Todos os dias acordávamos cedo como de costume. A Maria fazia o café, esquentava o leite e passava manteiga nos pães. Eu acordava nossos filhos para que se preparassem. Depois do café, as roupas trocadas e os dentes escovados, saíamos. Eu para a lavanderia e os meninos para a escola. Maria permanecia em casa para suas atividades regulares.
A noite todos estávamos reunidos novamente. Então jantávamos. Posteriormente, cada qual se dedicava aos seus afazeres noturnos. Os meninos às tarefas escolares, eu lia um livro e Maria lavava as louças do jantar. A televisão, assistida ou não, permanecia sempre ligada.
Mais adiante havia os banhos de cada um e, por fim, o sono merecido.
A um homem cabe o trabalho, trazer para a casa o soldo. A uma esposa a manutenção da ordem do lar, o preparo dos alimentos e o cuidado dos filhos. E aos filhos, o juízo e a responsabilidade nos estudos e na boa condução de sua juventude, que se sabe, sempre propensa a desequilíbrios e disfunções.
Todas as coisas estavam em seu lugar em nossa vida, e a cada qual cabia sua parte. E eu entendia que todos estavam de acordo com a ordem das coisas. Uma família é um mecanismo, como meu pai me ensinou, lição aprendida com meu avô. Há de funcionar com precisão se for bem fornida de insumos, substratos e regras claras, que permitam a correta tração de suas engrenagens.
Aparte disto, Maria vinha se queixando que a casa estava muito escura havia algum tempo. Era fato que havia mesmo certa penumbra na casa, e por vezes mal conseguíamos nos ver. Apliquei, assim, nova pintura de tinta branca às paredes.
Todavia, Maria prosseguiu reclamando, e me vi obrigado a intervir.
Fui à cozinha, pousei as mãos sobre seus ombros e olhei nos seus olhos, transmitindo-lhe segurança. Expliquei-lhe que aquela escuridão, que a ela parecia excessiva, era mais aparente do que real, e boa parte se devia ao fato de que o inverno tinha vindo com força naquele ano, e que não deveríamos nos preocupar com aquilo, visto que coisas assim, preocupações infundadas, poderiam quebrar a harmonia da casa e induzir ao rompimento dos estatutos do lar, por parte dos meninos.
Maria então se calou, compreendendo que eu estava com a razão, como sempre estivera.
As coisas corriam bem em nossa família, como esperado.
Todos os dias acordávamos cedo como de costume. A Maria fazia o café, esquentava o leite e passava manteiga nos pães. Eu acordava nossos filhos para que se preparassem. Depois do café, as roupas trocadas e os dentes escovados, saíamos. Eu para a lavanderia e os meninos para a escola. Maria permanecia em casa para suas atividades regulares.
A noite todos estávamos reunidos novamente. Então jantávamos.
Desgraçadamente, como eu alertei Maria, qualquer pequeno lapso pode ser indutor do desvirtuamento, e de fato foi...
Numa manhã, depois que todos havíamos comido nossos pães, tomado nosso leite e escovado nossos dentes, me dirigi à sala e me abaixei para pegar a maleta no canto do sofá, como sempre fazia. Foi então que vi o menino mais velho se precipitando e destrancando, inadvertidamente, a porta que dava acesso à rua. Ainda tentei gritar, alertando-o para que não fizesse tal coisa, mas não houve tempo.
Vi quando a pesada folha rodou nos gonzos se afastando minimamente do batente, deixando entrever o calçamento da rua. Olhei para trás e Maria estava estacionada sob a abóbada do corredor, a boca aberta pronta a proferir a advertência que não proferiu, as mãos paradas no ar num gesto de impedimento.
O menino, conscientizando-se de seu erro, lançou-se contra a porta conseguindo fechá-la. Passou as trancas de aço e se recostou na madeira, os olhos cheios de medo, lacrimejantes, o peito subindo e descendo. Olhou para mim e para Maria, depois novamente para mim. Ninguém disse palavra alguma.
Então lá fora se ouviu um ruído estúpido, descomunal. A casa de repente foi tomada por uma densa escuridão, e sentimos tudo vibrar num sismo poderoso.
O distúrbio, eu disse, me segurando pelas coisas e olhando-o sem rancor, mas com tristeza. O distúrbio, pai, o distúrbio!, ele gritou, chorando, a cara uma máscara congestionada. Maria baixou a cabeça e levou as mãos ao rosto. Nosso menor veio se proteger junto às nossas pernas e ali ficamos por um tempo que não posso precisar.
O tremor produziu a rachadura inicial, que começou a partir da porta e veio ziguezagueando, trincando o chão em uma fenda fina que se abria estalando como gelo jogado na água, até passar por entre nossas pernas e avançar pelas sombras do corredor.
Nunca mais vou me esquecer daquele momento.
Nos seguramos uns nos outros. Lembrei-me do conto de Borges, quando senti o lenço silencioso do estrangulador enrodilhar-me o pescoço.
