Esquistossomose

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O menino voltou à classe em meio a um grupo falante de outros meninos e meninas. Tentava aparentar calma, mas estava nervoso. A 1ª aula do dia, de Biologia, iria começar as 7:45hs, dentro de exatos 10 minutos. Mas ele já estava na escola desde muito cedo naquela manhã.
Diferentemente dos outros, já havia subido na classe e preparado tudo para sua escapatória triunfal, mas ninguém sabia disso.
Chegou as 5:50hs trazido pelo pai. Desceu do carro e fingiu adentrar pelo portão, mas não o fez, ficou atrás dos arbustos da alameda de entrada, até o horário da troca de turno dos guardas que aconteceria às 6hs.
Já conhecia a rotina toda, havia estudado e avaliado cada pequeno detalhe dos procedimentos da escola durante semanas. Sabia que esta seria a única hora da manhã onde haveria a possibilidade de entrar no colégio, antes do horário permitido, sem que ninguém o visse.
O seu plano era ir à sala, preparar tudo e sair de lá o mais rápido possível, antes que alguém percebesse. Em seguida correria para o banheiro e ficaria escondido até às 7hs, quando as crianças começariam a chegar; então desceria ao pátio central e se misturaria aos outros aguardando o sinal que liberava a subida de todos.
De trás do arbusto, viu quando os 2 homens no amplo átrio, o guarda noturno e o porteiro da manhã, se cumprimentaram e entraram por uma porta lateral rindo e falando algo a respeito de futebol. Ele teria agora menos de 1 minuto para cruzar todo o saguão de entrada e subir correndo as escadarias que davam acesso às classes; era o tempo que os homens levavam dentro da tal saleta, provavelmente trocando molhos de chaves e jalecos.
Passou correndo abaixado, cruzando toda a extensão do átrio, a mochila, mais pesada que o habitual ia às costas; as mãos seguravam firme as alças que passavam pelos ombros e axilas. Facilitado pelo seu tamanho diminuto e sua estrutura franzina (aparentava 8 anos, apesar de já ter 11), conseguiu vencer o trajeto sem ser notado e subiu correndo a escadaria, controlando o barulho dos passos.
Era um menino de corpo exíguo, mas de mente arguta, analítica e ardilosa; uma pena não usar tamanha inteligência e perspicácia para o bem, foi o que o Dr. Lauro, diretor de disciplina havia dito ao seu pai na última vez em que este foi chamado ao colégio.
Ele não era nem de longe um menino virtuoso, era insubordinado e insolente. Não respeitava regras, ou esquivava o máximo que podia de fazê-lo... Insidioso, tinha prazer na crueldade e na humilhação dos tímidos e das minorias. Caçoava de aleijados, zombava de velhos e pobres e judiava de animais.
Gloriava-se em relatar que um dia havia encontrado perto de sua casa ao pé de uma árvore, uma gata debilitada que acabara de parir sete filhotes. Correu arrumar um saco de estopa e colocou todos dentro, mãe e filhos. Amarrou bem a boca com um barbante e misturou o saco aos outros de lixo que ficavam junto a um poste. Naquela mesma noite, na hora em que o pessoal da limpeza pública passou, ele já estava escondido aguardando para ver o saco de gatos ser jogado por engano junto com o lixo dentro da caçamba mecânica do caminhão. Com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, contava que pôde ouvir os guinchos de horror dos miseráveis enquanto eram vagarosamente estraçalhados pelas espirais de aço giratórias.
Apesar de inteligente, era péssimo aluno. Preferia usar seus atributos intelectuais para burilar maldades e falcatruas das mais variadas. Mesmo sendo miúdo, era temido e respeitado. Graças ao seu talento para o embuste e o maquiavelismo, liderava um grupo de pequenos patifes iguais a ele.
