O telefonema

.
Eliseu acordou sobressaltado com o telefone tocando. Levantou a cabeça e viu que sua mulher dormia pesadamente na extremidade oposta do sofá. Na TV um desses filmes legendados que as emissoras só têm coragem de exibir nas madrugadas de domingo quando não há ninguém acordado para ver.
Atendeu:
.
- Alô? - falou baixinho, já se encaminhando com o aparelho sem fio para a cozinha, para não acordar a mulher.
.
- Alô - uma voz de homem do outro lado respondeu.
.
- Quer falar com quem?
.
- Com você mesmo – disse a voz. – É o Eliseu?
.
- Sim, quem é?
.
- Sou eu, Eliseu. A voz era conhecida, Eliseu achou que fosse algum amigo seu armando uma brincadeira, ou alguém que não via há algum tempo talvez, mas estranhou o horário, inadequado para qualquer das duas opções. O relógio do micro-ondas marcava 3h17. Quem seria capaz de ligar na casa dos outros neste horário?
.
- Eu quem? Desculpa amigo, já é de madrugada e...
.
- Eu mesmo, Eliseu, você!
.
- O quê? Não entendi!
.
- Isso mesmo que você ouviu, eu sou você, Eliseu. Ou você sou eu, como preferir.
.
Eliseu finalmente reconheceu a voz. Já a havia ouvido outras vezes. Ouvira-a gravada na secretária eletrônica de casa e também em um vídeo de Natal, em que ele fez papel de entrevistador de tios, primos e avós. Mas ele nunca gostou daquela voz, aquela que era a sua verdadeira voz, não a que ele ouvia quando falava, mas a voz real que as pessoas ouviam vinda dele.
.
- Amigo, que brincadeira é essa? Isso aqui é uma casa de família, você vai acabar acordando meus filhos!
.
- Não seja ridículo, Eliseu, você não tem filhos. O máximo que pode acontecer é você, com esta gritaria que está fazendo, acordar antes da hora a Fátima que está dormindo no sofá tão bonitinha.
.
O coração do Eliseu disparou. Fosse quem fosse os estava enxergando dentro de casa e sabia muito da vida deles. Sem falar naquele negócio da voz ser igaul à sua.
.
Correu fechar as cortinas da sala, mas ficou surpreso ao ver que já estavam fechadas. Foi até a base do telefone para espiar no identificador de qual número o homem chamava. Era um número estranho, ao invés dos oito dígitos habituais, havia apenas cinco.
.
O homem do outro lado ria uma risada familiar:
.
- Quer tentar descobrir quem sou, Eliseu? Não precisa, já lhe disse, sou você! Não precisa temer. Só preciso que você me escute por 1 minuto...
.
Eliseu desligou o telefone. O coração quase saindo pela boca. Ligou o aparelho de novo e discou para o estranho número de apenas cinco algarismos que apareceu no visor do identificador. Achou que não ia funcionar, que não haveria linha, mas, surpreendentemente, funcionou. Tocou três vezes até que atenderam.
.
- Alô? – uma voz de mulher jovem. Ao fundo barulho de carros passando e crianças brincando.
.
- Por favor moça, eu estava falando com um rapaz agorinha mesmo neste aparelho...
.
- Nesse telefone aqui?
.
- Isso...
.
- Não pode ser não senhor, este telefone aqui é um orelhão comunitário e fica bem em frente ao bar da minha mãe. Não tem ninguém aqui há horas, moço.
.
- Bar? Mas vocês abrem esse bar de madrugada?
.
- Madrugada? O senhor tá louco?
.
- Filha, que horas são aí? Aqui são quase 4h da matina.
.
- Nossa, o senhor deve estar longe mesmo. Aqui são 2h da tarde.
.
Eliseu já havia sido tomado por um misto de terror e inquietude. O que estaria acontecendo? Estaria sendo vítima de um trote muito bem elaborado? Porém, um frio diferente na base da espinha o estava acompanhando desde a hora em que atendeu ao telefone. Não sabia por que mas sentia medo, muito medo.
.
- Que cidade você está moça?
.
- Altana do Serrado, senhor.
.
- Onde fica isso? Qual estado?
.
- Fica em Brôscoli, perto de Garitá.
.
- Meu Deus, onde é isso? Como pode ser 2h da tarde aí? No Brasil não temos fusos tão distintos!
.
- Sei disso não, moço... Minha mãe já tá me chamando, tchau.
Desligou.
.
Eliseu ficou petrificado de medo, por alguns minutos, pensando. O que faria agora? Fátima dormia e roncava de bruços no sofá. A TV muda continuava a exibir aquele filme, que parecia pelos figurinos, ter como tema o império romano na época de Cristo. Teve uma ideia. Ligou novamente o aparelho e discou para o serviço de auxílio à lista.
.
- Auxílio à lista bom dia, em que posso ajudá-lo?
.
- Eu preciso saber de que região é um determinado telefone.
.
- O número, por favor?
.
- 38417
.
Ambos ficaram em silêncio por alguns segundos.
.
- Senhor?
.
- Sim?
.
- Pode repetir o número completo, por favor?
.
- 38417
.