O menino mais velho, envergonhado, distanciou-se da porta correndo ao nosso encontro. Éramos agora um grupo coeso e forte, mas Maria lembrou que era demasiadamente tarde, o distúrbio já estava instaurado, e eu os abracei com força dizendo que não, não, haveria de ter uma saída.
A rachadura entre nós foi se alargando, e o som agora não era mais de gelo trincado, mas de trovão. Pedaços do assoalho de madeira foram sendo tragados, brinquedos dos meninos que se achavam por ali, um tapete, a mesa do telefone, foram engolidos. Vimo-nos inclinados uns sobre os outros como bêbados, um abismo entre nós, e tivemos que nos soltar para que não caíssemos, e o ruído gutural e contínuo não permitia mais que ouvíssemos nossos choros e lamentos.
Não fosse pela fraca luminosidade do dia nublado que se infiltrava pelo teto e pelas paredes partidas, não conseguiríamos nos ver em meio à névoa cinzenta.
Olhei para baixo e a fenda já revelava um precipício, um vale de sombras que não se via o fundo; e para um lado acabei eu e para o outro Maria e os meninos abraçados a ela, os três ajoelhados; e então ela me olhou nos olhos, profundamente triste, e pareci vê-la balbuciar “o distúrbio, o distúrbio...!” e esticou o braço para que nos tocássemos mais uma última vez que fosse, mas nossos dedos, como o dedo de Deus e de Adão no afresco de Michelangelo, não conseguiriam se achegar, apartados por uma ínfima distância que começou a aumentar rapidamente quando o ronco e o tremor se tornaram mais fortes.
Acachapado, me detive vendo-os se afastarem. Agora já éramos partes de continentes distintos, e eles iam pequeninos ao longe, já sem faces, uma massa única, unidos como um mero borrão silencioso, que logo desapareceu no horizonte.
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Cesar Cruz
A noite todos estávamos reunidos novamente. Então jantávamos. Posteriormente, cada qual se dedicava aos seus afazeres noturnos. Os meninos às tarefas escolares, eu lia um livro e Maria lavava as louças do jantar. A televisão, assistida ou não, permanecia sempre ligada.
Mais adiante havia os banhos de cada um e, por fim, o sono merecido.
A um homem cabe o trabalho, trazer para a casa o soldo. A uma esposa a manutenção da ordem do lar, o preparo dos alimentos e o cuidado dos filhos. E aos filhos, o juízo e a responsabilidade nos estudos e na boa condução de sua juventude, que se sabe, sempre propensa a desequilíbrios e disfunções.
Todas as coisas estavam em seu lugar em nossa vida, e a cada qual cabia sua parte. E eu entendia que todos estavam de acordo com a ordem das coisas. Uma família é um mecanismo, como meu pai me ensinou, lição aprendida com meu avô. Há de funcionar com precisão se for bem fornida de insumos, substratos e regras claras, que permitam a correta tração de suas engrenagens.
Aparte disto, Maria vinha se queixando que a casa estava muito escura havia algum tempo. Era fato que havia mesmo certa penumbra na casa, e por vezes mal conseguíamos nos ver. Apliquei, assim, nova pintura de tinta branca às paredes.
Todavia, Maria prosseguiu reclamando, e me vi obrigado a intervir.
Fui à cozinha, pousei as mãos sobre seus ombros e olhei nos seus olhos, transmitindo-lhe segurança. Expliquei-lhe que aquela escuridão, que a ela parecia excessiva, era mais aparente do que real, e boa parte se devia ao fato de que o inverno tinha vindo com força naquele ano, e que não deveríamos nos preocupar com aquilo, visto que coisas assim, preocupações infundadas, poderiam quebrar a harmonia da casa e induzir ao rompimento dos estatutos do lar, por parte dos meninos.
Maria então se calou, compreendendo que eu estava com a razão, como sempre estivera.
As coisas corriam bem em nossa família, como esperado.
Todos os dias acordávamos cedo como de costume. A Maria fazia o café, esquentava o leite e passava manteiga nos pães. Eu acordava nossos filhos para que se preparassem. Depois do café, as roupas trocadas e os dentes escovados, saíamos. Eu para a lavanderia e os meninos para a escola. Maria permanecia em casa para suas atividades regulares.
A noite todos estávamos reunidos novamente. Então jantávamos.
Desgraçadamente, como eu alertei Maria, qualquer pequeno lapso pode ser indutor do desvirtuamento, e de fato foi...
Numa manhã, depois que todos havíamos comido nossos pães, tomado nosso leite e escovado nossos dentes, me dirigi à sala e me abaixei para pegar a maleta no canto do sofá, como sempre fazia. Foi então que vi o menino mais velho se precipitando e destrancando, inadvertidamente, a porta que dava acesso à rua. Ainda tentei gritar, alertando-o para que não fizesse tal coisa, mas não houve tempo.
Vi quando a pesada folha rodou nos gonzos se afastando minimamente do batente, deixando entrever o calçamento da rua. Olhei para trás e Maria estava estacionada sob a abóbada do corredor, a boca aberta pronta a proferir a advertência que não proferiu, as mãos paradas no ar num gesto de impedimento.