Naquela manhã, havia convencido o pai que gostaria de chegar bem cedo, antes das 6hs. Argumentou que precisaria se preparar para a apresentação de um trabalho. O pai, sempre esperançoso, gostou e levou-o cedinho, feliz da vida. Quem sabe era o começo de uma mudança?Mas ele nunca pretendeu fazer tal trabalho. Tinha planos para se safar na última hora. Depois do tumulto, alegaria que seu material se perdeu em meio à correria e confusão, e poderia pleitear então uma nota digna junto à direção; e com o aval de dezenas de testemunhas que o veriam decidido, empunhando amplo maço de folhas.
O trabalho que o Sr. Fortunato, professor de Biologia havia lhe exigido, era na verdade fruto de um acordo entre ambos. O menino fora pego em flagrante colando na prova e implorou para não tirar zero e ter de levar a prova anulada para o pai assinar. Fortunato então propôs, em troca do perdão, a confecção e a apresentação à classe toda de um trabalho sobre o tema Esquistossomose. O prazo combinado para a apresentação seria de 1 mês a contar daquela data. Valeria de 0 a 10 como a própria prova que lhe havia sido suprimida. Presenciados por toda a classe, acertaram todos os detalhes. Como única forma de escapar do zero instantâneo, o menino não teve outra opção a não ser aceitar.
Passados 30 dias era chegada a derradeira manhã. Ele havia estudado muito, mas não propriamente sobre esquistossomose, estudou outras coisas... Entre elas: turnos, intervalos de tempo entre os sinais, fixação de objetos com cola, eletrônica, polímeros, combustão, resistência dos materiais, química básica...
Nunca se viu uma turma de crianças tão ansiosa por uma aula como naquele dia. Sentaram-se todos, estranhamente calados, ávidos pela chegada do professor. As feições infantis quase não conseguiam esconder a posição de víndices que haviam assumido. O menino e seu pequeno grupo de marginais mirins haviam feito maldades e covardias das mais diversas a muitos deles naquele ano e no ano anterior: chicletes colados em cabelos longos, tachinhas em assentos, empurrões nos corredores, baratas colocadas dentro de mochilas, cuspes de chocolate desferidos de cima de escadas em uniformes branquinhos etc.
O clima era de execução e vingança. Todos sabiam que o Sr. Fortunato, homem austero e severo, o faria sofrer, o humilharia. Ele teria que ser muito bom naquela apresentação para se safar. Foi então que o professor entrou na sala em meio ao silêncio atípico. As crianças salivavam como pequenos urubus orbitando à carniça. Quietos aguardavam fitando cada movimento. Os pequenos olhos, possuídos pelo rancor, eram frios e acinzentados, como diminutas moedas de estanho. Não conseguiam disfarçar a euforia por assistir ao holocausto, ao lento sacrifício do criminoso que começaria em instantes.
O único de boca seca e lábios colados era o menino. Ocupava, propositadamente, a última carteira ao fundo à esquerda. Já havia pesquisado todo o histórico de Fortunato com alunos antigos. Sabia que o professor o convidaria a realizar a famosa troca de lugares, fazendo-o ir à frente e assumindo seu assento, para simplesmente assisti-lo, como um aluno.
O professor entrou e se postou entre as crianças e a lousa, deu bom dia a todos e anunciou que aquela seria uma manhã diferente. Um colega daria uma aula muito especial em seu lugar.
Com ar cínico, ordenou, em meio a risadinhas abafadas, que exigiria total e absoluto silêncio para que todos pudessem aprender com o nobre colega.
A tortura começara. Suas palavras, pausas e entonações eram um misto de sadismo e pilhéria. Desejava potencializar o suplício e o tormento do garoto, descortinar sua insignificância, humilhá-lo e flagelá-lo até o prostrar de joelhos, minguado. Afinal não poderia se esquecer das troças e ironias inteligentes que o menino o submeteu diversas vezes frente à classe, nem das inúmeras vezes que, pelo resultado da prova, estava claro que o garoto havia colado, mas ele não tinha como acusá-lo. Sem falar no dia em que ao chegar ao seu carro no estacionamento, já à noite, deparou com uma escarrada verde estalada em cada uma das janelas. Sabia muito bem quem era o autor de tal obra de arte. Jurou um dia pegá-lo; de jeito.
