1.
Ela vem andando pela calçada. Vai passar por mim daqui a um minuto. Achará que nunca me viu quando me vir. Anda rápido e de cabeça baixa, olhando o chão. Faz assim para disfarçar aqueles olhos; se você os visse me entenderia, são olhos que refletem a frieza incalculável que vai naquele coração de pedra. Lobo em pele de cordeiro, é isso que ela é. Sairei de trás desta banca como que por acaso e nos enroscaremos e tropeçaremos uma na outra. Talvez caiamos ambas no chão. Ela, jovem, magra e ligeira, se porá em pé batendo as mãos nas calças e me ajudará a me erguer, pedirá mil desculpas fingidas por sua distração e até sorrirá aquele seu sorriso bonito. Com um dedo passará os cabelos negros para trás da orelha direita. Seu sorriso é mesmo bonito, já reparei. Bonito mas dissimulado. De nada adianta sorrir bonito se não se tem Deus no coração, se não se é temente ao Senhor. Quem a vê não imagina do que ela é capaz. Filha má. Excomungada. Maltrata a mãe velha em público e sem pudor, como eu já a vi fazendo por mais de uma vez. Pecadora, renega propositalmente o quinto mandamento: “Honra a teu pai e a tua mãe, a fim de que os teus dias se prolonguem sobre o solo que Jeová, teu Deus, te dá”.
2.
Meu marido morreu. Sua morte foi como uma fenda que se abriu na minha existência. E uma fenda, você sabe, tende a se alargar, vira um vão, um abismo muitas vezes. Fiquei muito sozinha. Nossa filha já tinha saído de casa para se casar, e a solidão e o impacto da perda são coisas que quando vêm repentinamente deixam você perdida. Sua vida passa a se resumir a um infinito monólogo, um conjunto de ausências. O agravante é que, além do vazio, eu também passei a ter problemas financeiros, dívidas, aquelas cartinhas embaixo da porta que chegam todo o dia, os telefonemas dos credores. Meu emocional foi para as profundezas.
Às vezes eu saía com as coisas para fazer na rua todas organizadas na minha cabeça: banco, mercado, isso e aquilo e, quando pisava na calçada, não sabia o que estava fazendo ali, na rua. Então eu voltava, abria a porta do prédio desacorçoada, passava novamente pelo porteiro, pegava o elevador e subia. Depois, já no apartamento, me vinha tudo. As tarefas esquecidas voltavam à minha mente como que trazidas de volta pela maré. Então eu saía de novo, para espanto do porteiro.
Algumas vezes eu achava que alguém na rua tinha gritado meu nome. Lenita!, eu ouvi me chamarem certa vez na Amaral Gurgel, perto de casa. Virei pra ver e nada. Ninguém. Outras vezes eram os rostos. Andando por entre a multidão eu via um rosto conhecido. Quando parava para procurar, cadê? Já me aconteceu de ver a Magali dentro de um carro, aguardando o semáforo abrir. Impossível, já que ela mora em Curitiba com o marido. Vozes, passei a ouvir muitas vozes, gente conversando entre si dentro da minha cabeça, como linhas cruzadas numa ligação. Um dia foi o Olavo que eu vi sentado num bar, tomando um café com leite. Vi, claramente, de dentro do ônibus. Meu coração quase explodiu. Armei uma gritaria danada, o motorista teve que parar no meio da rua para eu descer.
Puta que o pariu, hein, dona, ele falou quando eu passei por ele. Corri, atravessei a rua, os carros brecando, velha louca, gritou um, até que cheguei à porta do tal bar, com os bofes de fora. Não havia ninguém na banqueta em que eu jurei ver o Olavo me olhando e sorrindo, bebericando uma média. O rapaz atrás do balcão, desinteressado, enxugando copos, me garantiu que ali não tinha sentado ninguém na última meia hora.
Então comecei a fazer as trufas. Sempre fui boa doceira, aprendi a fazer doces com a mamãe. Mão boa pra doce é nato, ela dizia. Devia ter razão, porque receitas de doce caem na minha mão, qualquer tipo de doce, e já na primeira tentativa saem divinas. Modéstia a parte. São os outros que dizem, não eu. E eu fazia as trufas e vendia. Comecei no prédio, oferecendo para os moradores. Depois para os comerciantes do centro, perto de casa. Foi um sucesso que eu não esperava. Descobri que todo restaurante, bar, padaria e mercadinho acaba comprando algum tipo de doce artesanal, feito por velhas que nem eu. Há muita concorrência nesse ramo, mas percebi que era só fazer o dono provar uma das minhas que trocava de fornecedora na mesma hora. Assim meus problemas financeiros foram diminuindo. Eu realmente nunca precisei de muito para viver, além do que, nessa mesma época, consegui finalmente reunir todos os documentos e comecei a receber a pensão do Olavo.
Mas nem tudo é dinheiro na vida da gente. Me faltava alguma coisa. Quando se fica velha e sozinha, com a vida mais ou menos ajeitada, não se tem muito o que pensar. Mente vazia oficina do diabo. E foi justamente nessa época que eu conheci Jesus. Eu ia passando em frente a uma igreja e alguma coisa me atraiu ali, talvez aquelas músicas que eles cantavam, aquele fervor, a fé daquele povo. Sei que entrei e me sentei num banco. Estavam todos em pé, se balançando e gritando aleluia com os olhos fechados, as mãos para o alto. Então aconteceu. Enquanto o pastor lá na frente dizia seu sermão, eu ouvi a voz de Deus falar comigo. “Há muito que eu espero por você, Lenita”. Deus tem um propósito na vida de cada pessoa, dizia o pastor, e Deus, o próprio Deus, criador do Céu e da Terra, dizendo a mim que sim, Lenita, eu tenho mesmo um propósito para cada um, mas agora é chegada a hora de eu revelar a você, Lenita, o propósito que tenho para a sua vida.
3.
Passaram-se alguns dias. Eu fazia trufas quando o Senhor falou comigo pela segunda vez. Palavras estranhas sussurradas no meu ouvido. Limpei as mãos de chocolate no pano de pratos, o coração aos saltos, os braços arrepiados. Saí pela casa repetindo as palavras em voz alta, para não esquecer, buscando uma caneta. Anotei num folheto de pizzaria. Palavras que não me diziam nada. Sentei suando no sofá da sala. O corpo formigando. “Oh, Senhor, me ajude a compreender os teus desígnios!”, orei. E fui me acalmando, acalmando...
Logo eu me acostumaria a ouvir a voz de Deus.
– Imidacloprid e Tálio? Não conheço esses remédios. – disse o balconista da farmácia, folheando pela segunda vez o catálogo de bulas. – Com esses princípios ativos parece que não existe nada... A senhora não tem os nomes comerciais dos medicamentos? Trouxe a receita?
Não, eu não tinha nenhuma receita, só a receita do Senhor, que para esses descrentes de nada serve. Pelo jeito não eram mesmo remédios, infelizmente. Achei que fossem para as minhas dores de cabeça.