O menino, conscientizando-se de seu erro, lançou-se contra a porta conseguindo fechá-la. Passou as trancas de aço e se recostou na madeira, os olhos cheios de medo, lacrimejantes, o peito subindo e descendo. Olhou para mim e para Maria, depois novamente para mim. Ninguém disse palavra alguma.
Então lá fora se ouviu um ruído estúpido, descomunal. A casa de repente foi tomada por uma densa escuridão, e sentimos tudo vibrar num sismo poderoso.
O distúrbio, eu disse, me segurando pelas coisas e olhando-o sem rancor, mas com tristeza. O distúrbio, pai, o distúrbio!, ele gritou, chorando, a cara uma máscara congestionada. Maria baixou a cabeça e levou as mãos ao rosto. Nosso menor veio se proteger junto às nossas pernas e ali ficamos por um tempo que não posso precisar.
O tremor produziu a rachadura inicial, que começou a partir da porta e veio ziguezagueando, trincando o chão em uma fenda fina que se abria estalando como gelo jogado na água, até passar por entre nossas pernas e avançar pelas sombras do corredor.
Nunca mais vou me esquecer daquele momento.
Nos seguramos uns nos outros. Lembrei-me do conto de Borges, quando senti o lenço silencioso do estrangulador enrodilhar-me o pescoço.
O menino mais velho, envergonhado, distanciou-se da porta correndo ao nosso encontro. Éramos agora um grupo coeso e forte, mas Maria lembrou que era demasiadamente tarde, o distúrbio já estava instaurado, e eu os abracei com força dizendo que não, não, haveria de ter uma saída.
A rachadura entre nós foi se alargando, e o som agora não era mais de gelo trincado, mas de trovão. Pedaços do assoalho de madeira foram sendo tragados, brinquedos dos meninos que se achavam por ali, um tapete, a mesa do telefone, foram engolidos. Vimo-nos inclinados uns sobre os outros como bêbados, um abismo entre nós, e tivemos que nos soltar para que não caíssemos, e o ruído gutural e contínuo não permitia mais que ouvíssemos nossos choros e lamentos.
Não fosse pela fraca luminosidade do dia nublado que se infiltrava pelo teto e pelas paredes partidas, não conseguiríamos nos ver em meio à névoa cinzenta.
Olhei para baixo e a fenda já revelava um precipício, um vale de sombras que não se via o fundo; e para um lado acabei eu e para o outro Maria e os meninos abraçados a ela, os três ajoelhados; e então ela me olhou nos olhos, profundamente triste, e pareci vê-la balbuciar “o distúrbio, o distúrbio...!” e esticou o braço para que nos tocássemos mais uma última vez que fosse, mas nossos dedos, como o dedo de Deus e de Adão no afresco de Michelangelo, não conseguiriam se achegar, apartados por uma ínfima distância que começou a aumentar rapidamente quando o ronco e o tremor se tornaram mais fortes.
Acachapado, me detive vendo-os se afastarem. Agora já éramos partes de continentes distintos, e eles iam pequeninos ao longe, já sem faces, uma massa única, unidos como um mero borrão silencioso, que logo desapareceu no horizonte.
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Cesar Cruz
Fev. 2011
Imagem: O Cubo de M.C. Escher - obra representada em computação gráfica.
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9 comentários:
César, você está se saindo para mim como um dos grandes contistas modernos. A leveza da narrativa junto com a consistência e a força dos personagens e situações formam um "caldo literário" do mais delicioso sabor para quem gosta de ótimos textos. Meu abraço. Paz e bem.
Fala Cesinha,
Como falamos hoje à tarde no churrasco do nosso amigo G, acessei esse conto, aliás bilhante como tantos outros, assim que tive internet disponível. Realmente muito bom!
E não se esqueça, a próxima rodada de cerveja é por minha conta!
Abração
Caro Cesar, endosso as palavras do José Cláudio acima. Você apresenta em "distúrbio" muita maestria.
Parabéns
P.S.: Adeus Moacyr Scliar...
conseguiu falar do "Distúrbio" sem distúrbios, mais uma vez show.
xara - ipiranga - sp-sp
Cesar, um causo fantástico narrado de forma primorosa e que nos transporta para o fim da Pangeia.
Um abraço fraterno da Egrégora: Carrancas Literárias
gostei da rotina escrita em prosa suave
Vejo, a cada conto, um Cesar aventurando-se, como fazem tantos outros escritores verdadeiramente criativos, na busca de algo que cause impacto ao pobre leitor, que, distraído, mal vê o fosso que o espera, ali adiante, no término da história, para tirar-lhe o fôlego.
Grande abraço, amigo.
Pedro.
Olá Cesar,
Um tempinho que eu não passava aqui mas valeu a pena voltar.
Seu conto prende e vai nos levando até o final numa pegada maravilhosa.
Carinhosamente,
Dalinha
Cesar, você é muito bom em crônicas e não está deixando por menos nos contos: vai nos levando ao final quase com o coração na boca...
Parabéns, sempre muito imaginativo!
Beijos
Tais Luso
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