O que vale é a moral do homem!

Tentei balbuciar um protesto, mas, vexado, virei as costas e sai andando com o rabinho entre as pernas. Senti meu rosto esquentar, devo ter ficado vermelho. Parti com um misto de vergonha com revolta. Vergonha, pois semelhante a um tropeço na rua, veio-me a sensação de que alguém viu a invertida que tomei e agora deveria estar rachando de rir, espiando detrás de algum poste. Revolta, pois meu primeiro pensamento foi: "como ele se atreve a não aceitar a minha ajuda? Afinal, ele não precisa?"
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Pois é... O fato é que o homem sentado ali na calçada e enrolado em um cobertor mal cheiroso, rejeitou a minha mão estendida. Aonde teria ido parar o usual “Deus lhe pague”? E aquele olhar subserviente que tanto me enche de inconfessável delícia? Senti falta de ambos. Fez-me falta também a sensação de plenitude, de importância, de orgulho, que me sobrevém destes momentos.
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Ele não só se recusou a ser objeto do meu ato de misericórdia, como também demonstrou naquela recusa, asco e aversão incomuns: “Nã-nã-não! Muito obrigado, não quero, não quero!”. Fui surpreendido pela sua face virada e contraída, e pelo espalmar de sua mão suja a afastar com nojo a minha oferta.
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O mais surpreendente foi a forma clara com que ele falou. De certo não era um ébrio, muito menos um ignorante. Não gritou, mas falou firme, claramente e em bom Português!
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Voltei ao trabalho meio atarantado, tentando entender por que fui repelido de forma tão higiênica. Entre uma tarefa e outra no escritório, refletia acerca do ocorrido e chegava a algumas conclusões, a maioria pouco confortáveis, para mim.
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Compreendi que o erro não estava no conteúdo, mas na forma. Não foi o que fiz, mas como fiz, que o aborreceu. Como eu, um desconhecido que não sabia nada da sua vida, da sua história de sofrimento, dos seus sentimentos, pude me atrever a invadir o seu espaço sem pedir licença, colocando em seu colo um pacote com roupas velhas? Que invasão! Eu nem lhe perguntei se queria, não lhe apresentei nem um boa tarde!
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Assim que fui expelido, pensei: “mas que mendigo mais orgulhoso!”. Ora, convenhamos! Seria razoável esperar uma outra reação da parte dele? Pois é aí que está o problema: na nossa forma de pensar. Em alguma parte sombria e embolorada da minha mente, acreditei que um pobre desvalido, um paria como aquele, deveria se resignar à sua situação de ter nada, não poder dizer nada, protestar ou escolher coisa alguma. Deveria, ainda, caminhar quietinho, renunciando à vida e às suas felicidades, ano após ano, até que um dia, acabasse no matadouro como uma ovelha muda.
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A prova de que, mesmo que inconscientemente, vi naquele homem um ser inferior a mim, foi que, surpreendido e sentindo a minha benevolência afrontada, quase disse a ele um ou dois desaforos que me passaram pela cabeça. Vieram-me na ponta da língua, mas os engoli a tempo!
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O que eu diria? Que já que ele não estava disposto a receber a minha ajuda, que se danasse e esperasse a morte ali naquele chão? Ou que fosse, então, para o inferno? Ingenuidade minha; a vida dele já é o inferno. Pior, havia raiva naquele meu quase dizer! Indignei-me, mas não tinha o direito de me indignar com coisa alguma. Meu Deus! O direito era dele; ele era sem dúvida o dono legítimo daquela indignação.
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Lembrei-me de um acontecimento ocorrido 15 anos antes. Naquela época havia o João Pedreiro em nossa família. A cada courinho de torneira que espanava, ou um conserto de fogão que se fazia urgente, minha mãe chamava o João, que não era só pedreiro, mas um faz-tudo de mão cheia. Quase todo o mês o João aparecia lá em casa, chamado para consertar algo.
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Certo dia, no início da noite, estávamos em casa e, de repente, minha mãe abriu a porta e o João pulou para dentro da sala pronto para mais um serviço. Empunhava maleta de ferramentas e cabos elétricos ao redor do ombro. E eu vestia só a cueca! Então exclamei: “Opa João! Não repare, estou de cuecas!”, ele respondeu: “Me importo não Cesar, o que vale é a moral do homem”.
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Desde então, parece que vez por outra ouço as palavras do João ecoarem nos meus ouvidos: “O que vale é a moral do homem!”. Simples, mas grande verdade.
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Consultando o dicionário descobri que moral (a moral) é, em resumo, o conjunto de princípios éticos que rege a vida em sociedade: o que é correto, decente, digno, honesto, íntegro, probo, verdadeiro, de bom costume, de bom caráter, de valor, honrado, nobre, que tem escrúpulo, etc.
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Descobri, ainda, que moral pode ser também uma referência ao estado de espírito do indivíduo, o aspecto mais íntimo do termo (o moral): moral baixo, moral abalado e por aí vai. Vejam só! O João sabia mesmo das coisas!
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Enfim, “a moral do homem”, que o sábio João Pedreiro carregava como lema de vida, é a soma de tudo isso!
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Voltando ao mendigo, a verdade é que bastaria eu ter chegado mais de mansinho, de forma menos arbitrária, respeitosa, gentil. Tratei-o como um cão, essa é a verdade. Sem intenção, mas tratei.
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Da próxima vez darei um sorriso e farei uma abordagem mais delicada, do tipo: “Boa tarde, amigo. Você sabe quem poderia se interessar por algumas roupas que não me cabem mais?”. Aí sim!
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Bem, no fim da história o homem ficou sem a ajuda de que precisava, e eu, como diria minha mãe, tomei um belo esfrega para largar mão de ser besta.
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Cesar Cruz
Dez/ 07
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Um comentário:

Anônimo disse...

César,

Que delícia de crônica !!

Cada vez gosto mais do que você escreve !!
Além de tudo, essa nos dá uma lição, uma não mas algumas, pois eu não sabia que moral poderia dizer tudo isso ...


O que você escreve é muito gostoso porque a gente quer ler até o fim, não quer parar no meio. Fica presa pelo assunto, pela engrenagem...

Beijos à Vanessa.

CArolie

20.12.07