Meus saudosos ímãs



Crônica publicada no Jornal do Cambuci e Aclimação - Jul 2011.

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Vou me mudar. E o que mais tem me incomodado nessa mudança que se aproxima é que vou ter de me separar deles: os meus ímãs de geladeira. Nunca imaginei que aqueles pequenos seres humanos, que habitam a porta da minha velha Brastemp modelo 2001, um dia iriam me fazer sofrer tanto.

Sei que todos eles foram parceiros funcionais e servis, incansáveis em seu ofício de informar e segurar bilhetes, receitas e avisos. Ainda assim, o destino que os aguarda é inexorável como a própria morte.

Fico aqui pensando em como poderei chegar àquele novo bairro e colocar na minha geladeira ímãs estranhos com quem não terei a menor intimidade, dos quais não saberei o caráter, as intenções... Já me imagino na cozinha da nova casa, tarde da noite, só de cuecas, preparando um todi de costas para a geladeira e, de repente, me dando conta de que dezenas de ímãs recém-adquiridos e desconhecidos me espiam.

Os ímãs de geladeira, esses indivíduos calados, sisudos, aparentemente inofensivos, podem se voltar contra você de uma hora para outra, não duvide. Há ainda o fato de que, “se bem interrogados” (quem viveu a Ditadura sabe do que estou falando) podem ser muito, digamos... Eloquentes! “Diga tudo o que sabe, ímã filho de uma porta! Senão arranco o seu decalque na ponta do alicate!”

O amigo leitor seria capaz de apostar que algum de seus ímãs arriscaria a película por você numa situação como esta? Imagine se um deles, magoado com um posicionamento ruim na porta do refrigerador, resolve pôr a boca no trombone? Já imaginou, moça? Será a sua palavra contra a do ímã do "Hortifruti Santa Fé", que esteve ali vendo e ouvindo tudinho ao longo dos cinco últimos anos, desde a época em que você morava sozinha aí nesse apê, solteirinha e saltitante, antes de se casar com o Jorge. Humm? Já imaginou? É bom não facilitar com eles, podem acabar com seu casamento...

Veja o meu caso. Apesar de todo o lamento, fico pensando: De que me servirá o ímã “Mercadinho Colônia da Glória” lá na minha nova casa, se ele próprio é categórico ao alertar que: “Entregas em domicílio apenas nas proximidades da loja”? Será que 20 km podem ser chamados de proximidade da loja, na geografia de um ímã de geladeira?

Outro é o “Bigode, o Rei do Galeto!”. Me dói a alma abandoná-lo, mas será que o Bigode estaria disposto a entregar uns bifes de fraldinha naquela lonjura, em pleno domingo na hora do almoço?

A verdade é que levá-los comigo, além de inútil, seria uma maldade; estaria sentenciando-os ao ostracismo eterno, fazendo-os sofrer calados a dor da inutilidade ao lado de seus novos concidadãos imantados; os pobres ex-combatentes poderiam até vir a ser vítimas de bulling. Já imagino: “Aí, velhinhos capengas, com os números vencidos, nem se aguentam colados!” Ou então: “Ceis vão é acabar de cara no azulejo e lambidos de cachorro! ahahaha!”.

E jogá-los no lixo seria a suprema ingratidão! Veja você o paradoxo que me aflige... O que fazer agora? O que faria você no meu lugar? Ocorreu-me deixá-los sobre a pia do apartamento. Talvez com uma carta de recomendações ao lado. Algo mais ou menos assim:

Prezado novo morador

Os ímãs de geladeira que você encontrará junto a este bilhete foram meus parceiros fiéis. Estão meio desbeiçados e amarelados, é bem verdade, mas ainda assim poderão ser úteis por muito tempo, como foram para mim. Ofereço-os a você! Assim que sua geladeira novinha for entregue pelos rapazes da mudança, cole-os imediatamente na porta. Ainda que sua mulher proteste aos berros, insista com ela. Diga que quem vê cara não vê imantação. Uma sugestão: nesta primeira noite no novo lar, na hora em que bater aquele cansaço, depois do dia inteiro de mudança, as caixas espalhadas pela sala numa desordem danada, as costas arrebentadas e a fome te comendo por dentro, chame uma redonda meia peperoni, meia marguerita na “Papi Pizzas”. E se a dor de cabeça surpreender, ligue na “Droga Orlando” e fale com o Raul, ele entrega aspirinas em apenas 15 minutos. Fale em meu nome, diga que lhe deixei o ímã da farmácia como herança - capaz dele te entregar sem cobrar a taxa!

