A história da dona Diva



Fazia calor naquele dia e ela estava sentadinha no meio fio, em frente à mercearia do pai. Na verdade o seu Manoel Nunes era dono de um armazém de secos e molhados, que as pessoas naqueles tempos chamavam simplesmente de "venda". Estamos no ano de 1938.

Então ela estava ali, 5 anos, vestido florido e sandálias nos pezinhos. A mãe aproximou-se dela por trás, curvou-se apoiando as mãos nos joelhos e disse baixinho no seu ouvido: “filha, mamãe vai ali e já volta, tá?”.

E voltou mesmo. 41 anos depois, casada, com 2 filhos casados e 3 netos.

Neste hiato de tempo, a Diva foi crescendo, criada pela caridosa dona Emília, a Mi, vizinha da família que se compadeceu da menina que apanhava de fio de ferro do pai bêbado, e a assumiu e cuidou. 

Cuidou de lambuja também do pai bêbado e da venda, que era o ganha pão da família. Passaram-se anos e a menina, já moça, começou a namorar um moço que também morava no Bixiga, o Aloísio. Casaram-se e mudaram do bairro. Foram morar em Pinheiros, na Rua Cônegos Eugênio Leite. Veio o 1º e único filho do casal em 1970. Eu.

O começo da vida foi difícil. Ele fazia bicos e estudava à noite e ela vendia Avon, lingeries, artesanato... Chegou até a recolher jornal velho nas lixeiras do prédio em que morávamos e vender para carroceiros para completar o orçamento.

Devagarzinho, o Aloísio começou a crescer na carreira de publicitário e acabou sócio de agências de propaganda muito conhecidas nos idos de 1970. 

E assim foi, como na música do Toquinho, a-vida-segue-sempre-em-frente-o-que-se-há-de-fazer. E seguiu mesmo. Com alegrias, tristezas e dificuldades, como tantas outras vidas.

Em 1979 já morávamos na Alameda Itu, no Jardim Paulista. A vida havia melhorado muito. Meu pai era na época diretor de propaganda e marketing da Rede Tupi de televisão. E minha mãe não precisava mais catar jornais velhos para vender. 

Inesperadamente, numa dada noite, tocou o telefone de casa por volta das 22h. Minha mãe atendeu e, de repente, desabou num pranto copioso. Eu e meu pai, que assistíamos ao programa do Chico Anísio na TV, tomamos um susto. Alguém morreu, pensamos. Não era morte... Era ressurreição.

Ao telefone, o Carlos, o irmão que ela nem sabia que existia, explicava que a mãe deles estava arrependida de tê-la abandonado e queria pedir perdão. Queria um encontro. Acharam a minha mãe na lista telefônica.

Assim foi feito. O insólito encontro marcado, o perdão pedido e aceito, o frente-a-frente com os irmãos até então desconhecidos... Tudo regado ao choro da família inteira, exacerbado pelo exagero típico dos descendentes de italianos e portugueses, como nós. Eu tinha 9 anos. Lembro-me da cena. Não entendi muita coisa.

Mais tarde, com cuidado, mamãe me explicou. Aí eu soube que minha querida avó, a Mi, não era minha avó, pelo menos do ponto de vista biológico. Passei a ter duas avós.

A Mi morreu anos depois, e nunca soube da ressurreição da dona Maria Loureiro. Meu pai e minha mãe acharam que não seria justo, depois de uma vida dedicada a nós, ela saber disso. A dona Maria também morreu, uns anos depois.

Depois da falência da Rede Tupi, em 1980, seu Aloisio, profissional tarimbado e quarentão, não conseguiu mais se recolocar num mercado repleto de jovens formandos dispostos a trabalhar por trocados. Foram 10 anos de desgosto e frustração profissional, todo o patrimônio que tínhamos foi gasto neste período de desemprego. Até que um dia o infarto pegou o seu Aloísio de jeito. Em agosto de 1990.

Dona Diva voltou mais uma vez a vender jornais velhos, Avon, lingeries, artesanato...

Hoje, a menininha que foi abandonada pela mãe e que apanhou muito de fio de ferro do pai bêbado está preste a completar 73 anos. Saúde de ferro e entusiasmo de fazer inveja, como sempre foi, apesar de todas as dificuldades. Junto com sua inseparável amiga Maria Luisa, 60 anos de amizade, moram lá no Taboão da Serra, em um apartamentinho que foi o que conseguimos comprar em 1992, com o dinheiro que sobrou após a morte do meu pai.

