Metamorfose ambulante

Nos anos 80 eu era curtidor rock. E como não poderia deixar de ser, era fã do Raul Seixas. Curtia, mas não entendia algumas verdades expressas em suas músicas. Bom exemplo é a música Metamorfose Ambulante. E foi justamente isso que me tornei, uma metamorfose ambulante. Todas as minhas opiniões formadas e as minhas certezas-absolutas ruíram.
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Ah! Com 20 anos eu sabia tanta coisa. Eu era bom, só vendo! Um semideus, dava gosto ser eu! Sabia tudo sobre tudo, e tinha sempre razão.
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Engraçado lembrar que, para todas as coisas, em especial aquelas universalmente polêmicas, eu havia desenvolvido certezas inflexíveis, indissolúveis e inabaláveis.
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O assunto era aborto? Eu tinha a resposta! Pena de morte? Lá estava eu com o veredicto! Meninos de rua? Eu conhecia a solução! O pós-morte? Eu sabia para onde iríamos e conhecia toda a verdade! Bastava me perguntar. Ah! Quanta onisciência juvenil...
E hoje? Bem, hoje...
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O tempo é mesmo um inimigo inclemente, um professor vingativo. Hoje vejo que ele atropelou despercebidamente cada uma das minhas verdades. Triturou a minha soberba, picotou o meu ego e solapou-me a altivez juvenil; todas marcas pessoais do jovem Cesar. Por fim, todas as minhas certezas caíram mortas, como grãos de areia que escorrem pelo furo duma ampulheta, um a um, até não restar um único.
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Certa vez alguém escreveu: “nasce em mim um novo homem a cada velório que participo”. Grande verdade! Em mim também.
É como se a cada ocasião dessas, a mão gelada da morte me tocasse a nuca com a ponta dos dedos, como quem diz: “seja humilde, pois você não conhece nada de nada”. E então, como em uma chacina, uma dúzia das minhas sabedorias são metralhadas, veladas e sepultadas ali mesmo, junto com o defunto.
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E é desta forma que, dia após dia, ano após ano, a humildade e a fragilidade humana que moram em mim, desinibem-se e emergem.
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Quem pode ser tão forte, tão egocêntrico, tão prepotente? Acredito que não há um único ser humano, por mais inteligente, forte e sábio que seja, que não tenha um dia se surpreendido no corredor de um hospital, pequeno e oprimido, impotente e débil frente ao diagnóstico negativo de alguém que ama.
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É, amigos... As lições do professor tempo são mesmo muitas! A agonia da doença, as perdas amorosas, a corrupção do governo, a injustiça social, a vileza humana, o desemprego, a violência, a crueldade, a opressão, o acidente, um câncer...
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Concordo veementemente com Aristóteles quando disse: “tudo que sei, é que nada sei”. Ou teria sido Sócrates? Bem...
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Então hoje, mais prudente e humilde, prefiro, como na música do Raul, ser mesmo esta metamorfose ambulante. Quem sabe assim, Deus, a vida e o tempo, tenham misericórdia de mim.
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. Cesar Cruz
Março/ 07
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2 comentários:

Anônimo disse...

Engraçado como eu me sinto renascido, não a cada velório que vou, pois para mim um defunto é só o que está ali: um monte de carne apodrecendo em cima de ossos. Me sinto renascido a cada real que entra no meu bolso. Não, não sou argentário ou materialista. A maioria das religiões prega o desapego ao que é terreno. Mas onde estamos afinal? Na terra. E na sociedade em que vivemos você não é nada sem dinheiro. Amigos que você há muito considerava somem todos quando você está na pior. Parece que você até pegou uma doença contagiosa. Mas quando você está por cima da carne seca, como dizem, aí aparecem amigos de onde menos se espera. Cambada de puxa-sacos! Mas que Deus me perdoe, como eu gosto de ter esse poder... porque sem grana no bolso, não dá para saber quem é quem. Simplesmente você é excluído da sociedade, dos sonhos, do futuro, você é jogado daqui para lá como um monte de estrume podre. E eu prefiro ter poder do que ser podre.
23.3.08

CESAR CRUZ disse...

Oi!

Obrigado pelo seu comentário ao meu texto. Como eu mesmo escrevi na página de comentários, o bom é a diversidade de opiniões e o respeito a elas!
É claro que não precisamos concordar um com a opinião do outro sobre o mundo e sobre as coisas. Não tem problema, podemos ser amigos assim mesmo. Afinal, ninguém é igual a ninguém e as pessoas enxergam a vida por óticas distintas mesmo.
Fiquei triste por saber que um, ou alguns amigos teus, te decepcionaram. Isso é triste. E aí temos algo em comum. Prezamos a amizade. A verdadeira amizade desinteressada! Aquela que não depende de dinheiro, nem de posses. Aquela que está disposta a dizer para o amigo que ele está errado, mesmo que ele não goste de ouvir isso! Ou aquele amigo que te coloca nas costas e te atravessa para a outra margem do rio caudaloso! Pois é essa aí a amizade que eu prezo!
Espero que vc volte a ler os meus textos e mandar estes seus comentários ácidos!

Abraços
23.3.08