A rara sensibilidade humana



Crônica publicada no Jornal do Cambuci & Aclimação e no portal Mundo Mundano*
Outubro de 2010 - Junho 2011
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A Vanessa me surpreende pela maneira sensível com que percebe as questões humanas e sociais. Ela deita um olhar verdadeiramente interessado sobre as pessoas, um olhar carinhoso, caridoso, que vê o alijado, o oprimido, o que sofre... A Vanessa enxerga o que se convencionou chamar de "o próximo" de uma forma muito peculiar e muito pessoal. Vê as pessoas com o coração. Não conheço ninguém assim. Certas coisas que ela me diz, acerca de incidentes aparentemente prosaicos, me causam um enorme impacto.
Quarta desta semana saímos de casa às 7h como sempre fazemos. Deixamos a Michele na escolinha e pegamos a Av. Francisco Morato para seguir em direção a Pinheiros, onde eu a deixo no trabalho para seguir para o meu. Na rádio a notícia de um acidente: a morte de um motoqueiro que havia acabado de ser atingido por um veículo. O corpo estava no local, segundo a repórter. O local: a própria Francisco Morato por onde seguíamos, porém lá no início, já próximo à ponte Eusébio Matoso.
Minutos depois, passamos pelo local. O corpo estava mesmo lá, estendido sobre a grama no canteiro central, coberto por um pano. A motocicleta ao lado, retorcida. Ninguém por perto. A imagem era a representação perfeita do individualismo humano. Se Caravaggio não tivesse morrido há 400 anos, seria ele o pintor a eternizar o existencialismo daquela imagem. Todos continuamente apressados, com seus corações empedernidos, passando ao largo, falando em seus celulares, espiando e seguindo. Os carros indo e vindo na avenida, em sua toada incansável e monótona.

Paramos no semáforo, mais ou menos próximos ao corpo. Olha o rapaz morto ali, mostrei pra Vanessa. Ela olhou em silêncio até que o semáforo abriu e seguimos. Então ela disse, olhando adiante através do pára-brisa, como que se falando para si própria:
- Ele deve ter saído de casa hoje cedo, dado um beijo na mulher, deixado uma filhinha na escola, pequena talvez, como a Michele. Agora ele está ali, morto no canteiro, sozinho. O corpinho vai ficar lá por horas. A mulher dele, que pode estar em casa agora, ou no trabalho, nem sabe que sua vida mudou, que a desgraça, o dia mau chegou para ela... Daqui a pouco um telefone vai tocar naquela casa... Daqui a pouco uma mãe vai saber por um desconhecido que seu filho morreu. Exatamente agora essas pessoas estão fazendo suas coisas, conversando, rindo, trabalhando, nem imaginam que o marido, o filho está morto, coberto por um pano no meio da rua. Que coisa!  A ironia é que nós ficamos sabendo da desgraça das pessoas antes delas, nós todos, que passamos tão desinteressados pela sua sorte.

Seguimos em silêncio.

Depois do que a Vanessa disse, o que seria para mim apenas mais uma morte na cidade, passou a ser uma terrível tragédia humana, com rostos, personalidades... Sofri pelo homem morto na calçada. Experimentei a dor de uma mãe e de uma mulher que receberiam dali a pouco uma ligação... Experimentei o desterro de uma criança pequena, uma menininha, talvez tão nova quanto a minha Michele, que choraria em seu enterro, sobre seu corpo, e que nunca mais, nunca mais teria seu papai...
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Cesar Cruz
Julho 2010
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Gostou do tema? Leia esses:

O dia Mau
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A violência por trás da violência

Sem um corpo para velar
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15 comentários:

Caca disse...

Olá, César,
Estamos precisando urgentemente multiplicar Vanessas. A gente começa lentamente a sair dessa apatia e indiferença humanas. Assim eu desejo e espero. Apesar do crescimento exponencial da população nos ultimos 50 anos, não tem mais jeito de o mundo continuar assim. Parabéns a vocês dois. P.S: seu estilo narrativo é prazeroso demais de ser ler. Meu abraço. Paz e bem. (quando terminar o livro lhe aviso).

Unknown disse...

Olá Cruz, sua breve narrativa me fez chorar. Sou bastante emotivo e não foram poucas as vezes que vi cenas parecidas aqui no Rio.

Conheci seu blog através da Tais Luso em um post no Porto das Crônicas. Pelo pouco que pude ver em seu blog, ela não exagerou.

Me interessei bastante pelo seu livro. E vou pedir o meu.

um forte abraço!

Gabriel Fernandes disse...

A vida é assim mesmo. Não se dá a mínima para a vida dos outros e vice-versa. Isso é chamado Humanidade. Às vezes, e que não são raras, sinto vergonha da minha condição humana.
Abraço
Gabriel

Fernando Peixoto disse...

Fala Cesar,

Acabei de ler seu livro. Confesso que fiquei um pouco assustado, mas depois me acostumei. É muita morte, cara...rsrs

Sem a menor dúvida o melhor conto é o Blackout.

Gosto de contos e lia muito na época da escola. Você tem grande talento, por isso siga em frente. Talvez devesse explorar outro ema...rsrs

Não vamos esquecer do nosso encontro.