Abraços do antigo morador.

 


Cesar Cruz
Outubro de 2009
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10 comentários:

Francisco José Rito disse...

Engracado e interessante. Prova de que , com talento, qualquer tema pode se transformar numa obra literaria. Parabens, Cruz
Cumprimentos

George Saguia disse...

Cezinha,

Você é DOENTE!

...e o pior é que eu ADORO isso!

Eu e a Lena nos divertimos muito.

Abs,

G

Danilo Leris disse...

Cruz
Absolutamente impagável! Rachei de rir!
Valeu muito!
Danilo

5º ano B disse...

Depois de longo inverno volte aqui para te ler!
Diversão sempre os seus " Causos"!
Sabe que estes dias olhei pra minha geladeira, onde só se encontram a foto da Camila vestida de branca de neve e o imã do " Gás do Chorão" e me lembrei de eras passadas onde haviam muitos imãs nela! Ou eu moro no fim do mundo, onde ninguém entrega nada ( verdade isso!), ou então estou numa fase de geladeira clean...Preciso pensar mais a respeito.
Tomara que os novos moradores recebam seus imãs com o respeito que eles merecem!

Unknown disse...

aí, o imã de geladeira mais da hora que vi até hoje foi um que imita borboleta, se não olhar bem, até engana, pensa que é de verdade. Agora fico pensando, se Vc ficará com saudades dos seus imãs, quem dirá daquela super vizinha que encontrou no estacionamento quando da crônica do seu fiat branco? daria uns tres causos né não?

abcs
xara - ipiranga

Tais Luso de Carvalho disse...

rsrsrsrs, eu entendo! Minha geladeira era cheia de anjinhos, a coisa mais cafona deste mundo! Hoje, pra segurar alguma coisa, uso apenas um tijolinho. Fiquei traumatizada com ímãs, colecionava desde frutas, legumes até santos e anjos! Coisa horrorosa.

Porém, Cesar, não seja ingrato, pelo menos eles te renderam uma ótima crônica! Fico cá imaginando... E rindo, desde o começo.

Bjs
Tais luso

Tais Luso de Carvalho disse...

Esqueci de dizer, a 'casa nova' ficou ótima, limpinha, abre fácil e rápido. E muito bom de ler nesta largura.

tais luso

Pedro Luso de Carvalho disse...

Cesar,

A tua crônica "Sobre mudanças e ímãs" está ótima.

O Francisco Vieira, que foi o primeiro a comentá-la, disse que "...com talento, qualquer tema pode se transformar numa obra literaria", no que está absolutamente certo.

Anton Tchekhov, esse mestre da narrativa curta russa, tinha a capacidade de escrever um conto em pouco tempo, independentemente do assunto, como ocorreu, certa feita, quando foi desafiado a escrever uma história sobre a cabeça de um palito de fósforo. Que, para ele, não foi difícil.

Parabéns pela crônica e pelo novo modelo de teu blog. Está muito bom. Não merece retoques.

Um abraço.

cristinasiqueira disse...

oi César,

A poética dos imãs de geladeira.
Não de qualquer imã de geladeira.
Paulistanos entendem na alma do que se trata.

Adorei

Cris

Andre Whitaker disse...

Cesar, este último ano fui forçado a descobrir como se apegar ao material não adianta absolutamente nada. Guardadas as proporções, eu fiquei absolutamente privado de TODOS os (poucos) bens materiais que tinha. E que me acompanhavam, apesar de totalmente inúteis, há mais de 20 anos. Percebi que nada daquilo me fez falta. O que realmente é a nossa bagagem é aquilo que aprendemos e fazemos nesta vida. Parabéns pela decisão e pela mudança!