A parte que me cabe deste latifúndio



Esta crônica integra o livro "A Idade do Vexame & Outras Histórias" - Pontes/ 2011


Hoje é dia 23 de outubro de 2010, domingo. Há pouco eu estava no quarto da Michele, só ela e eu. Ela veio me buscar na sala, me fez largar no sofá o notebook ligado, com meus escritos abandonados pelo meio, e me arrastou pela mão. Vem, papai, vem! — exigiu. Ambos nos sentamos como índios na sua cama e brincamos de Barbie e Ken. “Ela é namorado, papai?” — ela perguntou, me olhando com aqueles sensacionais olhos redondos e negros. “Ela é namorado?”, na língua da Michele, nada mais é do que uma simplificação da frase “Ela é namorada dele?”. Um grande recurso linguístico, tenho que admitir. Vai ser escritora, essa menina, pensei.


“Sim, meu amor, eles são namorados sim” — respondi, de forma simplificada, para que ela entendesse. Mas confesso que fiquei inclinado a contar toda a verdade da vida para ela ali, na frente da Barbie e do Ken, que nem ao menos enrubesceriam. Me contive. “Sim, meu benzinho, eles namoram, na verdade são casados por conveniência. Vivem uma relação que sempre se manteve por puro interesse comercial. A Barbie não suporta mais o Ken, por quem ela largou o pobre do Bob, deu um pé no coitado do Bob, que acabou se matando, pulando no Tietê. O Ken, aquele príncipe lindo, agora está com uma barriga enorme, bebe que nem um porco e só fica no bar com os vagabundos dos amigos desempregados dele. Ela, por sua vez, meu amor, arrumou um amante. Dizem, pelos corredores da Mattel, filha, que se trata de um chefão da organização, desses que tem elevador privativo e que chegam e se mandam de helicóptero. O mais engraçado, filha, é que esses bonecos idiotas estão com mais de 60 anos nas costas e, você e eu, possivelmente, já vamos ter morrido e eles ainda estarão por aqui, com essas caras sorridentes, se vendendo como prostitutos despudorados, enriquecendo gerações e gerações dos vagabundos herdeiros do seu criador, seja lá ele quem for”. Pensei tudo isso, mas não disse. O gostoso na minha filha é justamente a ingenuidade, que o tempo se encarregará de destruir; não é necessário que eu adiante as coisas.

E ali, entre Barbies e Kens, reparei no pezinho descalço da Michele, aquele pequeno pedaço de pão que eu amo tanto, aquela almofadinha macia, com os pequenos dedos, as unhas fininhas como cascas de ovo, ainda tão inconsistentes, quebradiças; as pernas ainda gordinhas da infância, que nem ao menos se dobram quando ela se senta numa cadeira, aquele rosto aveludado, pele de pêssego, diria meu pai, se a conhecesse, tão bom de passar as costas da mão... Observando minha filha assim, pensei que, logo, muito logo, ela crescerá, seus pés ficarão maiores, suas unhas enrijecerão e receberão esmalte, suas pernas dobrarão nos assentos das cadeiras e seus sapatos se apoiarão no chão, sua pele de pêssego será oleosa, encorpará, será maquiada... Logo, muito logo, tudo mudará. Chegará o tempo em que ela não pedirá mais para ver o DVD do casamento do papai e da mamãe, e não pedirá mais para que andemos, eu e ela, para lá e para cá no corredor de casa, de mãos dadas, enquanto eu resmungo mal-e-mal a marcha nupcial, tãrãrãrã! tãrãrãrã! tãrãrãrã! tãrãrãrã!... Ela rindo, importante, com uma fralda branca de pano sobre a cabeça a título de véu, se casando com o papai, depois dizendo: Casei-papai! Casei-papai! Em breve, muito em breve, eu não poderei mais carregá-la no colo, pois ela não deixará: Ridículo isso, pai — dirá —, e mais adiante não conseguirei mesmo, pois meus ossos já estarão mais frágeis e meus músculos mais miúdos. E a vozinha dela, aquela vozinha tão fininha, já não soará mais tão ingênua, ela já não pedirá mais, aos prantos, para que eu largue tudo o que estou fazendo para brincarmos de Barbie e Ken, e de casar e dançar com o papai, e então terá vergonha de receber meus beijos na frente dos amigos e amigas... Logo chegará o dia em que, nas festas, ela me pedirá para deixá-la um quarteirão antes para que os amigos não vejam que o papai a levou, que ela é ainda tão dependente de um pai que já está ficando em segundo plano.