Daí entrei numa longa peregrinação atrás de desvendar aquele mistério. Me tomou uma semana. O Imidacloprid foi mais fácil. O Tálio achei que não conseguiria, mas acabei guiada pelas mãos do Senhor, recebida pelas porta dos fundos de uma indústria química na Penha, ali perto da Amador Bueno, num final de tarde
4.
Fazia calor em São Paulo naquela noite. Cozinhei macarrão e comi, olhando os frascos sobre a mesa. O que o Senhor queria que eu fizesse com aquilo? Tomei um copo d’água, apaguei a luz da cozinha e fui para a sala. Abri as grandes janelas para entrar algum ar, mas não havia nem ao menos uma brisa para soprar as cortinas. Olhei os carros passando no Minhocão, ao longe. Lá embaixo, na calçada, uns jovens conversavam alto, bebendo defronte ao bar. Só pensam em prazeres, pensei, por isso o mundo está perdido como está.
Eram quase dez horas. Pus os frascos sobre a Bíblia, em cima da mesinha de centro, bem na minha frente. Me sentei na beirada da poltrona, juntei as mãos e fechei os olhos. “Me dê da tua iluminação, ó, Pai. Faça de mim instrumento de teu poder e da tua vontade. Faça das minhas mãos as tuas mãos, e do meu querer o teu querer, amém”.
Daí abri a Bíblia aleatoriamente, como ensinou o pastor, e pus o indicador direito sobre um trecho.
“NÃO fareis para vós ídolos, nem vos levantareis imagem de escultura nem estátua, nem poreis figura de pedra na vossa terra, para inclinar-vos a ela: porque EU sou o Senhor vosso Deus.”
O Senhor fala com a gente através da Palavra. Foi aí que me lembrei da imagem da minha protetora, Nossa Senhora de Aparecida, que estava há tantos anos no ressalto da janelinha do banheiro. “O Senhor não gosta dos idólatras”, me veio à cabeça na mesma hora as palavras do pastor Leonardo, na pregação do domingo anterior. E eu estava contrariando o segundo mandamento, sem me dar conta! “Oh, Pai, me perdoe...” – murmurei, me pondo de joelhos. E assim prossegui lendo, prostrada, envergonhada.
Êxodo Cap. 20 - versículos 4 e 5
“Não farás para ti ídolos, nem figura alguma do que existe em cima, nos céus, nem embaixo, na terra, nem do que existe nas águas, debaixo da terra. Não te prostrarás diante deles, nem lhes prestarás culto, pois eu sou o Senhor teu Deus, um Deus ciumento. Castigo a culpa dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração dos que me odeiam, mas uso de misericórdia por mil gerações para com os que me amam e guardam meus mandamentos.”
Fechei a Bíblia com as lágrimas me descendo pelo rosto. Meu coração havia sido tocado. Me pus em pé e busquei decidida um saco de lixo na área de serviço. Desmontei o altar do banheiro e joguei tudo dentro: santa, relicário, velas, oferendas e moedas e alguns amuletos que havia ali. Fui fazendo o que era necessário e orando: “Senhor, me perdoe! O Senhor é um Pai misericordioso que não considera o tempo da ignorância, perdoa esta tua serva!”.
Abri a porta da cozinha e pus o saco, bem amarrado, no balde de lixo junto às escadas. Quando eu estava passando o trinco na porta, ouvi a Sua voz falando mais uma vez comigo.
5.
Trufa de limão
Ingredientes: uma lata de leite condensado, uma caixinha de gelatina de limão, suco de um limão. Fazendo: Coe o suco de limão e bata todos os ingredientes no liquidificador.
Trufa de paçoquinha
Ingredientes: uma lata de leite condensado, duzentos gramas de paçoquinha tipo rolha. Fazendo: Esfarele bem as paçoquinhas e misture com o leite condensado.
Trufa de Leite Ninho
Ingredientes: uma lata de leite condensado, duzentos gramas de Leite Ninho. Fazendo: misture todos os ingredientes com as mãos.
Comecei a fazer as trufas especiais que o Senhor me ordenou. Numa tampa de plástico fiz a mistura conforme a Sua orientação. Alguns grãos de Tálio, algumas gotas de Imidacloprid e três pingos de vinho para fermentar a mistura. Mistura-se com um palito de dentes. Surge um creme leitoso-amarelado e denso, o cheiro do vinho predominando. Teria gosto? Segundo a gordota do laboratório, o Tálio é insípido, só me resta esperar que o Imidacloprid também seja. Devo confiar, porque o Senhor é fiel e aparelha os caminhos para os que fazem a sua soberana vontade.
A mistura ficou inodora. O cheiro do vinho volatizou, acho que não vai afetar em nada o sabor. Subi na banqueta para pegar o açúcar de confeiteiro no armário e vi que o Toni tinha pulado para a pia e estava com o focinho metido onde não devia. Atirei o pano de prato nele e dei um grito. Ele correu para a área de serviço. Gato enxerido.
Adicionei a mistura ao recheio das trufas. Paçoquinha, limão, Leite Ninho, tradicional, cereja, amarula... Para não confundir com as trufas comuns dos meus fregueses, embalei-as com papel dourado. Ficaram lindas, dignas de louvor! As pequenas joias do meu Pai!
6.
A primeira vez foi num sábado, no supermercado na Vila Gumercindo. Mãe!, ela berrava no meio das gôndolas de utensílios de cozinha, não seja idiota, mãe! Essa travessa não serve, já falei, não serve, não cabem as coisas, mãe! E arrancou a travessa da mão da mãe e jogou de volta na prateleira. Todo mundo olhando. Fiquei indignada com aquilo. Iniquidade!, pensei.
Passaram no caixa na minha frente, e foi aí que eu ouvi o chamado do Pai para segui-las. É a minha obrigação, como serva, obedecer às ordenanças. Subiram no ônibus, eu subi atrás e fiquei do fundo observando. Durante o trajeto desrespeitou a mãe várias vezes, impaciente com quem a amou e a criou. A mãe, pequenininha, velha e curvada, não se queixava de nada, a pobrezinha. Uma ovelha muda. Quando desceram na Saúde, desci atrás e fui seguindo as duas de longe. Vi quando entraram num sobrado geminado na Rua Caramuru, próximo à Avenida Jabaquara.
À noite, enquanto eu tomava banho pensando na pecadora, o Senhor me ordenou: “Lenita, quero essa de volta para mim”.
“Pai, faça de mim, no dia de hoje, carvalho de justiça, sal da terra e luz do mundo em meio a um povo corrompido e perverso! Faça-me instrumento do teu poder, Senhor! Amém”. Acordei ainda de noite, depois de orar tomei uma xícara de café puro e saí. Tinha entrado o inverno e naquele dia fazia muito frio. Ainda assim eu teria que sair o mais cedo possível. Não tinha como saber qual o horário que a pecadora saia de casa pela manhã – e eu nem mesmo sabia se ela saia pela manhã.