Grande abraço,
Fernando

Anônimo disse...

é, "por enquanto" as coisas ainda são assim, cabe a todos nós, dentro da melhora de cada um de nós, apressarmos uma mudança para melhor...

xara - ipiranga - sp/sp

Natália Cassiano disse...

Cesar, que livro incrível!

Chegou pelo correio anteontem. Ando com ele pra cima e pra baixo. Não quero parar de lê-lo. Já tomei bronca no serviço ... rs.

Ainda não li ‘A Casa do Penhasco’, deixei para o final. Para variar, tenho de ler e reler cada história.

Queria saber de onde você tirou inspiração para suas mulheres em ‘As voltas que a vida dá’ e ‘As baratas do ralo’. Interessante como temos a impressão que a história é contada por elas. Como são reais!

‘Blackout’ está impecável, valeu a pena suar a camisa. As histórias brilhantemente entrelaçadas. A ambientalização é de uma riqueza! Dá para sentir na pele o desolamento. Um presente para qualquer diretor de cinema.

Também adorei ‘Fragilidade’, poucos veem a história de vida escondida por trás das rugas de um idoso, toda sua força e sabedoria por trás da aparência frágil.

‘Guarda-Chuvas’ e ‘Tapioca’ são geniais, relê-los agora só reforçou essa opinião. Digo o mesmo de ‘O Homem Suprimido’, não me lembro ao certo das diferenças no blogue, mas vou comparar já.

Confesso que ‘ Inferno’ me revirou o estômago. Não sei se foi uma reação esperada, mas ri no final, talvez por alívio. Cômico um pai contando isso aos filhos como qualquer história infantil.

A marca do livro é bem essa. A frieza com que as personagens tratam a morte, como algo irrelevante, casual. Seu livro choca. Consequentemente; prende.


Tive vontade de escrever um conto. Influência sua... hehe. Fiquei tão cheia das suas histórias que arrisquei. Ficou horrível. Valeu a tentativa.


Quanto ao texto acima, também penso que pessoas assim, com tamanha sensibilidade são raras. Infelizmente. No geral, estamos amortecidos. Tão acostumados com as tragédias à nossa volta, que nos tornamos incapazes de senti-las. Não sabemos nos colocar na pele do outro.


Beijos
Deva

Elaine disse...

Olá querido Cesar

Infelismente a sociedade cada dia está mais insensivel as coisas ao seu redor. Cada um apenas esta interessado com seu "umbigo" nao vendo o que os rodeia. Mortes, assaltos, estupro, barbaridades acontecem todos os dias, porém isso nao nos causa mais nenhum sofrimento. Mas vendo com o olhar da Vanessa podemos ainda ter esperanças de um mundo melhor.
Beijos
Elaine

EMERSON ARAÚJO disse...

Caro Cesar, volto de novo a importunar estes comentários. Continuo lendo lentamente os contos de o Homem Suprimido. Volta e meia, paro e releio, vou construindo a minha leitura assim, sem pressa, amigo. Breve começarei a escrever as minhas impressões no meu blogue. Um abraço, agora maranhense.

Emerson

Tais Luso de Carvalho disse...

Oi, Cesar! Vi o entusiasmo da Deva com teu livro: muito bom isso. Deva tem um jeito especial para suas crônicas. Gosto de seu blog.
Mas falando neste seu texto... uf! Nossa sociedade está paralisada, anestesiada e amedrontada. Quando que há alguns anos, víamos tanta violência e tanto descaso com alguém estirado ou morto na rua? Mas viramos seres acomodados e acostumados. E medrosos em ajudar alguém que esteja em apuros... Não é o fim isso?
A pior das tragédias é quando ficamos acostumados com as atrocidades. Aí não tem mais jeito.

Bjs, que bom que teu livro ta fazendo sucesso.

Anônimo disse...

Pois é, amigo César. De tão comum e banalizado, uma hora dessas a gente vai estar apoiando um dos pés em cima do defunto para amarrar o sapato.

abraços, Nilo

Pedro Luso de Carvalho disse...

Amigo Cesar,

Como tendo andado muito atrapalhado no escritório, não pude dispensar a leitura com atenção nas suas publicações, conto e crônicas. Nem esta última pude ler com a atenção que merecem os teus textos. Na próxima semana voltarei para dedicar-me à leitura, como entendo que deva ser feita.

Um grande abraço,

Pedro.

Por toda minha Vida disse...

Olá.

Coloquei a foto da capa do seu livro no meu blog ela chegou lá pelas mãos da Taís Luso pessoa linda e escritora de mão cheia. Estou chegando para ler com calma seus causos.

Renata

Por toda minha Vida disse...

Boa noite.

Cheguei aqui pelas mãos de uma pessoa maravilhosa que vem divulgando seu livro Taís Luso, tomei a liberdade de colocar a foto da capa em meu blog espero que não se importe, estou deixando este comentário pois não sei se o outro foi salvo.

Parabéns pelo livro.

Renata

Geny disse...

Olá... me emocionei, isto faz-nos parar e pensar mais nos outros...
Gostei do seu blog edos seus escritos... boa semana...

5º ano B disse...

chorei viu, tocou fundo...