Foi tudo tão rápido, tão inesperado.
Recordo-me que aconteceu logo após a Marta ter me dito, pelo telefone celular, que um bom presente poderia ser uma blusa. Ela disse assim: “Orlando, acho que uma boa blusa, bem bonita, daquelas com mangas discretas, a mamãe irá ado...” Foi bem aí o momento. Bem na hora em que eu pisava na guia com o meu pé esquerdo, depois de atravessar a rua, no exato instante em que a Marta iria completar a palavra adorar, foi aí que tudo aconteceu.
Naquela ínfima fração de tempo senti meu corpo ser arrancado do chão por um violento abalroamento que me alavancou para o alto. O impacto, que senti a partir da parte posterior das pernas, depois quadris, costas e nuca, como numa sequencia de socos desferida por um boxeador muito rápido, me catapultou no ar; frágil, frágil como uma folha que o vento toma de chofre e joga longe. Subi e girei no vazio.
Uma dor lacerante percorreu minha coluna e se irradiou pelos meus braços e pernas. Toda a paisagem sumiu e eu fiquei a ver primeiro o céu azul sem nuvens, depois voltaram as casas, os carros na rua e as pessoas invertidas. Nessa hora me veio à mente a imagem da Marta e do Paulinho, tão pequeno meu filho, e a realidade do que tinha me acontecido foi como que subitamente revelada a mim. Então pensei que morreria quando ficou evidente que fui atingido brutalmente, e que, depois que eu terminasse meu voo, despencaria no duro chão da vida real, de cabeça. Com sorte eu ficaria apenas inválido, mas achava mesmo que por dentro de mim já havia coisas vitais fraturadas, partidas, soltando líquidos, hemorragiando... Eu sentia as dores pungentes e caloríficas enquanto a imagem do meu menino sorridente se fixava na minha retina; a visão que tive dele naquela mesma manhã na porta da escola, te amo, papai, ele disse, e me jogou um beijo com a mãozinha pequena, quatro anos, e me veio a horrível suspeita de que fora a última vez aquela; e lamentei, inconformado, como foi isso me acontecer? Aquilo não era dia para ninguém morrer, havia claramente ali um tremendo equívoco do destino. Não eu; eu não! Aí vi a rua e a guia, a sarjeta e a água barrenta que descia da construção carregando um maço de cigarros amassado; mas agora a paisagem era distinta, o posto de combustível estava num ângulo oblíquo a minha direita, e tudo do avesso de novo, e eu já não sabia para onde rodava, e as coisas estavam novamente num impossível teto, e em meio à desorientação meus ouvidos captaram o ruído comprido de uma freada, e uma brisa fresca me atingiu o rosto, quase gostosa, contrastando com a dor quente, e eu já novamente de posse da visão do céu e da outra calçada, e já sentia-me precipitar com velocidade e peso em direção ao chão, como uma pedra solta de um telhado; eu conhecia física e sabia que o peso se multiplica exponencialmente com a força da gravidade; 300 quilos. Lembrei-me de um documentário na televisão. 300 quilos, 300 quilos sobre crânio e coluna, força esmagadora, e fui tomado da insuportável certeza de que morreria, e, então, repentinamente me veio a animadora ideia de que aquilo tudo poderia não ser verdade, e me enchi de esperança, seria um sonho, sim!, um desmaio, um sei lá o quê, algo psíquico, metafísico, enfim, qualquer outra coisa que me afastasse da ideia real do fim, e o chão agora tão perto e minhas mãos e braços que eu nem sabia sequer onde estavam para que os usasse como proteção, e um nó na garganta do choro contido da autopiedade, da iminente desgraça que se abatia sobre minha vida, sem aviso, e o asfalto, agora um teto muito próximo, e a velocidade estúpida da queda, o vento de pára-quedista entrando pela minha camisa, e as vozes, e os gritos, e um ronco de motor, e cheguei a ver num repente a face horrorizada de uma menina de mão dada com a mãe, e me lembrei da minha mãe, velhinha, dona Emília. Choraria tanto, a dona Emília. E meu irmão, meu irmão Alberto, que viria correndo para me segurar no ar se soubesse; e eles todos, meus amados, nem supunham que tudo, já naquele exato átimo de tempo, estava inexoravelmente encerrado para mim, e uma sensação de injustiça me revoltou e revolveu as profundezas do meu ser quando eu entendi que meu pequeno filho, inocente, choraria aquele chorinho de criança pequena que crê que tudo vai se resolver após o pranto, sem entender