O porteiro dormia com a cabeça pendida para trás quando eu abri a porta do elevador e passei por ele. Em cinco minutos eu estava na frente da estação Marechal. Fechada. Às 4h45 um funcionário do Metrô, de cara amarrada, subiu as portas liberando a passagem das pessoas. Além de mim já havia outras tantas aguardando. Me precipitei pelas escadas e passei meu cartão na catraca. Não pagar condução tem sido uma graça de Deus.
Santa Cecília, República, Anhangabaú e Sé.
Desembarquei na Sé e baldeei para a linha azul. Os trens ainda estavam vazios àquela hora. Fui sentada.
Liberdade, São Joaquim, Vergueiro, Paraíso, Ana Rosa, Vila Mariana, Praça da Árvore e Saúde.
Saí na Avenida Jabaquara. Noite ainda. As luzes nos postes da avenida acesas. Apesar das quatro blusas que eu vestia, uma sobre a outra, fazia um sério frio de trincar a pele. Caminhei por alguns quarteirões, soltando fumaça pela boca. Desci uma quadra na Caramuru. Havia um bar abrindo. Entrei e pedi um pão com manteiga.
7.
As minhas mãos agora são as mãos do Deus. Meu querer é o querer do Senhor. Meu Pai ordena e eu obedeço. Sou barro nas mãos do Oleiro. Ai daqueles que têm as mãos contaminadas pelo sangue, os dedos pela iniquidade e os lábios repletos de falsidade e perversidade! Sobre estes pesará a mão do meu Deus, sobre eles cairá a ira de Jeová, o Senhor dos Exércitos!
“Lenita, em Jandira, em uma escola estadual, encontrarás uma filha minha desencaminhada, quero que a mande de volta”. Foi semana retrasada que eu estava dormindo, madrugada, quando a voz do Senhor chegou a mim. Achei que fosse um sonho. Senhor, o que mais, Senhor?, perguntei, já sentada na cama, sonada, Quem é ela, Pai? Mais nada. Apenas o silêncio. A sabedoria do coração de Deus é inescrutável e seus desígnios misteriosos. Aquilo era tudo o que eu teria.
Penha, Lapa, Ermelino Matarazzo, Jardim Paulista, Mooca, Paraíso, Sacomã, São Caetano, Poá, Osasco, Mauá, Chácara Klabin, Santos, Ipiranga e Caieiras. No cumprimento do meu chamado, eu já havia sido enviada aos mais diversos lugares. Mas eu não tinha ideia que existia um lugar chamado Jandira.
Quatro ônibus. Uma viagem longa, em pé. Escola estadual em Jandira havia 14. Fui obrigada a me hospedar num hotel imundo, de prostituição, e ficar por três dias visitando uma a uma todas as escolas. Só saia do quarto do hotel para o cumprimento das ordenanças de meu Pai. O resto do tempo eu orava, jejuava e lia a Bíblia. Nas escolas, eu dizia que estava chegando ao município, que procurava uma boa instituição para o meu neto, que meu filho trabalha muito e não tem tempo de ver essas coisas e etecétera. Com fé, esperando sempre por um sinal, eu ia prosseguindo. O Senhor há de me dar olhos para ver!, eu pensava, pois sozinha eu não tinha meios. Revestida de uma confiança inabalável me mantive em pé e temente ao Pai.
Na tarde do terceiro dia, já exausta, fui levada a uma sala para conversar com uma certa diretora. Na hora em que a mulher entrou, perfumada, e me estendeu a mão de unhas longas, vermelhas como o sangue do Cordeiro, eu soube na hora.
O Senhor é fiel!
Ela usava vestido curtíssimo, decotado, batom forte, pele queimada pelo sol. A imagem do pecado. A aliança na mão esquerda revelava um compromisso que as atitudes, os trajes, a maquilagem e os brincos traiam. Nada ali condizia com a vontade de Deus para uma mãe de família. Para concretizar minha certeza, seu celular tocou no início da nossa conversa.
– Oi! – ela disse – Não... não, hoje eu não posso... Estou atendendo uma pessoa, depois te ligo. – Desligou, mas a sala fechada e silenciosa tinha me permitido ouvir a voz grave de um homem do lado de lá da linha.
– Era o meu marido – ela mentiu.
Iniquidade!, pensei. Uma adúltera! Não cometerás adultério, ordenou o Senhor no sétimo mandamento. Bem-aventurado o homem que não anda segundo o conselho dos ímpios, nem se detém no caminho dos pecadores, e nem se assenta na roda dos escarnecedores. Antes tem o seu prazer na lei do Senhor, e nela medita de dia e de noite.
Do peso da mão do Senhor ninguém escapa. E eu havia encontrado mais uma, para alegria do meu Pai.
8.
5h40. Começava a clarear. A casa dela estava toda apagada. Fiquei por quase uma hora e meia naquele bar. Às 7h saí, para não dar na vista. Fui para um outro ponto de observação e me sentei num ressalto junto ao portão de uma casa. Caso alguém implicasse, eu me levantaria e iria embora. Mas quem implica com uma velha com umas sacolas sentada no portão? Depois de tanta espera eu já estava considerando mil hipóteses: Ela poderia não morar mais ali; aquela poderia ser a casa da mãe e não a dela, ou poderia ser a casa de algum parente que elas resolveram visitar justamente naquela tarde em que eu as segui. Achei que iria perder o dia. Pior, achei que a tivesse perdido definitivamente. Oh, Senhor, me dê da tua ciência!
Às 8h a porta da casa se abriu e ela saiu. Dei um suspiro de alívio. Obrigada, Pai! Ela carregava a bolsa num ombro e uma maleta pequena na mão. Óculos escuros, abriu o portãozinho baixo, fechou-o atrás de si e ganhou a rua com passos rápidos. Disfarcei e me pus em pé, me adiantando na sua frente em direção à Avenida Jabaquara. Eu estava quase um quarteirão na frente dela, usando a técnica do seguir ao contrário, já que imaginava que ela possivelmente pegaria um ônibus da avenida, ou o Metrô, para ir para o trabalho.
9.
– Pode entrar, dona Lenita – disse a secretária do doutor Milton.
Doutor Milton, neurologista, que havia me feito muitas perguntas na consulta anterior, antes de pedir os exames, agora abria os envelopes que lhe entreguei. Lia e chupava as hastes dos óculos, balançando a cabeça afirmativamente, depois repunha os óculos e olhava coisas na tela do computador, fazendo comparações entre o que lia no papel e o que lia na tela.
– Dona Lenita – ele disse, largando os papéis sobre a mesa e limpando os óculos no avental – pode ficar tranquila, na cabeça a senhora não tem nada.
Fiquei quieta esperando mais algum comentário. Na primeira consulta ele foi anotando tudo o que eu ia dizendo num bloquinho. Quis saber sobre minha alimentação, histórico de doenças familiares, desde quando as dores haviam começado etecétera. Fiz um relatório bem detalhado de tudo naquele dia.