- Senhor, este número está incompleto. Estão faltando três dígitos.
.
- Olha moça, eu também achei estranho, mas me ligaram deste número. Aliás, eu retornei e o número existe. Uma pessoa atendeu. Parece que fica em uma cidade chamada Altana do Serrado em... Brôscoli... acho que é isso.
.
- Um momento, senhor, vou verificar.
.
Eliseu tremia dos pés à cabeça. Tremia como se tivesse saído de um banho bem quente num daqueles invernos rigorosos, e ido direto para o quintal de casa, nu. Não conseguia se controlar.
.
- Senhor obrigado por aguardar. Consultei meu supervisor e no território nacional não existem números de telefone com cinco dígitos há mais de quarenta anos.
.
- Imaginei...
.
- Também não constam entre os mais de cinco mil municípios da Federação em que operamos, um que se chame Altana do Serrado ou Brôscoli...
.
- Obrigado senhorita. – disse desconsolado, desligando.
.
O relógio do micro-ondas agora marcava 3h39. Eliseu voltou para a sala, pôs o telefone na base e se sentou no sofá junto aos pés da mulher. Decidiu esquecer tudo aquilo. Decidiu nem contar à Fátima para não dar corda para aquele assunto estranho.
.
Pegou o controle remoto e desligou a TV. Sentia frio e medo. Colocou a mão nos pés cobertos da mulher e pensou em acordá-la. Assim iriam para a cama quentinha e aquilo tudo estaria esquecido no dia seguinte pela manhã. Afinal teriam um domingo de descanso para desfrutar.
.
De repente o telefone tocou novamente, sobre o seu colo. Ele atendeu rápido, num susto:
.
- Alô? – disse baixinho.
.
- Eliseu, meu querido...
.
- Amigo o que você quer de mim?! Quem é você afinal?!
.
- Sou você, já disse.
.
- Isso é impossível!
.
- Por favor, me ouça. Sou você, mas não sou você hoje, nem aqui neste lugar; sou você em uma outra dimensão espaço-tempo, entendeu?
.
- Você é louco! Não, não sei de nada disso!
.
- Eliseu, preste atenção: nada disso está acontecendo do jeito que você imagina, mas não se preocupe com isso, o que você precisa fazer é avisá-la agora mesmo! Agora!
.
- Quem? Avisar quem do quê?
.
- Avisar sua mulher Eliseu... Avisá-la que você morreu.
.
Aquela última frase veio como uma explosão no seu ouvido, seu coração disparou instantaneamente de forma enlouquecida. O pânico o invadiu junto com uma sensação de desolação. Sentira aquela descarga de adrenalina algumas poucas vezes na vida, que acompanha a sensação de que aquilo que ocorreu não pode estar, de fato, ocorrendo conosco. Lembrou-se de ter sentido este peculiar impacto pela última vez há cinco anos. Foi no dia em que ouviu do médico na sala de espera da UTI de um hospital, que seu pai não havia resistido aos tiros e havia morrido.
.
.
- O quê? Não brinca comigo! - gritou de volta.
.
- Lamento, querido, mas você morreu aí no sofá, dormindo, há 2 horas. Precisa acordar sua mulher para que ela tome os procedimentos e avise às pessoas...
.
Eliseu tonteou largando o telefone, que bateu no seu colo e caiu no chão de madeira da sala produzindo um estrondo na madrugada. Seus olhos estavam marejados; sentiu violenta tontura, tudo começou a rodar rapidamente. A tontura o fazia se sentir desnorteado, como se estivesse subindo em piruetas em direção ao teto.
.
De repente estava vendo a sala lá de cima, a mesinha ao centro, o telefone no chão, e o sofá com ele próprio deitado de bruços, um braço largado tocando o chão com as pontas dos dedos. Estava sonhando, só poderia estar.
.
Agora viu sua mulher acordar com o barulho do telefone que caira. Viu-a se levantar, apanhar o aparelho no chão, colocá-lo na base e o sacudir, delicadamente:
.
- Querido, acorda, vamos dormir na cama que já é quase de manhã.
.
- Amor? Aí meu Deus, você está gelado, Eliseu... Eliseu?!
.
- ELISEU!!
.
.
Cesar Cruz
Jan/ 2007
.
.
.
.
.

3 comentários:

Anônimo disse...

Oi sou a primeira a comentar!! eee
Vc sabe que eu adorei!!!
Ficou otimo!!! Lembra até chorei!!
Um gde bjo,
Van

14.3.08

Anônimo disse...

Anônimo disse...
kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk kara qui loko !!!!!!!!!! o telefonema dei risadas pacas....... o mais louco ainda e´que ele termina diferente daquelas historinhas que todos VIVERAM felizes para sempre!.

Alessandro

10.6.08

Anônimo disse...

opa, li de novo, depois de tanto tempo!

Esse telefone preto eu tenho um desse aqui na sala. lembro quando era muleke, na rua de casa só uma pessoa endinheirada tinha telefone lá no interior. era só 4 dígitos. como o tempo passa e a gente nem vê. Quantas vezes eu fui passar telex kkkkkkkkkkkkkkk

Abs
Alessandro