornavam a rua que dava acesso à estação. Pulou do assento, pegou a mala no compartimento de bagagens, abriu-a e retirou seus documentos que guardara num saquinho plástico, junto com seu canivete, entre algumas cuecas. Enfiou o saco no bolso traseiro da calça e transferiu a mala para outro compartimento de bagagens que ficava imediatamente acima do assento dum senhor que dormia de boca aberta, a cabeça encostada ao vidro. Dirigiu-se ao banheiro em passos rápidos. Entrou e fechou a porta. Ficou em silêncio. Ouviu os policiais perguntarem aos seguranças que estavam num guichê se tinham visto embarcar um jovem alto e forte. Desesperou-se. Examinou o pequeno compartimento, em que estava encurralado, à procura duma saída, duma escotilha que lhe possibilitasse a fuga. Parecia não haver como escapar ou onde se esconder. Para a polícia, tratava-se dum caso de duplo homicídio, ou mesmo triplo. Acabaria preso numa unidade do Juizado de Menores, entre ladrões, homicidas e traficantes. Certamente os policiais entrariam no trem e interrogariam passageiro por passageiro, não conseguiria ficar por muito tempo naquele cubículo. Pensou na distante São José dos Campos. Agora não tinha mais certeza se conseguiria desembarcar lá. Pensou em Elisa.
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Procurou acalmar-se. Ele conhecia bem aqueles vagões de madeira. Lembrou-se de suas brincadeiras no interior dos trens estacionados ao longo da ferrovia na sua São José, pegou o canivete no bolso e, com algum esforço, soltou os parafusos que fixavam o vaso sanitário ao piso de madeira do toalete e o afastou. O espaço era pequeno para que ele passasse. Despregou um par de tábuas e testou o buraco. Perfeito. Destravou a porta silenciosamente, meteu-se pelo buraco e, com certa dificuldade, encaixou as tábuas no lugar, puxou o vaso cuidadosamente com as pontas dos dedos, em seguida deitou-se sobre as molas da suspensão do vagão. Esperou. Os músculos retesados. Cruzou os dedos torcendo para que os guardas não resolvessem inspecionar o banheiro, ou pior, a fixação da privada. Foram momentos de imensa angústia. Jonas manteve-se imóvel, de olhos fechados, como se dessa forma se tornasse imperceptível aos olhos da lei. De repente os ruídos e vozes ficaram mais próximos. Prendeu a respiração. Ouviu quando um dos agentes abriu a porta do toalete. Jonas quase pode vê-lo verificando minuciosamente o interior do compartimento. Foram longos e terríveis segundos, até que a porta se fechou e ele pôde soltar o ar preso nos pulmões.
Um sino badalou nas cercanias. Eram oito horas. O maquinista liberou os freios, acelerou a locomotiva que se movimentou preguiçosamente. Ele estava salvo. Esperaria o trem deixar a estação e voltaria ao interior da composição. Fazia frio. Ele não poderia ficar ali muito tempo. Quando se sentiu seguro, atravessou o buraco, travou a porta do toalete e repôs as tábuas e os parafusos nos devidos lugares. Voltou a ocupar seu assento. O senhor ainda ressonava, a boca aberta, a cabeça apoiada no vidro. Acomodou-se o mais confortavelmente possível. Fechou os olhos e dormiu.
VI
O dia começava a amanhecer na estação. Uma luminosidade branda fazia brilhar algumas folhas e galhos do matagal além dos trilhos, que minutos antes ainda estava mergulhado na penumbra. O horizonte assumia um tom alaranjado escuro, mas Jonas continuava encolhido no banco, a manta nas costas, a cabeça tombada para trás. Dormia profundamente. Para os primeiros transeuntes que circulavam pela plataforma, aquele corpo largado sobre o banco era, certamente, de um mendigo.
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Os primeiros e ainda discretos ruídos matinais finalmente despertaram Jonas. Ele abriu os olhos e num primeiro momento não se deu conta de onde estava. Seu corpo estava moído; já não era mais o menino de outrora, uma noite mal-acomodado num banco de concreto numa estação fria havia acabado com seus músculos lombares. O relógio dependurado sobre sua cabeça indicava 5:32. Dormira por três horas. Uma sineta ressoou por alguns segundos e a voz do locutor da estação rompeu o silêncio. A cena lhe pareceu quase um déjà-vu vivido quarenta e três anos atrás.
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– Senhores passageiros do Trem Expresso com destino à cidade de São Paulo. A partida da composição está prevista para as 5:40. Por favor, apresentem-se para embarque na plataforma, imediatamente.
