O Rui


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Crônica publicada no Jornal do Cambuci e Aclimação e no portal Mundo Mundano*
Março de 2010 e Nov. 2010, respectivamente
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— Oi, Cesar, tudo bem? Você se lembra da Vilma?

Cumprimentei as duas moças, mas só uma era minha conhecida. A tal Vilma eu nunca tinha visto na vida. Mas pelo jeito deveria.

— Cesar, quanto tempo!

Dureza encontrar alguém que conhece você e você não tem a menor ideia de quem seja. Ela percebeu minha desorientação e ainda tentou me socorrer:

— Sou a mulher do Rui!

Agora as duas mulheres sorriam e balançavam ligeiramente as cabeças para cima e para baixo, como se pensassem “Agora sim ele vai se lembrar!”.

Rui, Rui, Rui... Não me lembrei, mas resolvi disfarçar e, com um sorriso falso, falei:

— Ah, sim, claro... Como vai você?

Meu reconhecimento fajuto não pareceu convencer, até por que a pergunta certa seria “e como vai o Rui?”. Mas eu não poderia me arriscar. E se o tal Rui tivesse morrido? Ou lascado a cabeça numa quina e ficado bobo? Imaginei-a curvando a face e, com uma lágrima escapando pelo canto do olho, perguntando com a voz trêmula “vo-você não soube, Cesar?”. Muito arriscado!

Então logo começou um papo sobre coisas de anos atrás, e ali pelo miolo daquela prosa foi que eu me escondi bem quietinho, à espera de uma luz, de uma palavra que me desse um norte, uma referência. Quem seria afinal de contas o bendito Rui? O Rui das minhas divagações surgiu sem rosto, como aqueles perfis sem foto do Facebook. O meu era assim. Uma mera moldura de Rui, vazia por dentro, sem face, sem cores, cinza. “Quem é o tal Rui, meu Deus!?”.

Eu iria me estrepar, era só uma questão de tempo. Em instantes a tal Vilma me faria alguma pergunta, ou o assunto poderia derivar para a vida do Rui e ficaria claro que eu não tinha a menor ideia de quem diabos era ele. Minha esperança é que ela cuspisse alguma frase mágica que destravaria a minha mente adormecida. “Putz, Claro! Grande Rui! Como eu pude me esquecer!”

De repente, um milagre! Algum santo protetor dos esquecidos resolveu vir em meu socorro. O truque do celular! Como eu não pensei nele antes? Seria a minha prancha de salvação, enfim.

— Com licença, senhoras, meu celular está vibrando. — anunciei.

Enfiei a mão no bolso e saquei o aparelho.

— Alô!... Oi Carvalho, como vai?

As duas pararam de falar e ficaram me olhando, atentas.

— O quê?! Mas como?... Não admito isso, Carvalho! É inaceitável e...

Fiquei uns segundos quieto, só murmurando, de cenho franzido, como se estivesse escutando uma explicação esdrúxula vinda do Carvalho. Então explodi, aos berros:

— Carvalho! Pare de falar e me ouça: vá até lá e diga que vou processá-los! Ouviu bem? Pro-ces-sá-los!

Então, como se o Carvalho houvesse discordado da minha autoridade, fui imperativo:

— Carvalho, não discuta comigo! Quero que comunique que os porei na cadeia! Todos eles! E estou indo praí agora mesmo! — “Pek!” Fechei o aparelho, bufando. As duas moças tinham engolido os sorrisos e me olhavam mudas, assustadas.

Suspirei e sorri para elas. Com a minha permissão, elas sorriram de volta, um par de sorrisos temerosos.

Acabava-se assim a minha sinuca de bico. Depois daquela discussão com o Carvalho ninguém mais se lembraria que em alguma parte deste mundo havia um sujeito chamado Rui.

— Meninas, mil desculpas. Problemas no trabalho...

— Oh, sim, claro, claro!

Dei um beijo no rosto de cada uma e parti com ares de quem carrega grandes responsabilidades. Enquanto eu ia me afastando, ocorreu-me que, para verdadeiramente consagrar a vitória da astúcia sobre a memória, ainda faltava um detalhe. Já distante, virei e chamei as moças, que partiam. Viraram-se para me olhar.

— Vilma! — gritei — Não esqueça de mandar um abração meu pro Rui!

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Cesar Cruz
Fev 2009
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* Crédito dos parceiros neste blogue.
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12 comentários:

Anônimo disse...

Você corre riscos, César! quero ver se o Rui ler isso. Vai pensar: além de não lembrar de mim ainda usa minha imagem (aquela cinza mesmo) e nomes indevidamente!!
VOU PROCESSÁ-LO!!! PRO-CES-SÁ-LO!!!

abraço Mauro

Anônimo disse...

Nestas horas que a gente vê que é amigo. Um abraço, Rui Ponsi (marido da Vilma Yeah).

Anônimo disse...

está ficando super maneiro o seu blog!

Abs André

Anônimo disse...

César, tenho apreciado muito suas crônicas quando saem no jornalzinho. Às vezes abro-o e quando vejo que naquela edição você não figura, fecho e jogo-o num canto, pois de resto nada ali se aproveita.
Permita-me fazer uma correção num dos seus textos (A gente não trabalha com desconto)?

Você não pôs crase nas várias vezes em que a expressão “à vista” aparece no texto. Por quê? Deveria, não é mesmo? Ou estou enganada? Se eu estiver enganada me explique, pois a vida inteira eu aprendi que nesse caso vai a crase.