Em certo momento senti no coração que deveria e falei de Jesus para ele, contei dos cultos de cura e de intercessão lá na igreja, e da plenitude que eu vivia por ter finalmente encontrado meu Senhor e Salvador Jesus Cristo. Em tudo o que declarares, eleve sempre o nome do Senhor, teu Deus. E é assim que faço. Não perco nenhuma oportunidade. Mas ele não deu atenção a nada do que eu disse. Foi aí que eu desconfiei. Suspeitei estar de frente para um ateu, um descrente, talvez um demoníaco! Algo mudou em nossa conversa depois que falei de Deus para ele.
Em silêncio, ele escreveu numa guia alguns pedidos de exame e pediu que eu retornasse assim que estivessem prontos.
Agora, com os exames jogados na mesa, ele permanecia quieto, recostado na cadeira me olhando sem dizer nada, os braços cruzados no peito, como se estivesse hesitante em falar mais alguma coisa.
– Doutor, então qual é o motivo dessas dores horríveis, que nenhum remédio corta? – indaguei, quebrando o silêncio.
– A senhora quer mesmo saber a minha opinião, dona Lenita? – ele disse num suspiro, se levantando e vindo na minha direção.
– Sim, por isso estou aqui. – falei, já com ele em pé ao meu lado e com a mão no meu ombro.
– Dona Lenita, o que vou dizer é só uma opinião, ok? Agora não sou mais um médico, sou um amigo; a senhora tem a mesma idade da minha mãe, poderia ser a minha mãe, certo?
Fiz que sim com a cabeça, aguardando. Eu não estava gostando nada daquela intimidade.
– É essa sua igreja, dona Lenita – ele disse, sorrindo para mim como sorriu o cramulhão para Jó – Essa igreja está enlouquecendo a senhora. A senhora me perdoe dizer isso, mas essas coisas de muito culto, profecia, essa gente que berra, que só fala de Deus... É uma loucura! Eu conheço bem... E isso, na verdade, não tem nada a ver com Deus, dona Lenita.
Quase desmaiei. Senti uma descarga elétrica atravessar o meu corpo da espinha aos pés, minhas mãos molharam na mesma hora. Meditei nas promessas do Senhor no Salmo 23:
“Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, mal algum temerei, pois estás junto a mim; a tua vara e o teu cajado me consolam. Diante de mim preparas uma mesa, diante de meus opressores unges a minha cabeça com óleo e meu cálice transborda.”
Agora eu estava ali, sendo testada em minha fé. Lucifer, o servo do mal me segurando pelo ombro. A prova do fogo do inferno.
Pensei em me levantar e sair, correr, então me lembrei do diabo tentando Jesus no deserto, e do seu corpo pregado naquela cruz e do seu sangue vertido em meu favor. Então me levantei, repentinamente fortalecida.
– O senhor está certo, doutor Milton – eu disse, encarando-o, revestida do poder do Espírito Santo, estranhando as palavras firmes que saíam dos meus lábios. Não era eu falando ali, era o Espírito de Deus.
– Para ser sincera, doutor, tenho achado mesmo que isso tudo é um grande exagero. – disse, e o vi sorrir. É claro, isso é bem o que diabo gosta de ouvir.
– Mas fico feliz de não ser nada mais grave. – prossegui – Obrigada assim mesmo. Agora deixe-me dar ao senhor uma delícia que eu mesma faço. Abri a minha bolsa e lá no fundo vi, reluzente, uma das joias do meu Pai.
10.
Pegamos o Metrô. Trocamos de linha na Sé. Eu a seguindo sempre à distância. Desembarcamos na estação Santana. De longe eu a vi entrar ali, naquele prédio de escritórios, esquina da Avenida Voluntários da Pátria com a Braz Leme. Já estou a mais de três horas esperando. Na padaria, tomei guaraná, uma xícara de café e comi um sanduiche de mortadela. Pensei muito na morte inexplicável do Toni e nos desígnios de Deus para a minha vida. Também orei e li os capítulos 1 a 4 do profeta Ezequiel.
"Quando eu disser ao ímpio: Certamente morrerás; e tu não o avisares, nem falares para avisar o ímpio acerca do seu mau caminho, para salvar a sua vida, aquele ímpio morrerá na sua iniquidade, mas o seu sangue, da tua mão o requererei."
Agora são meio-dia e quinze. Minhas costas estão moídas, minha cabeça pulsando. Mas qualquer sofrimento é benção quando se faz a vontade do Pai.
Lá vem ela, finalmente! Traz só a bolsa. Pelo jeito vai almoçar. Vou sair de trás desta banca e me enroscar com ela, tudo sem querer, possivelmente iremos ao chão. Ela que é jovem se erguerá antes de mim e me ajudará, pedirá mil desculpas fingidas, depois sorrirá seu sorriso falso, demoníaco.
Fingirei que acredito em seu arrependimento. Sorriremos enfim, uma olhando para a outra. Então, como para também me desculpar do meu próprio atabalhoamento, abrirei a bolsa e darei a ela uma das joias do meu Pai.
Sou eu mesma que faço, direi. Ela agradecerá e dirá que comerá depois do almoço. É receita da minha finada mãe, a melhor trufa que você já comeu, meu bem, insistirei, é abençoada pelo nosso Senhor Jesus Cristo! Eu ficaria muito feliz de vê-la provar, só para ver seus olhos, sua reação!
Sempre funciona.
Entre estertores de dor e agonia, vomitará e defecará líquidos ininterruptamente, por 3 dias. Sangue, fezes e toda a imundície que carrega, até a exaustão física e a falência do corpo.
Isso é necessário. Só assim estará purificada e limpa, digna de ir ao encontro do meu Pai.
Para onde, segundo os obituários dos jornais, já foram 18 pecadores.
2.
Meu marido morreu. Sua morte foi como uma fenda que se abriu na minha existência. E uma fenda, você sabe, tende a se alargar, vira um vão, um abismo muitas vezes. Fiquei muito sozinha. Nossa filha já tinha saído de casa para se casar, e a solidão e o impacto da perda são coisas que quando vêm repentinamente deixam você perdida. Sua vida passa a se resumir a um infinito monólogo, um conjunto de ausências. O agravante é que, além do vazio, eu também passei a ter problemas financeiros, dívidas, aquelas cartinhas embaixo da porta que chegam todo o dia, os telefonemas dos credores. Meu emocional foi para as profundezas.
Às vezes eu saía com as coisas para fazer na rua todas organizadas na minha cabeça: banco, mercado, isso e aquilo e, quando pisava na calçada, não sabia o que estava fazendo ali, na rua. Então eu voltava, abria a porta do prédio desacorçoada, passava novamente pelo porteiro, pegava o elevador e subia. Depois, já no apartamento, me vinha tudo. As tarefas esquecidas voltavam à minha mente como que trazidas de volta pela maré. Então eu saía de novo, para espanto do porteiro.