Época virá em que ela encontrará um namorado sério, e esse namoro resultará em um casamento. Então, finalmente, eu entrarei com ela numa igreja, de mãos dadas, segurando o choro, porque afinal sou um cara durão, e aquela música vai tocar de novo tãrãrãrã! tãrãrãrã!... e ela rindo, importante, ao lado do papai; ela estará de véu e vestido, toda orgulhosa, como fazia quando era pequenininha no corredor de uma antiga casa, só que, dessa vez, lá na frente, haverá um rapaz que a levará dos meus braços, um homem que a tomará de mim para morar em uma outra casa, e que — Deus me livre —, poderá maltratá-la, fazê-la sofrer, e eu não poderei dizer nada, ela agora é uma mulher, senhora de si, com opiniões sobre a vida e as coisas: Pai, da minha vida sei eu! — possivelmente me dirá, mulher feita, mesmo que eu, mesmo depois de tantos anos, ainda sinta seus corpinho em meus braços, seu pezinho em minhas mãos, sua pele macia, sua barriguinha protuberante de criança, o corpinho nu que ensaboo hoje no chuveiro enquanto canto musiquinhas que ensinam que o corpinho-vai-ficar-limpinho-e-sem-bichinhos e, então, só então, entenderei que o meu tempo está enfim se esvaindo definitivamente, e que somos mesmo iguais aos nossos pais.

Mas eis que, um dia, uma esperança renascerá no meu coração, uma esperança de que a Michele, minha linda Michele a quem eu tanto amo, poderá, quem sabe, me dar uma neta, uma menininha igual ela mesma foi um dia. Velho então, me sentarei como índio na sua cama, frente a frente com ela, e brincaremos com a Barbie e o Ken, aqueles bonecos que não amam, não conhecem a vida, não têm filhos, e para quem o tempo nunca passa.

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Em 23 de outubro de 1990, há exatos 20 anos, eu perdia meu pai. Mês passado fiz 40 anos. Exatamente meia vida vivi sem seu Aloisio, que tanta falta me faz. Duas décadas que passaram tão incrivelmente rápidas, e eu aqui fico pensando em quão rapidamente poderá passar essa outra metade da vida que há de vir para mim, essa outra metade a que tenho direito, a parte que me cabe deste latifúndio. Espero me manter saudável, e vivo, para ver a Michele, paixão da minha vida, crescer e transformar-se em mulher.

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Cesar Cruz
Out 2010
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14 comentários:

Ana Lucia Franco disse...

Olá César, se pudessemos reter as alegrias que os filhos pequenos nos dão, mas temos o algo mais que falta à Barbie e ao Kent, que é sangue nas veias, vida, e seus altos e baixos na roda do tempo. Temos a mesma idade, mas tive filhos aos vinte, daqui a pouco sou vó, e quem sabe retorne um tempo que está agasalhado carinhosamente no passado.

bjs.

Anônimo disse...

César:

1 - chutou o pau da barraca heim... prostit... ahahah, e é isso mesmo

2 - desencana, aproveita a Michele que já já tudo isso passou, muito mais rápido do que possa imaginar

3 - até vir os netinhos, arrume outra(o) eheh

4 - é o curso da vida né? fazer o que?

5 - latifúndio sim, posse...

6 - faça de tudo para quando Ela deixar de ser sua filha, se torne sua amiga

abraços - xara - ipiranga - sp/sp

Anônimo disse...

Cesar,

Meu Pai foi pra uma outra dimensão há 30 anos....o tempo passa muito depressa,curta o máximo a sua filhota, sua familia seus amigos, afinal eles são tudo que temos.

grande abraço e obrigado pelo e-mail

ANTONIO CARLOS CALDAS

Anônimo disse...

Querido Cesar,
Nao contive as lagrimas em ler seu texto, pois em cada palavra que escreveu me ví. Sim...você esta certo, os filhos crescem e nós ficamos meio "abandonados" por eles, pois criam asas e só Deus sabe pra onde irão voar. Sinto saudade da epoca em que meus filhos eram assim como a nossa Mi, querendo companhia integral, poxa...que falta faz isso em minha vida e nao tem jeito, fará na sua também. O bom é aproveitar cada momento, sabendo que esse tempo tem prazo de validade e que nao vai ser para sempre.
Minha dica: Brinque muito...pule na cama, brinque com ela e com seus brinquedos e aproveite o tempo mais delicioso que é ter filhos ainda pequenos.
Um beijo grande meu querido.

Elaine

Natália Cassiano disse...

Que crônica linda Cesar!
Tem razão, nada sabem a Barbie e o Ken desse amor incondicional.
Como a vida é curta, passa rápido! Ainda bem que temos a memória para eternizar os momentos.
Parabéns pela Michele, muito linda! Dá vontade de levar pra casa... hehe.
Não me imagino com filhos tão cedo, mas quando os tiver quero viver toda essa dedicação e carinho
Função dos pais 'ensinar a voar', 'criar para o mundo' e oferecer 'um porto seguro' sempre que os filhos precisarem.
Sua filha irá crescer, sim. E graças à educação e ao amor que recebe de vocês será uma mulher independente, forte e generosa.