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Jonas retirou a manta das costas largando-a sobre o banco. Levantou-se. Uma senhora gorda, mas muito bonita, com um lenço vermelho na cabeça, passou apressada rente a ele, sem lhe dirigir o olhar. Quase o jogou sentado de volta ao banco. Ela puxava um menino pequeno pelo punho. O garoto, que avançava trôpego, ainda conseguiu torcer o pescoço e olhar para Jonas durante um breve tempo até sumir, ainda arrastado pela mão, no meio da multidão que começava a se formar antes da chegada do sol.
Empunhando uma pasta marrom, um homem, de bigodes grisalhos, metido num terno marinho, conferiu seu relógio de pulso e estancou subitamente para procurar algo no bolso. Uma mocinha magra quase colidiu com suas costas. À esquerda, um casal de meia-idade discutia. O homem ia à frente e a mulher o seguia com o dedo em riste. Vociferava coisas que Jonas não conseguiu compreender. As pessoas demonstravam ter pressa. Muitas se moviam em curtas corridinhas para adentrar a composição. Ninguém parecia se importar com Jonas. Ele girou a cintura até o limite produzindo um estalo seco. Repetiu o movimento para o lado contrário, mas dessa vez não se ouviu um estalo. Olhou para o monstro metálico parado mais adiante, uma velha amiga; quase meio século de amizade. Jonas fitava, saudoso, a velha máquina. Em seu corpo rústico, as cores azul e amarela corriam como faixas paralelas de espessas camadas de tintas que se sobrepunham havia décadas. As inscrições em sua gasta pele metálica trouxeram a Jonas a certeza de que fora aquela composição que o trouxera de volta a São José, havia mais de quarenta anos.
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Subitamente, como num mergulho no tempo, num intervalo de existência, tudo pareceu esmorecer. Os passantes apressados, agora se arrastavam como que em câmera lenta, os ruídos pareciam graves e pastosos, a fumaça do cigarro de uma mulher subia morosamente, enquanto seu sorriso amarelo parecia congelar-se. Jonas viu um jovem vestido com roupas antigas saltar do trem com agilidade. Entre aquelas letárgicas figuras humanas, era o único que se movia normalmente. Jonas conhecia aquele jovem. Quis abordá-lo, aconselhá-lo, dizer-lhe o que fazer, o que não fazer; mas não conseguia se mover, suas palavras pareciam colar-se à sua garganta. Espantado, olhava-o. O rapaz deitara no chão a velha mala que trazia abraçada ao peito, amarrada com grossos barbantes. Jonas sabia o que passava em seus pensamentos. Conhecia seus planos.
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O jovem olhou para os lados e pareceu refletir por um instante. Abraçou novamente a mala, jogou-a sobre ombro, como se fora um estivador, e, decidido, seguiu à esquerda pela plataforma, driblando as pessoas que vinham em sentido contrário e que agora, em um átimo de tempo, passaram a se mover normalmente, mergulhados nos ruídos e na normalidade que sempre caracterizaram aquela estação.
VII
Jonas como que atravessara um lapso temporal. Aquela visão do passado servira para reforçar sua decisão...
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O jovem Jonas conseguira chegar a São José sem transtornos. Procurou a ajuda de Elisa que lhe conseguiu um emprego na farmácia do pai.
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Ele continuou a encher as páginas de seu caderno com apaixonados poemas dedicados a Elisa. Ele amava suas mãos, seus cabelos, seus olhos, seus sorrisos, sua voz, suas roupas. Elisa o amava como a um irmão.
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Jonas afastou-se dela no dia em que ela apresentou seu namorado ao pai. Aquilo o arrasou. Ele pegou suas coisas na edícula onde morava, no fundo do prédio da farmácia, e desapareceu.
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Vivia mudando-se de cidade, e dessa vez o motivo era mais do que justo. Permaneceu algum tempo em Caçapava. Depois se mudou para Taubaté, Santo Antônio do Pinhal, Campos do Jordão e Quiririm. Exerceu as mais humildes profissões, acabando por aposentar-se como fiscal de trem na cidade de Taubaté.
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De longe, ele acompanhava a vida de Elisa, através de amigos, de ligações telefônicas esporádicas, de visitas secretas a São José. Quando soube que Elisa ficara viúva, a procurou. Ela estava mudada. Madura, segura e ainda muito linda.
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– Vou embora para São Paulo. – ela lhe disse – Não tenho nada que me prenda a São José. Meus pais já morreram, não tive filhos. Vou morar com minha tia.