Algumas vezes eu achava que alguém na rua tinha gritado meu nome. Lenita!, eu ouvi me chamarem certa vez na Amaral Gurgel, perto de casa. Virei pra ver e nada. Ninguém. Outras vezes eram os rostos. Andando por entre a multidão eu via um rosto conhecido. Quando parava para procurar, cadê? Já me aconteceu de ver a Magali dentro de um carro, aguardando o semáforo abrir. Impossível, já que ela mora em Curitiba com o marido. Vozes, passei a ouvir muitas vozes, gente conversando entre si dentro da minha cabeça, como linhas cruzadas numa ligação. Um dia foi o Olavo que eu vi sentado num bar, tomando um café com leite. Vi, claramente, de dentro do ônibus. Meu coração quase explodiu. Armei uma gritaria danada, o motorista teve que parar no meio da rua para eu descer.
Puta que o pariu, hein, dona, ele falou quando eu passei por ele. Corri, atravessei a rua, os carros brecando, velha louca, gritou um, até que cheguei à porta do tal bar, com os bofes de fora. Não havia ninguém na banqueta em que eu jurei ver o Olavo me olhando e sorrindo, bebericando uma média. O rapaz atrás do balcão, desinteressado, enxugando copos, me garantiu que ali não tinha sentado ninguém na última meia hora.
Então comecei a fazer as trufas. Sempre fui boa doceira, aprendi a fazer doces com a mamãe. Mão boa pra doce é nato, ela dizia. Devia ter razão, porque receitas de doce caem na minha mão, qualquer tipo de doce, e já na primeira tentativa saem divinas. Modéstia a parte. São os outros que dizem, não eu. E eu fazia as trufas e vendia. Comecei no prédio, oferecendo para os moradores. Depois para os comerciantes do centro, perto de casa. Foi um sucesso que eu não esperava. Descobri que todo restaurante, bar, padaria e mercadinho acaba comprando algum tipo de doce artesanal, feito por velhas que nem eu. Há muita concorrência nesse ramo, mas percebi que era só fazer o dono provar uma das minhas que trocava de fornecedora na mesma hora. Assim meus problemas financeiros foram diminuindo. Eu realmente nunca precisei de muito para viver, além do que, nessa mesma época, consegui finalmente reunir todos os documentos e comecei a receber a pensão do Olavo.
Mas nem tudo é dinheiro na vida da gente. Me faltava alguma coisa. Quando se fica velha e sozinha, com a vida mais ou menos ajeitada, não se tem muito o que pensar. Mente vazia oficina do diabo. E foi justamente nessa época que eu conheci Jesus. Eu ia passando em frente a uma igreja e alguma coisa me atraiu ali, talvez aquelas músicas que eles cantavam, aquele fervor, a fé daquele povo. Sei que entrei e me sentei num banco. Estavam todos em pé, se balançando e gritando aleluia com os olhos fechados, as mãos para o alto. Então aconteceu. Enquanto o pastor lá na frente dizia seu sermão, eu ouvi a voz de Deus falar comigo. “Há muito que eu espero por você, Lenita”. Deus tem um propósito na vida de cada pessoa, dizia o pastor, e Deus, o próprio Deus, criador do Céu e da Terra, dizendo a mim que sim, Lenita, eu tenho mesmo um propósito para cada um, mas agora é chegada a hora de eu revelar a você, Lenita, o propósito que tenho para a sua vida.
3.
Passaram-se alguns dias. Eu fazia trufas quando o Senhor falou comigo pela segunda vez. Palavras estranhas sussurradas no meu ouvido. Limpei as mãos de chocolate no pano de pratos, o coração aos saltos, os braços arrepiados. Saí pela casa repetindo as palavras em voz alta, para não esquecer, buscando uma caneta. Anotei num folheto de pizzaria. Palavras que não me diziam nada. Sentei suando no sofá da sala. O corpo formigando. “Oh, Senhor, me ajude a compreender os teus desígnios!”, orei. E fui me acalmando, acalmando...
Logo eu me acostumaria a ouvir a voz de Deus.
– Imidacloprid e Tálio? Não conheço esses remédios. – disse o balconista da farmácia, folheando pela segunda vez o catálogo de bulas. – Com esses princípios ativos parece que não existe nada... A senhora não tem os nomes comerciais dos medicamentos? Trouxe a receita?
Não, eu não tinha nenhuma receita, só a receita do Senhor, que para esses descrentes de nada serve. Pelo jeito não eram mesmo remédios, infelizmente. Achei que fossem para as minhas dores de cabeça.
Daí entrei numa longa peregrinação atrás de desvendar aquele mistério. Me tomou uma semana. O Imidacloprid foi mais fácil. O Tálio achei que não conseguiria, mas acabei guiada pelas mãos do Senhor, recebida pelas porta dos fundos de uma indústria química na Penha, ali perto da Amador Bueno, num final de tarde
4.
Fazia calor em São Paulo naquela noite. Cozinhei macarrão e comi, olhando os frascos sobre a mesa. O que o Senhor queria que eu fizesse com aquilo? Tomei um copo d’água, apaguei a luz da cozinha e fui para a sala. Abri as grandes janelas para entrar algum ar, mas não havia nem ao menos uma brisa para soprar as cortinas. Olhei os carros passando no Minhocão, ao longe. Lá embaixo, na calçada, uns jovens conversavam alto, bebendo defronte ao bar. Só pensam em prazeres, pensei, por isso o mundo está perdido como está.
Eram quase dez horas. Pus os frascos sobre a Bíblia, em cima da mesinha de centro, bem na minha frente. Me sentei na beirada da poltrona, juntei as mãos e fechei os olhos. “Me dê da tua iluminação, ó, Pai. Faça de mim instrumento de teu poder e da tua vontade. Faça das minhas mãos as tuas mãos, e do meu querer o teu querer, amém”.
Daí abri a Bíblia aleatoriamente, como ensinou o pastor, e pus o indicador direito sobre um trecho.
“NÃO fareis para vós ídolos, nem vos levantareis imagem de escultura nem estátua, nem poreis figura de pedra na vossa terra, para inclinar-vos a ela: porque EU sou o Senhor vosso Deus.”
O Senhor fala com a gente através da Palavra. Foi aí que me lembrei da imagem da minha protetora, Nossa Senhora de Aparecida, que estava há tantos anos no ressalto da janelinha do banheiro. “O Senhor não gosta dos idólatras”, me veio à cabeça na mesma hora as palavras do pastor Leonardo, na pregação do domingo anterior. E eu estava contrariando o segundo mandamento, sem me dar conta! “Oh, Pai, me perdoe...” – murmurei, me pondo de joelhos. E assim prossegui lendo, prostrada, envergonhada.
Êxodo Cap. 20 - versículos 4 e 5
“Não farás para ti ídolos, nem figura alguma do que existe em cima, nos céus, nem embaixo, na terra, nem do que existe nas águas, debaixo da terra. Não te prostrarás diante deles, nem lhes prestarás culto, pois eu sou o Senhor teu Deus, um Deus ciumento. Castigo a culpa dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração dos que me odeiam, mas uso de misericórdia por mil gerações para com os que me amam e guardam meus mandamentos.”