Beijos

Deva

Unknown disse...

Cesar... chorei... de verdade... acabei de ler. estou sentado minha mesa aqui no meu trabalho... Sou pai. e não estou conseguindo para de chorar...

Obrigado, de verdade, por esse momento...

Caca disse...

Pô César, que me fazer chorar, é? Rapaz, que homenagem linda, que manifestação anímica mais emocionante e cativante! Deu até vontade de pegar as minhas duas filhotas no colo. Mas elas também já estão grande, querendo cuidar dos próprios caminhos. Vida que segue...Abraço fraterno, meu bom! Paz e bem.

Gabriel Fernandes disse...

Não sofra antecipadamente, meu amigo. Curta bastante sua menina. Nós perdemos nossos filhos o tempo todo. Eles se transformam diariamente diante de nossos olhos sem que quase o percebamos. Já não são nossos bebês, depois deixam de ser nossas crianças, nossos adoslencentes... Porém, um dia nos dão nossos netos. É uma espécie de "revival", um repeteco de paternidade. Em algum lugar eu escrevi que para um avô, amar o neto é como se o tempo lhe concedesse um único e derradeiro milagre, o inencontrável direito de voltar a amar o filho ainda menino, suas fragilidades, seus primeiros gestos, seus primeiros sons, suas pequenas birras, seus primeiros passos, a alegria de se sentir reconhecido, o prazer indescritível de ouvi-lo dizer “Pai!” pela primeira vez.
Emocionante, meu velho. Parabéns.
Gabriel

Tais Luso de Carvalho disse...

Oi, Cesar, que relato bonito, amigo! Relato de pai que ama e parece que já sente a perda... Mas não é assim, Cesar, a vida nos ensina tanto, e ao mesmo tempo que vai tirando algumas coisas vai dando outras de igual valor.
Os valores vão mudando, o amor de tua filha não acabará; apenas terá outro rosto, um rosto mais maduro, mais responsável e precisará de seus conselhos de outra forma; abraçará o pai de outra maneira, dependerá de você tanto quanto agora, mas não para brincar, e sim vai procurar no pai alguns conselhos, a experiência que lhe faltará, e um apoio que dará sentido à sua vida.
E de igual maneira ela será de muita importância a vocês.
Beijos
Tais luso

Anônimo disse...

Querido Cesar,

A quanto tempo!! Não sei se você lembra de mim, mas conversamos 1 vez por e-mail. Eu sou o cara que mora no Japão e sou fã do seu blog...Estou aqui com os olhos marejados pensando na minha pipoquinha de 8 meses, que já quer ¨seguir o seu próprio caminho¨ (rs), pois muitas vezes chora para ir para onde os meus olhos não podem rastreá-la(rs)
Agradeço a Deus por sua existência e por este dom maravilhoso que ele te deu!
Que Ele fortaleça os nossos corações a cada dia para que possamos tentar domar o nosso velho coração de pai.
Abraço!

Franco Lopes

EMERSON ARAÚJO disse...

Cesar, meu amigo, vc conctinua ótimo nas crônicas, também. Esta me fez ir as lágrimas. A minha Michele, aqui, é o Jonas que já tem 18 anos e pensa em se casar nos próximos meses. O que me conforta é a frase bíblica atual: "Os filhos são tesouros que Deus nos deu." Portanto, a Michele é teu tesouro, o Jonas, Francisco e Carmen são os meus.
Abs.
Emerson

Pedro Luso de Carvalho disse...

Cesar,

Seu poema em prosa sobre Michele, que fala desses nobres sentimentos, faz-me sintir
uma aragem nostálgica vinda daqueles bons tempos, quando meus filhos tinham a idade de sua filhinha.

Grande abraço,
Pedro.

Anônimo disse...

Boa noite Cesar! Estava em meu blog(confesso que futil perto do seu.rss...) e resolvi ver o que tinha no icone "Próximo blog" da barra encima na pagina. Me veio o seu blog, tão cheio de personalidade e força nas palavras que me encantei! Parabéns pelo trabalho e pela vida que é vivida e conquistada a cada dia que nasce! Tenha uma boa noite e um lindo domingo com sua familia!

Paula: pesponteando disse...

Oi Mi, um dia só para variar, se quiser brincar comigo, também sou boa nisso...Estou com 31 e vivo brincando com minha pequena princesa(sobrinha) de 15 anos, a Ana maria, ela tem Down, e apesar de grandinha é minha sempre criança...
Eta Cesar, q coisa linda...Estou aqui pensando em meus 9 sobrinhos e de como já não brincamos mais...Tudo passa tão depressa, qdo menos se espera, puft....num passe de mágica, eles crescem....

Vi a Michele chupando dedo....e não é q fiz isso tbm....kkkk

bjs