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– E eu, como fico? Eu a esperei tanto tempo...
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– Como? Você não percebeu que você nunca me amou? Você amou minha beleza, minha feminilidade. Você não me queria...
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Carinhosamente, Elisa aproximou-se dele. Passou ambas as mãos em seu rosto e pousou-as em seus ombros. Lágrimas desciam dos olhos do homem. Elisa sorriu docemente, como só um irmão sorri a outro. Por fim falou:
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– Jonas, querido. Eu preciso lhe dizer uma coisa. Uma coisa que eu sempre soube, mas acho que você talvez não saiba.
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Jonas olhou-a. Os olhos molhados, uma expressão interrogativa no sobrolho. Elisa prosseguiu, docemente, para não machucar o amigo:
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– Você queria ser eu, Jonas. Você sempre quis.
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Jonas foi tomado de um sobressalto. Tirou as mãos dela de seus ombros. Arregalou os olhos, balançou a cabeça em negação. Não saíram palavras. Estava em choque. Cenas de seus anos na Lapa voltaram à sua mente. Haroldo bêbado, largado na cama. Ele ali, só, exposto às sanhas sexuais dos amigos alcoolizados que o irmão trazia para a pensão. Aqueles monstros molestaram o pobre menino, recorrentemente. Haroldo simplesmente ignorava suas reclamações. De alguma forma aqueles acontecimentos haviam acionado algum estranho mecanismo dentro do menino, algum mecanismo inexplicável...
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Sim, Jonas queria ser Elisa. Queria seus olhos, sua voz, seus perfumes, suas roupas sensuais, seus cabelos loiros. Elisa era seu lado mais bonito, a fêmea insinuante e esguia.
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Saber que Elisa conhecia seu segredo foi devastador. Num ato de coragem e resignação, ele a acompanhou à estação e a viu partir definitivamente
VIII
Jonas lamentava seu destino infausto. Gostaria de ter sido pai. A bela senhora que arrastava a criança na plataforma povoada da estação poderia ter sido sua Elisa, o gracioso menino seu neto...
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Não lhe restava mais nada... Sem os pais, sem amigos, viveria como um fantasma. Recolheu a manta de lã, de losangos azuis e verdes, e caminhou vagarosamente até a extremidade da plataforma.
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Com a mão esquerda, segurou uma ponta da manta junto ao rosto e, disfarçadamente, colocou o polegar na boca.
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Sua única amiga era a velha locomotiva que começava a movimentar-se lenta e ruidosamente na estação.
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Jonas chorava. Seu coração estava disparado. O maquinista puxou o cordão dentro da cabine fazendo soar o apito, uma longa e melancólica melodia. Era como se sua velha amiga lhe dissesse adeus. Aquele foi o último som que Jonas ouviu.
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As pesadas rodas de ferro da locomotiva atritaram ruidosamente contra os trilhos desgastados. O maquinista interrompeu a partida.
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O ajudante de estação correu em direção à pequena multidão que se formara próximo à velha máquina. Forçou sua passagem por entre as pessoas aglomeradas que emitiam gritos e preces e estancou mortificado.
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O corpo dilacerado de Jonas era cuidadosamente retirado de sobre os trilhos. Sua mão direita ainda segurava firmemente seu caderno de poemas onde, entre manchas espessas de sangue, ele pôde ler:
“Elisa”
“Tivesse eu teus encantos,
Teu cheiro doce de mulher,
Não teria vivido em prantos
Um destino avaro qualquer.”
Fim
Gabriel e Cesar
Julho/ 08
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5 comentários:
Parabéns, amigos.
Vocês estão bem sintonizados. Em alguns momentos, foi difícil saber quem estava escrevendo.
Espero outros contos iguais a esse.
Beijos, Tânia
14.7.08
Gostei.
bjs
tia Therezinha
15.7.08
Ducaralho, Cesinha! Parabéns pros dois.
Porra! O cara era boiola, malandro... q maus...rararara
abzzz
Marcelo
16.7.08
A despedida é muito boa, não é fácil escrever a quatro mãos. Estou gostando bastante dos desfechos de seus textos, não são óbvios, na verdade, são inesperados, isso é muito bom, pois de uma certa forma é o que esperamos dos livros, que nos surpreendam.
Bj
Martha
18.7.08
Muito interessante ir sacando pelas cores quando é você e quando é seu amigo. Gostei brother, mas ainda não terminei de ler. Legal!
tenho uma dúvida: o cara mastiga ponta de fronha????? quequéissorapá!rs
té+ Edu (da Domus)
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