Fechei a Bíblia com as lágrimas me descendo pelo rosto. Meu coração havia sido tocado. Me pus em pé e busquei decidida um saco de lixo na área de serviço. Desmontei o altar do banheiro e joguei tudo dentro: santa, relicário, velas, oferendas e moedas e alguns amuletos que havia ali. Fui fazendo o que era necessário e orando: “Senhor, me perdoe! O Senhor é um Pai misericordioso que não considera o tempo da ignorância, perdoa esta tua serva!”.
Abri a porta da cozinha e pus o saco, bem amarrado, no balde de lixo junto às escadas. Quando eu estava passando o trinco na porta, ouvi a Sua voz falando mais uma vez comigo.
5.
Trufa de limão
Ingredientes: uma lata de leite condensado, uma caixinha de gelatina de limão, suco de um limão. Fazendo: Coe o suco de limão e bata todos os ingredientes no liquidificador.
Trufa de paçoquinha
Ingredientes: uma lata de leite condensado, duzentos gramas de paçoquinha tipo rolha. Fazendo: Esfarele bem as paçoquinhas e misture com o leite condensado.
Trufa de Leite Ninho
Ingredientes: uma lata de leite condensado, duzentos gramas de Leite Ninho. Fazendo: misture todos os ingredientes com as mãos.
Comecei a fazer as trufas especiais que o Senhor me ordenou. Numa tampa de plástico fiz a mistura conforme a Sua orientação. Alguns grãos de Tálio, algumas gotas de Imidacloprid e três pingos de vinho para fermentar a mistura. Mistura-se com um palito de dentes. Surge um creme leitoso-amarelado e denso, o cheiro do vinho predominando. Teria gosto? Segundo a gordota do laboratório, o Tálio é insípido, só me resta esperar que o Imidacloprid também seja. Devo confiar, porque o Senhor é fiel e aparelha os caminhos para os que fazem a sua soberana vontade.
A mistura ficou inodora. O cheiro do vinho volatizou, acho que não vai afetar em nada o sabor. Subi na banqueta para pegar o açúcar de confeiteiro no armário e vi que o Toni tinha pulado para a pia e estava com o focinho metido onde não devia. Atirei o pano de prato nele e dei um grito. Ele correu para a área de serviço. Gato enxerido.
Adicionei a mistura ao recheio das trufas. Paçoquinha, limão, Leite Ninho, tradicional, cereja, amarula... Para não confundir com as trufas comuns dos meus fregueses, embalei-as com papel dourado. Ficaram lindas, dignas de louvor! As pequenas joias do meu Pai!
6.
A primeira vez foi num sábado, no supermercado na Vila Gumercindo. Mãe!, ela berrava no meio das gôndolas de utensílios de cozinha, não seja idiota, mãe! Essa travessa não serve, já falei, não serve, não cabem as coisas, mãe! E arrancou a travessa da mão da mãe e jogou de volta na prateleira. Todo mundo olhando. Fiquei indignada com aquilo. Iniquidade!, pensei.
Passaram no caixa na minha frente, e foi aí que eu ouvi o chamado do Pai para segui-las. É a minha obrigação, como serva, obedecer às ordenanças. Subiram no ônibus, eu subi atrás e fiquei do fundo observando. Durante o trajeto desrespeitou a mãe várias vezes, impaciente com quem a amou e a criou. A mãe, pequenininha, velha e curvada, não se queixava de nada, a pobrezinha. Uma ovelha muda. Quando desceram na Saúde, desci atrás e fui seguindo as duas de longe. Vi quando entraram num sobrado geminado na Rua Caramuru, próximo à Avenida Jabaquara.
À noite, enquanto eu tomava banho pensando na pecadora, o Senhor me ordenou: “Lenita, quero essa de volta para mim”.
“Pai, faça de mim, no dia de hoje, carvalho de justiça, sal da terra e luz do mundo em meio a um povo corrompido e perverso! Faça-me instrumento do teu poder, Senhor! Amém”. Acordei ainda de noite, depois de orar tomei uma xícara de café puro e saí. Tinha entrado o inverno e naquele dia fazia muito frio. Ainda assim eu teria que sair o mais cedo possível. Não tinha como saber qual o horário que a pecadora saia de casa pela manhã – e eu nem mesmo sabia se ela saia pela manhã.
O porteiro dormia com a cabeça pendida para trás quando eu abri a porta do elevador e passei por ele. Em cinco minutos eu estava na frente da estação Marechal. Fechada. Às 4h45 um funcionário do Metrô, de cara amarrada, subiu as portas liberando a passagem das pessoas. Além de mim já havia outras tantas aguardando. Me precipitei pelas escadas e passei meu cartão na catraca. Não pagar condução tem sido uma graça de Deus.
Santa Cecília, República, Anhangabaú e Sé.
Desembarquei na Sé e baldeei para a linha azul. Os trens ainda estavam vazios àquela hora. Fui sentada.
Liberdade, São Joaquim, Vergueiro, Paraíso, Ana Rosa, Vila Mariana, Praça da Árvore e Saúde.
Saí na Avenida Jabaquara. Noite ainda. As luzes nos postes da avenida acesas. Apesar das quatro blusas que eu vestia, uma sobre a outra, fazia um sério frio de trincar a pele. Caminhei por alguns quarteirões, soltando fumaça pela boca. Desci uma quadra na Caramuru. Havia um bar abrindo. Entrei e pedi um pão com manteiga.
7.
As minhas mãos agora são as mãos do Deus. Meu querer é o querer do Senhor. Meu Pai ordena e eu obedeço. Sou barro nas mãos do Oleiro. Ai daqueles que têm as mãos contaminadas pelo sangue, os dedos pela iniquidade e os lábios repletos de falsidade e perversidade! Sobre estes pesará a mão do meu Deus, sobre eles cairá a ira de Jeová, o Senhor dos Exércitos!
“Lenita, em Jandira, em uma escola estadual, encontrarás uma filha minha desencaminhada, quero que a mande de volta”. Foi semana retrasada que eu estava dormindo, madrugada, quando a voz do Senhor chegou a mim. Achei que fosse um sonho. Senhor, o que mais, Senhor?, perguntei, já sentada na cama, sonada, Quem é ela, Pai? Mais nada. Apenas o silêncio. A sabedoria do coração de Deus é inescrutável e seus desígnios misteriosos. Aquilo era tudo o que eu teria.
Penha, Lapa, Ermelino Matarazzo, Jardim Paulista, Mooca, Paraíso, Sacomã, São Caetano, Poá, Osasco, Mauá, Chácara Klabin, Santos, Ipiranga e Caieiras. No cumprimento do meu chamado, eu já havia sido enviada aos mais diversos lugares. Mas eu não tinha ideia que existia um lugar chamado Jandira.