Bjos da sua fã aqui do Cambuci
Fátima

CESAR CRUZ disse...

Olá Fátima! Obrigado por seu simpático comentário e por todo esse prestígio! Continue me buscando no JC&A; semana sim, semana não estou por lá.

Normalmente não costumo responder aos comentários aqui neste campo, pois gosto de deixá-lo só para os leitores, mas como você não me passou seu email e também porque sua dúvida é muito interessante e polêmica, aí vai a minha tentativa de explicação:

Importante lembrarmos que a crase é o fenômeno e não o acento. O acento invertido é o acento grave (contrário do agudo, inclinado para a direita).
Então o certo é dizermos “Ocorre crase neste caso?” ou “Você não pôs o acento grave, que indica a crase!”. Entendeua questão dos termos?

Bem, vamos à polêmica questão do “a vista”.

Ambas as formas são corretas, entretanto, a forma com acento é mais usual, e até certo ponto, mais moderninha.
Explico: os gramáticos mais tradicionais não aceitam o uso de acento neste caso, pelo simples fato de que nele não ocorre a crase.
Veja só: em “a vista” só temos a preposição "a" e não há o artigo “a” para ser fundido a ela.

Como você sabe, a crase ocorre quando um “a” preposição se funde com um “a” artigo. Justamente por isso que antes de palavras masculinas nunca ocorre crase (pois aí seria a + o = ao).

Analisando a expressão similar “a prazo”, onde também só temos a preposição "a" (mas não o artigo) antes do substantivo, fica evidente que em “a vista" também só temos a preposição.

Então por que se aceita a expressão com o acento grave? Resposta: porque se convencionou utilizar o acento grave para indicar, em alguns casos, a ocorrência de locuções adverbiais (locução adverbial de modo, neste caso. O sujeito paga de que maneira?, de que modo? Paga do modo a vista).

Em resumo: você pode usar com ou sem acento. Saiba que sem acento é 100% correto. Já com acento é aceito, mas por uma ótica mais sisuda, pode ser entendido como erro.

Quer ver outra expressão onde ocorre isso?

“A moça sentou na cadeira a cavalo”.

Usa ou não usa acento grave no "a" cavalo?

Resposta: Pode-se usar, caso se entenda que é uma locução adverbial e que necessita ser assinalada (a maneira que se senta no cavalo OU ao modo que se monta num cavalo), mas é a mesma coisa, pode ser visto como modernismo e recusado por gramáticos mais rigorosos, e com razão.
A verdade verdadeira (se é que existe isso!rs) é que em "a vista" e em "a cavalo", não ocorre crase, pode testar; há só preposição aí.

Bjão!
Cesar

Anônimo disse...

Olá Cesar "Pasquale",

Acho que isso já ocorreu com muita gente, ou pelo menos de forma semelhante.
Quer ver uma interessante? Atender o telefone e não ter o cuidado de perguntar quem é logo de cara e, após alguns longos segundos de conversa discorrida, sem reconhecer seu interlocutor pela voz, ter que levar a conversa assim mesmo, buscando dicas pra decobrir quem é. Nessa altura fica constrangedor fazer a pergunta: "A propósito, quem está falando?".(risos)

Outra coisa (já que escreveu outro texto), belíssima explicação sobre a crase. Nenhum professor de língua portuguesa me deu uma explanação tão franca como essa em toda a vida! (risos)

Abração!

Marcelo Lopes

Anônimo disse...

DELICIOSO DE LER ESSE CAUSO! REALMENTE BRILHANTE. PODERIA ESTAR EM QUALQUER LIVRO DESSES DE CAUSOS DO DIA A DIA.
RI TANTO QUE DEI ATÉ UM XIXIZINHO NA CUECA.
VOCÊ JÁ PUBLICOU ESSE NA GAZETA? POIS PUBLIQUE!

ABÇ, LEONARDO RISO
IPIRANGA

Tais Luso de Carvalho disse...

Olá, Cruz, passei para conhecer sua casa - muito bem organizada - e agradecer a gentil visita.

Voltarei para ler os seus causos que, segundo os comentários, devem ser muito bons! Aí... comentarei.

Um abraço
Tais Luso

Anônimo disse...

Bom dia César!

Desculpe-me por não ter ainda lhe agradecido pela explicação tão clara e caprichosa. Faço minhas as palavras do Marcelo Lopes "Nenhum professor de língua portuguesa me deu uma explanação tão franca como essa em toda a vida".

1 super bjão
Fátima

Anônimo disse...

PQP! QUE SARRO! A PARTE DA CONVERSA NO TELEFONE ESTA DEMAIS!

ABRAÇO E PARABÉNS, GINO
VILA DAS MERCES

Jessica disse...

Simplesmente AMEI!
ahauahauaha
sempre passo por essas situações e o truque do celular é uma das poucas saidas.
odeio também quando parentes que você não vê há uma década vem dizer o quanto você cresceu/mudou/emagreceu/"encorpou" - na maioria das vezes não faço idéia de quem são x)
Adorei o blog!


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http://sucha-small-world.blogspot.com

Anônimo disse...

Cé!
Te entendo perfeitamente! Várias vezes passei por isso, e sem coragem de admitir que não sabia de quem se tratava já fiz muito papelão!
Por isso que gosto de você, você dá vexames parecidos com os meus!
Beijos, Yeah.