Vaidade

. Finalzinho de tarde, dia de semana. Eu estava dirigindo o carro pela avenida do Cursino aqui em São Paulo, a Vanessa, minha mulher, ao meu lado. Íamos conversando amenidades. De repente ela grita: fogo! E aponta para um furgão branco (desses bem grandes de entrega), passando por nós no sentido contrário.Num golpe de vista vi o fogo; saia por baixo do carro, na parte da frente, bem embaixo do motorista. Gritei para ele, apontando o local, ele parou o veículo sem entender o que ocorria. Guinei o carro pra direita, parei também de supetão e puxei o freio de mão. Carros atrás de mim brecaram a seco. Deslizei o braço para a parte anterior do banco do passageiro e num clique saquei o extintor de incêndio. Desci do carro num pulo. Neste momento o meu sentimento era de preocupação, queria ajudar.
O furgão agora parado, sem a ação do vento, babava labaredas assustadoras que lambiam o asfalto. Eu já estava no meio da rua.Com uma mão segurava o extintor e com a outra parava o trânsito dos dois lados em movimentos de giro de cintura rápidos e alternados, as pernas abertas, o cenho baixo, o olhar compenetrado, parecia um insólito guarda em ação. Já emergia em mim o arquétipo do herói. A rua inteira parou, a porta do meu carro ficou aberta completando o visual de ação. Corri abaixado por trás do veículo como fazem os policiais nos filmes, para estar protegido no caso de uma explosão. Estava preocupado com o motorista, não o havia visto descer. Ao mesmo tempo algo dentro de mim deseja o foco das pessoas: “será que estão olhando pra mim?”. Desejava de forma meio inconsciente, agir de maneira a fazer as pessoas acharem que faço isso todos os dias. Um habitué da ação, enfim.
Enquanto corria, soltava o lacre do gatilho com ambas as mãos, os braços esticados pra baixo, como um policial de elite que engatilha a sua 9mm automática segundos antes de dispará-la. Meus movimentos eram maiores e mais acintosos que o necessário, mas não conseguia contê-los, saiam naturalmente. O meu eu vaidoso estava no domínio total, o ego inflado, a adrenalina circulando nos encanamentos, o olhar impassível e determinado...Como em uma película policial, aproximei-me velozmente pela outra calçada, ainda curvado. Alcancei a frente do veículo.
Eu era agora o Arnold Schwarzenegger do Sacomã. Com meu olhar 3D avistei as chamas saindo pelo vão do capô fechado, a coisa estava feia, gotas incandescentes pingavam no chão, o calor que vinha no meu rosto era como um bafo do inferno. Gesticulando imperativamente bradei instruções para o motorista assustado já fora do carro. Fiz mais uns sinais para os curiosos em volta se afastarem. Estava no domínio da situação. Com a dobra interna do braço livre, tapei o rosto e com o outro estendido, golpeei impiedosamente as chamas com jatos de espuma química da minha Magnum 357. Adorei o barulho e o estardalhaço.Lancei a princípio contra o vão do capô fechado e em seguida por debaixo do veículo. As chamas se renderam. Esvaziei o equipamento. Então ao meu comando alguém abriu o capô e todos pularam pra trás. Havia um pouco de fogo ainda. Então, extintores mais lentos e heróis de segunda categoria chegaram.
O fogo se rendeu por fim.
Afastei-me uns passos para trás e com os olhos cerrados pela fumaceira insalubre, observava discretamente para saber se estavam me olhando. Mantinha as pernas afastadas e os braços ligeiramente abertos. De fato, muitos me focavam. Em câmera lenta passei por eles fingindo não vê-los. Dentro de mim tocava a música de “Coração Valente”. Olhares de admiração pregados em mim. Sentia-me com 1,90m e 120kg de puro músculo. O semblante do Bruce Willis em “Duro de Matar” era como uma máscara que escondia meu verdadeiro rosto.
Passei por todos impassível, o olhar severo, as pálpebras semicerradas focando o infinito, o peito estufado, os punhos fechados com a “arma” ainda fumegando em uma das mãos.Sentia-me como um gladiador que acabou de estrangular o leão.
Encaminhei-me ao meu carro, entrei sem palavras, como para demonstrar que foi apenas mais uma missão. Fiz tudo isso bem devagar, saboreava cada olhar que eu fingia não ver... Dei a partida e fui embora, arisco. Um pneu rebelde assobiou agudamente.Até para minha mulher fiz tipo. Queria gritar: “você viu como sou bom amor? Viu que movimentos, que presteza?” Mas não disse nada disso. Optei por manter o tipo herói durão, com aquele silêncio típico do pós-ação... Agora o ridículo final: deixei propositadamente a carcaça do extintor largada no chão do carro do lado do passageiro. Estava disposto a deixá-la lá por meses, até que alguém me indagasse a respeito, aí eu displicentemente explicaria.
Não precisou tanto tempo. Dia seguinte dei carona a uma amiga, a Martha. Enquanto eu dirigia, ela me perguntou por que o extintor jazia no assoalho. Assumi novamente a identidade do Bruce Willis, estufei discretamente o peito, contrai os músculos e respondi dando-lhe um olhar de Vin Diesel: “Ah... isso não foi nada, só um pequeno incêndio que precisei controlar ontem...”.
Ah... A vaidade!
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Cesar Cruz
Março/ 07
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