Quatro ônibus. Uma viagem longa, em pé. Escola estadual em Jandira havia 14. Fui obrigada a me hospedar num hotel imundo, de prostituição, e ficar por três dias visitando uma a uma todas as escolas. Só saia do quarto do hotel para o cumprimento das ordenanças de meu Pai. O resto do tempo eu orava, jejuava e lia a Bíblia. Nas escolas, eu dizia que estava chegando ao município, que procurava uma boa instituição para o meu neto, que meu filho trabalha muito e não tem tempo de ver essas coisas e etecétera. Com fé, esperando sempre por um sinal, eu ia prosseguindo. O Senhor há de me dar olhos para ver!, eu pensava, pois sozinha eu não tinha meios. Revestida de uma confiança inabalável me mantive em pé e temente ao Pai.
Na tarde do terceiro dia, já exausta, fui levada a uma sala para conversar com uma certa diretora. Na hora em que a mulher entrou, perfumada, e me estendeu a mão de unhas longas, vermelhas como o sangue do Cordeiro, eu soube na hora.
O Senhor é fiel!
Ela usava vestido curtíssimo, decotado, batom forte, pele queimada pelo sol. A imagem do pecado. A aliança na mão esquerda revelava um compromisso que as atitudes, os trajes, a maquilagem e os brincos traiam. Nada ali condizia com a vontade de Deus para uma mãe de família. Para concretizar minha certeza, seu celular tocou no início da nossa conversa.
– Oi! – ela disse – Não... não, hoje eu não posso... Estou atendendo uma pessoa, depois te ligo. – Desligou, mas a sala fechada e silenciosa tinha me permitido ouvir a voz grave de um homem do lado de lá da linha.
– Era o meu marido – ela mentiu.
Iniquidade!, pensei. Uma adúltera! Não cometerás adultério, ordenou o Senhor no sétimo mandamento. Bem-aventurado o homem que não anda segundo o conselho dos ímpios, nem se detém no caminho dos pecadores, e nem se assenta na roda dos escarnecedores. Antes tem o seu prazer na lei do Senhor, e nela medita de dia e de noite.
Do peso da mão do Senhor ninguém escapa. E eu havia encontrado mais uma, para alegria do meu Pai.
8.
5h40. Começava a clarear. A casa dela estava toda apagada. Fiquei por quase uma hora e meia naquele bar. Às 7h saí, para não dar na vista. Fui para um outro ponto de observação e me sentei num ressalto junto ao portão de uma casa. Caso alguém implicasse, eu me levantaria e iria embora. Mas quem implica com uma velha com umas sacolas sentada no portão? Depois de tanta espera eu já estava considerando mil hipóteses: Ela poderia não morar mais ali; aquela poderia ser a casa da mãe e não a dela, ou poderia ser a casa de algum parente que elas resolveram visitar justamente naquela tarde em que eu as segui. Achei que iria perder o dia. Pior, achei que a tivesse perdido definitivamente. Oh, Senhor, me dê da tua ciência!
Às 8h a porta da casa se abriu e ela saiu. Dei um suspiro de alívio. Obrigada, Pai! Ela carregava a bolsa num ombro e uma maleta pequena na mão. Óculos escuros, abriu o portãozinho baixo, fechou-o atrás de si e ganhou a rua com passos rápidos. Disfarcei e me pus em pé, me adiantando na sua frente em direção à Avenida Jabaquara. Eu estava quase um quarteirão na frente dela, usando a técnica do seguir ao contrário, já que imaginava que ela possivelmente pegaria um ônibus da avenida, ou o Metrô, para ir para o trabalho.
9.
– Pode entrar, dona Lenita – disse a secretária do doutor Milton.
Doutor Milton, neurologista, que havia me feito muitas perguntas na consulta anterior, antes de pedir os exames, agora abria os envelopes que lhe entreguei. Lia e chupava as hastes dos óculos, balançando a cabeça afirmativamente, depois repunha os óculos e olhava coisas na tela do computador, fazendo comparações entre o que lia no papel e o que lia na tela.
– Dona Lenita – ele disse, largando os papéis sobre a mesa e limpando os óculos no avental – pode ficar tranquila, na cabeça a senhora não tem nada.
Fiquei quieta esperando mais algum comentário. Na primeira consulta ele foi anotando tudo o que eu ia dizendo num bloquinho. Quis saber sobre minha alimentação, histórico de doenças familiares, desde quando as dores haviam começado etecétera. Fiz um relatório bem detalhado de tudo naquele dia.
Em certo momento senti no coração que deveria e falei de Jesus para ele, contei dos cultos de cura e de intercessão lá na igreja, e da plenitude que eu vivia por ter finalmente encontrado meu Senhor e Salvador Jesus Cristo. Em tudo o que declarares, eleve sempre o nome do Senhor, teu Deus. E é assim que faço. Não perco nenhuma oportunidade. Mas ele não deu atenção a nada do que eu disse. Foi aí que eu desconfiei. Suspeitei estar de frente para um ateu, um descrente, talvez um demoníaco! Algo mudou em nossa conversa depois que falei de Deus para ele.
Em silêncio, ele escreveu numa guia alguns pedidos de exame e pediu que eu retornasse assim que estivessem prontos.
Agora, com os exames jogados na mesa, ele permanecia quieto, recostado na cadeira me olhando sem dizer nada, os braços cruzados no peito, como se estivesse hesitante em falar mais alguma coisa.
– Doutor, então qual é o motivo dessas dores horríveis, que nenhum remédio corta? – indaguei, quebrando o silêncio.
– A senhora quer mesmo saber a minha opinião, dona Lenita? – ele disse num suspiro, se levantando e vindo na minha direção.
– Sim, por isso estou aqui. – falei, já com ele em pé ao meu lado e com a mão no meu ombro.
– Dona Lenita, o que vou dizer é só uma opinião, ok? Agora não sou mais um médico, sou um amigo; a senhora tem a mesma idade da minha mãe, poderia ser a minha mãe, certo?
Fiz que sim com a cabeça, aguardando. Eu não estava gostando nada daquela intimidade.
– É essa sua igreja, dona Lenita – ele disse, sorrindo para mim como sorriu o cramulhão para Jó – Essa igreja está enlouquecendo a senhora. A senhora me perdoe dizer isso, mas essas coisas de muito culto, profecia, essa gente que berra, que só fala de Deus... É uma loucura! Eu conheço bem... E isso, na verdade, não tem nada a ver com Deus, dona Lenita.
Quase desmaiei. Senti uma descarga elétrica atravessar o meu corpo da espinha aos pés, minhas mãos molharam na mesma hora. Meditei nas promessas do Senhor no Salmo 23:
“Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, mal algum temerei, pois estás junto a mim; a tua vara e o teu cajado me consolam. Diante de mim preparas uma mesa, diante de meus opressores unges a minha cabeça com óleo e meu cálice transborda.”
Agora eu estava ali, sendo testada em minha fé. Lucifer, o servo do mal me segurando pelo ombro. A prova do fogo do inferno.
Pensei em me levantar e sair, correr, então me lembrei do diabo tentando Jesus no deserto, e do seu corpo pregado naquela cruz e do seu sangue vertido em meu favor. Então me levantei, repentinamente fortalecida.