Como previsto, o Sr. Fortunato fez mais alguns comentários sobre a apresentação e propôs então, a esperada troca de posições: “eu vou para o lugar do senhor e o senhor vem para o meu”, disse satisfeito. O circo estava armado.
Em meio ao silêncio pesado, ambos se deslocaram e se cruzaram pelo estreito corredor entre as fileiras de crianças, sem se olhar, até que um tomou a posição do outro.
Naquela manhã, a carteira em que o professor acabara de se sentar, estava estranhamente posicionada mais à porta e com uma distância maior das demais. Mas ninguém percebeu tal detalhe.
Fortunato ajeitou-se no assento e se recostou, abriu um caderno sobre a mesa, limpou com o avental os óculos, recolocou-os e cruzou os braços aguardando. Mantinha aquele mordaz e discreto sorriso de canto de boca. Sabia que não deveria pensar assim de uma criança, mas desejava mesmo ver o garoto se danar.
O menino chegou à frente carregando um pacote de folhas em branco que todos imaginaram ser o trabalho. Com o coração disparado no peito mirou a pequena multidão silenciosa que o aguardava. Antes de começar a ler o 1º e único parágrafo que de fato havia sido escrito, aproximou o punho direito do rosto e olhou o visor do seu relógio vermelho. Ao centro do mostrador, um Cascão com chapéu de guarda-chuva, indicava com os dois braços que faltavam apenas 2 minutos para as 8hs. Um arrepio desceu-lhe pelas costas. Estava sozinho desta vez, nenhum dos seus amigos gatunos sabia do que estava por vir e nem em sonho poderiam saber...
Começou a ler as parcas linhas que copiou da Internet. Diziam elas que "a esquistossomose, vulgarmente conhecida como barriga d’água, é uma infecção causada por um verme chamado Schistosoma Mansoni, um parasita multicelular...
Enquanto lia, sua mente girava a mil. Pensava que faltavam poucos segundos para o inferno se instalar ali. O texto copiado estava chegando ao fim e ele então não teria nada mais a dizer. Será que não iria funcionar? O que faria se não funcionasse? Calculou mentalmente e achou que já estava demorando muito.
“... o malfadado verme ocasiona algo como 200.000 mortes por ano no mundo todo e...”. Olhou novamente para o pulso e o Cascão idiota agora indicava 8:01hs. Acabou-se! Ele estava mesmo em maus lençóis! Não deu certo, alguma coisa falhara!
Começou a se preparar para explicar ao Sr. Fortunato e a todos, que não foi capaz, que não conseguiu mesmo fazer o trabalho, iria assumir o zero e o vexame público, seria levado à diretoria e o seu pai teria que assinar mais uma daquelas cartas. Seu martírio seria a redenção do maldito professor e de cada um dos que massacrou.
Fechou as folhas decidido a se entregar. Olhou para todos, olhou para o professor ao fundo, expirou e abriu a boca para dizer: “Sr. Fortunato, me desculpe, mas eu não fiz o trabalho”.
Mas estancou de boca aberta. Não houve tempo.
Embaixo da carteira onde o professor estava sentado, levados à aproximação pelos ponteiros de um relógio velho sem visor, dois fios de cobre desencapados se encontraram.
Em 0,3 milionésimos de segundo, um impulso elétrico fechou uma corrente iniciando a detonação dos 200 gramas do explosivo plástico quimicamente conhecido por RDX, afixado sob o assento da cadeira.