Eu hoje sou casado e moro na Vila Mariana. Mas continuo a me surpreender com as peripécias da dona Diva, que não desiste de ser animada, alegre e empreendedora. Sabem qual seu mais novo desafio? Deem um pulo num domingo destes na estação Trianon do Metrô. Lá estará ela, vendendo seus artesanatos junto a dezenas de outros camelôs.

E não pensem que a encontrarão desanimada, não! Está como sempre, entusiasmadíssima com a vida e suas possibilidades.


Cesar Cruz
Dez/ 06



Epílogo

Dona Diva nos deixou ontem, dia 5 de junho de 2007. Vítima de uma patologia coronariana diagnostica tardiamente. Não resistiu ao pós-operatório de uma cirurgia para implantação de pontes de safena.

Deixa órfãs sua amiga Maria Luiza e a nora Vanessa, além do filho Cesar, que formou em sua faculdade particular, e que empunha hoje, orgulhoso, um diploma de dignidade, educação, garra para viver e esperança no porvir, reflexos da pessoa que ela mesma foi.

Com seu entusiasmo ruidoso, era a alegria e as cores da família. Sem ela nunca mais teremos almoços e jantares em família tão divertidos e alegres.

Em breve, quando nossas tristezas se transformarem em um calorzinho saudoso no peito, faremos novos almoços e jantares, e abriremos novas garrafas de vinho, desta vez para brindar à dona Diva que, certamente, estará feliz junto a Deus e ao seu sempre amado Aloísio, no eterno.


Cesar Cruz
Jun/ 07



Texto relacionado: Daqui a pouco ela cresce, e desaparece









3 comentários:

Anônimo disse...

Dona Diva, que saudades!

São tantas as lembranças que tenho dela.
Da cozinha do meu apartamento, no 17º andar, ríamos do seu jeito escandaloso ao falar no telefone. Era possível ouvir tudo que era dito lá no 21º andar.

Que vozeirão !

E quando chegava católogo novo da
Avon ? Eu e minha mãe sempre éramos convidadas para tomar um café e comer um pedaço de bolo em seu apartamento.
Certa vez, fiquei fascinada com uma caixinha que continha as amostras de batom da Avon.
Eu era pequena demais para usar batom. Acho que tinha uns 10 ou 11 anos. No máximo, minha mãe permitia a compra de um brilho incolor ou um hidrantante para os lábios com gosto de morango, uva ou menta especialmente fabricado para menininhas.
Mas quem disse que eu estava interessada nos produtos infantis ?
Naquele dia, minha vontade era abrir amostra por amostra e provar todas as cores. Eu não conseguia tirar os olhos daquela caixinha colorida.
E não é que a Dona Diva notou ?
Ao sair de sua casa, fui presenteada com o objeto do meu desejo.

Presente inesquecível.

Hoje, confesso, sou viciada em batom. Da Avon, é claro ! Enquanto escrevo este comentário, há cinco deles, muito emocionados, observando a tela do meu micro. Afinal, hoje eles descobriram quem é a mãe deles.

As amostras se acabaram, mas o porta-jóias que tem mais de 20 anos ainda está na penteadeira do meu quarto.
Presente de aniversário da Dona Diva, feito por ela com seu pirógrafo. Todo florido e pintado em tons verdes e branco.
Uma obra de arte que me acompanhará até o dia do nosso reencontro, aí na outra dimensão.

Tânia S.S.

19.3.08

Anônimo disse...

Cesinha....

Que saudades...Vc esqueçeu de citar que era Corinthiana ROXÌSSIMA!!

Ô Cesinha...e nós já temos 37 anos..Já entramos para o clube daqueles que sabem o que é perder um pai ou uma mãe...Sinal de que aquelas crianças cresceram , são homens, mas de repente voltam a chorar como crianças com a perda daqueles que nos fizeram crianças e homens...

Saudades...do medo que tínhamos que a D.Diva nos pegasse no telhado...

Abraço Cesinha
Ale

17.4.08

Anônimo disse...

Li A história da dona Diva. Que fofa a Dona Diva, rs. Que força e que ânimo, talvem um exemplo que posso acatar em meus objetivos de vida.

bjão
Mara Ruzza