– O senhor está certo, doutor Milton – eu disse, encarando-o, revestida do poder do Espírito Santo, estranhando as palavras firmes que saíam dos meus lábios. Não era eu falando ali, era o Espírito de Deus.
– Para ser sincera, doutor, tenho achado mesmo que isso tudo é um grande exagero. – disse, e o vi sorrir. É claro, isso é bem o que diabo gosta de ouvir.
– Mas fico feliz de não ser nada mais grave. – prossegui – Obrigada assim mesmo. Agora deixe-me dar ao senhor uma delícia que eu mesma faço. Abri a minha bolsa e lá no fundo vi, reluzente, uma das joias do meu Pai.
10.
Pegamos o Metrô. Trocamos de linha na Sé. Eu a seguindo sempre à distância. Desembarcamos na estação Santana. De longe eu a vi entrar ali, naquele prédio de escritórios, esquina da Avenida Voluntários da Pátria com a Braz Leme. Já estou a mais de três horas esperando. Na padaria, tomei guaraná, uma xícara de café e comi um sanduiche de mortadela. Pensei muito na morte inexplicável do Toni e nos desígnios de Deus para a minha vida. Também orei e li os capítulos 1 a 4 do profeta Ezequiel.
"Quando eu disser ao ímpio: Certamente morrerás; e tu não o avisares, nem falares para avisar o ímpio acerca do seu mau caminho, para salvar a sua vida, aquele ímpio morrerá na sua iniquidade, mas o seu sangue, da tua mão o requererei."
Agora são meio-dia e quinze. Minhas costas estão moídas, minha cabeça pulsando. Mas qualquer sofrimento é benção quando se faz a vontade do Pai.
Lá vem ela, finalmente! Traz só a bolsa. Pelo jeito vai almoçar. Vou sair de trás desta banca e me enroscar com ela, tudo sem querer, possivelmente iremos ao chão. Ela que é jovem se erguerá antes de mim e me ajudará, pedirá mil desculpas fingidas, depois sorrirá seu sorriso falso, demoníaco.
Fingirei que acredito em seu arrependimento. Sorriremos enfim, uma olhando para a outra. Então, como para também me desculpar do meu próprio atabalhoamento, abrirei a bolsa e darei a ela uma das joias do meu Pai.
Sou eu mesma que faço, direi. Ela agradecerá e dirá que comerá depois do almoço. É receita da minha finada mãe, a melhor trufa que você já comeu, meu bem, insistirei, é abençoada pelo nosso Senhor Jesus Cristo! Eu ficaria muito feliz de vê-la provar, só para ver seus olhos, sua reação!
Sempre funciona.
Entre estertores de dor e agonia, vomitará e defecará líquidos ininterruptamente, por 3 dias. Sangue, fezes e toda a imundície que carrega, até a exaustão física e a falência do corpo.
Isso é necessário. Só assim estará purificada e limpa, digna de ir ao encontro do meu Pai.
Para onde, segundo os obituários dos jornais, já foram 18 pecadores.
Cesar Cruz
Fev. 2011
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10 comentários:
Penso que é a primeira vez que venho até seu espaço. O que li aqui gostei. Tem muita cultura e é disso que aumenta o meu conhecimento. Vou ser seu seguidor. Seja meu também em:
www.congulolundo.blogspot.com
www.minhalmaempoemas.blogspot.com
www.queriaserselvagem.blogspot.com
Um abração e tudo de bom.
Cesar,
Li e fiquei tão estarrecida que estanquei parada em frente da tela do computador.
Menino, você está escrevendo cada vez melhor!!!
Beijos para as suas meninas
Carolie
Caro, Cesar, feliz 2011 e família também. A intertextualidade bíblica deste conto que pode se estender mais tarde para uma novela é de uma atualidade que continua me surpreendendo. Você, a cada conto/crônica, continua num crescendo. Isso é bom pra todos nós. Parabéns. Abs. Emerson Araújo de Tuntum - Maranhão.
meu amigo, essa foi boa... isso é bem aquela história né? de se ter fé, mas sem raciocínio...
legal - abraços
xara - ipiranga - sp-sp
Pombas, meu amigo, que conto! Seu melhor texto. Gostei das voltas temporais, das citações bíblicas como referência para os conflitos psicológicos da personagem. Sensacional!
Fiquei apavorado. Não aceito mais "des gourmandises" de estranhos. Eu que não tenho fé, devo me cuidar. Nunca mais comerei trufas, em especial as jóias do Senhor envoltas em papel dourado. Putz!
César, li entre impressionado e encantado. Adorável esse realismo forte, cruel, intenso e maniqueísta até o extremo, conduzido com uma competência ímpar. Isso renderia um romande dos mais espetaculares. Abração! Paz e bem.
Oi, Cesar, algo curioso aconteceu: fui lendo este conto de uma maneira como se eu estivesse vendo e ouvindo esta pessoa, num relato muito comum, o de citar a Bíblia... Muitas pessoas falam assim, você sabe. E foi indo, tudo igualzinho, parecia a realidade.
Mas para meu espanto, o final foi macabro, pô Cesar!! Cada vez que eu pegar uma trufa vou lembrar deste conto, você desbravando mentes doentias. Que gosto terão minhas trufas?
Vá mexer com pessoas fanáticas... Quando a coisa deixa de ser fé e vira obsessão, dá nisso.
Muito bom, parabéns.
Beijos
tais luso
Cesar,
Tenho a impressão de que você sabe muito bem que “As jóias do Senhor” é um conto singular e da melhor qualidade; que, embora longo, o conto prende a atenção do leitor pelo excelente ritmo do texto, qual uma corda fortemente esticada, até o seu surpreendente final, sempre fazendo com que nos lembremos, ao longo de sua leitura, de um Kafka e de um Poe. Tudo começa a ficar claro, de que Lenita estava doida de atar, no momento em que descobriu que a mão que estava no seu ombro não era a do doutor Milton, mas do Lucifer; e que, por descobrí-lo descrente, dele despediu-se presenteando-o com aquela bomba-relógio, as suas trufas - seu doce envenenado com o misterioso ingridiente Imidacloprid; e que, por ter testado a sua fé no Senhor, em Seu nome o médico foi mais um, dentre os dos 18, que morreram comendo as “As Jóias do Senhor” - as trufas envenenadas. Por fim, do ponto de vista da psicologia, o tema foi tratado com um critério irrepreensível. Portanto, Cesar, só posso esperar que outros contos sejam escritos por você com esse mesmo rigor, com essa mesma qualidade. Parabéns.
Grande abraço,
Pedro.
Ola Cesar,
Voce escreve muito bem, mas vou dar-lhe uma sugestão: publica o texto um pouco menor, coloca uns 2 parágrafos (são extensos).
Dessa maneira, as pessoas voltam sempre para continuar a leitura. Que por sinal é uma jóia.
Continua vai em frente.
Ricardo.
nossa o final me surpreendeu ,nem imaginava que ia acaber desse jeito rsrs
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