A explosão gerou um deslocamento de ar e ruído tão estupendos, que todas as vidraças da sala estouraram e 6 das 29 crianças tiveram seus tímpanos rompidos. Os mais próximos foram chamuscados nas costas e nuca e seus cabelos derreteram colando às suas cabeças. Fortunato foi projetado em dezenas de pedaços para todos os lados, e golfadas desordenadas de sangue espirraram enrubescendo todo o recinto.
O coração do menino parou no peito. Seus globos oculares quase saíram fora das órbitas. Assistiu a tudo lá da frente, em câmera lenta, como em um filme. De repente ele sentia como se estivesse de lado. Estava deitado no chão, em posição fetal. Pensou ter caído. Não conseguia se mexer tamanho o pânico. Não poderia imaginar no mais louco devaneio que seria algo tão poderoso.
Assim, deitado, quase se arrependeu. Via membros espalhados, ouvia gritos, sentia cheiros. Por um instante sentiu o calor das chamas no rosto e o gosto de sangue na boca.
Foi então que o agarraram por trás. Uma mão apertou-lhe o ombro, uma mão forte... "Fui pego, me pegaram!”, pensou. “Não, por favor, nãaao!”, pulou gritando num espasmo de susto e horror. Estava suado, os cabelos e a camisa colados ao corpo.
Percebeu, subitamente, que estava deitado no banco do carro, ao lado do pai. A mão que o sacudia era a dele, querendo avisar-lhe que já estavam estacionados em frente à escola.
Desceu confuso do veículo. Virou-se e acenou um tchau aturdido para o pai.
O Sr. Jair já o aguardava no portão. O ajudaria a montar o retro-projetor na sala de aulas para a apresentação do trabalho. O pai havia conseguido que o recebessem antes do horário permitido para que pudesse preparar tudo.
O homem e o menino cruzaram o portão que dá acesso à entrada e avançaram pela alameda de arbustos. O bedel pediu para que o menino esperasse um pouco fora do saguão até que ele pegasse as chaves das classes. Sumiu pela porta da saleta lateral. Levou 1 minuto para voltar.
O menino olhou para o chão e viu que perto do seu pé se arrastava uma lagarta verde-escura, bem gorda, dessas que viram borboleta. Aproximou o pé e tocou-lhe de leve o corpo com o tênis, segurando-a. O inseto se contorceu para tentar sair. O pé apertou devagar, bem ao centro do corpo. O pequeno animal sacudiu, em desespero silencioso. A pressão do aperto aumentou um pouco; o corpo do bicho passou então a soltar um líquido incolor pela lateral. O menino mantinha um olhar curioso e um sorriso único no semblante, que revelava um prazer e uma curiosidade especial pelo sofrimento alheio.
Seu Jair assoviou lá de dentro e fez um sinal, chamando-o a entrar. Com a expressão impassível, o garoto levantou a cabeça e olhou para o homem; em seguida voltou a olhar para baixo. O pé que prendia a metade traseira do pequeno invertebrado apertou lenta e gradualmente, até chegar ao chão, gerando um ruído úmido e ligeiramente borbulhante. O menino torceu o pé e puxou-o lentamente para trás, arrastando com firmeza a sola ao piso áspero, deixando um grande rastro úmido e esverdeado. A metade que restou da lagarta ficou a se contorcer e a saltar enlouquecidamente; aguardando a chegada da morte.
O homem atravessou o átrio e o saguão inteiros e subiu as escadas procurando uma chave, em meio a um enorme molho. O friozinho da manhã e o silêncio pareciam potencializar o ecoar dos passos de ambos no majestoso salão. O menino ia atrás dele com as mãos nos bolsos do jeans. Esboçava um leve sorriso e um olhar de saciedade. Presa às costas ia a sua mochila, naquele dia, um pouco mais pesada que o habitual.
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Cesar Cruz
Maio/ 2007
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2 comentários:

Anônimo disse...

Cesar

só hoje consegui ler o texto. Muito legal, parabéns. Vocêestá se superando.

Brevemente teremos de batalhar uma edição, mesmo quecaseira!

Vagner

29.9.07

Anônimo disse...

Excelente história! Segura a gente do começo ao fim

abç, Luiz