ao certo a ordem das coisas, mas que logo perceberia que dessa vez nada se resolveria, e não haveria mais papai para ele então, e não haveria mais fim de semana de passeio em família, nem aniversário, nem compra de presentes para a vovó, nem para ninguém, nem beijo nem abraço, nem jogo de bola nem nada; e eu finalmente tive a consciência do horror apavorante e intolerável do nunca-mais. Nunca mais!, e lamentei profundamente esse tenebroso nunca-mais, esse verdadeiro inferno dos homens que andam sobre a terra, e desejei poderosamente poder voltar o tempo, desejei que de alguma forma aquilo não estivesse acontecendo, foi um engano, um engano!, eu gritava por dentro, e minha testa de repente se chocou contra o chão e meu pescoço se entortou bruscamente numa flexão insuportável, e eu senti, rendido, meus olhos se apertarem e uma descarga elétrica percorrer minha espinha e explodir nos meus pés e mãos em milhões de cores e sinos agudos e paralisantes; e os meus queridos, agora eu os via nitidamente chorando sobre meu corpo emoldurado em flores, justo, vestindo terno e caixa, e eu não podia fazer nada, não se pode voltar o relógio da vida, esse relógio que não permite arrependimentos, e como poderia algo assim ter me acontecido, meu Deus!, coisa que só acontece com os outros, e há apenas dois segundos tudo estava em perfeita ordem, e agora os planos todos e as alegrias esperando para serem realizadas, e eu com apenas 31 anos morrendo, como era possível tudo ser modificado, assim, tão rápida e definitivamente, e eu já sentia as minhas mãos geladas, entrelaçadas sobre meu peito rijo, e meus olhos de pálpebras duras e cerradas, os chumaços de algodão nas minhas narinas, os lábios brancos, marmóreos, que não emitiriam mais opiniões, nem lamentos, nem risadas, e eu estaria disponível para a maldita exposição final, exposto à apreciação das pessoas que estariam ao redor sem saber qual atitude tomar, onde enfiar as mãos, incomodadas com o contratempo, desagradável é velório, pensariam, ansiosas para partir, para ir tomar um café lá na rua, para não permitir que o incidente atrapalhe o curso de seu dia, de suas alegrias, e todos aqueles prosseguiriam pela vida levando suas tarefas e afazeres, e os rostos amados, os poucos, se debruçariam e sobre mim e estes sim pingariam lágrimas de verdadeira dor, e eu ali, encerrado, morto, mas simplesmente consciente do fato de que não havia nada, absolutamente nada que eu pudesse fazer a respeito.
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Cesar Cruz
Março 2011
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Cesar Cruz
Março 2011
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8 comentários:
Lacônico e sem "happy end"...
Como a vida é!
Abraços Cesar.
é assim mesmo, isso acontece muito mais do que a gente imagina, por isso que, de alguma forma, temos sempre que estar "meio" preparados. abraços.
xara - ipiranga - sp-sp
Cesinha
Demais essa sua forma de escrever que produz uma torrente maluca de imagens na minha cabeça. Vejo a cena, me vejo na cena, vivo a dor e sofro a cada conto seu que revela o sofrimento e a solidão do ser humano que é abatido por uma desgraça qualquer, obra do acaso.
Demais!
abs,
H.L
Uauuuuu...as palavras virando frases e as frases constituindo o enredo e o enredo foi tomando forma e se transfigurando em imagens.
Q texto intenso. Não deixa respirar, nem sentir, permite entretanto experimentar a sensação angustiante deste narrador-personagem. Seria assim o milésimo de segundo que antecede a morte?
Como sempre arrebentando.bjs
Olá César Cruz, tudo bem?
Moro no bairro do Cambuci e sou leitor do Jornal Cambuci/Aclimação e gosto dos seus textos.
No último, sobre a morte na praia,
em alguns momentos me senti no local, vendo o corpo, percebendo as pessoas e sentindo alterações de humor à medida em que
se alternavam os comentários dos personagens, e é algo possível somente quando o texto é de qualidade.
Hoje resolvi visitar seu blog e achei interessante o texto "O ilustre", que discorre sobre a solidão do escritor. Bem legal!
Um abraço,
William
Cesar,
O seu conto “Dois segundos” está muito bom, e foi escrito com tal destreza que prendeu minha atenção do começo ao fim, deixando-me atento aos pensamentos que passaram pela cabeça de Orlando, com as dores físicas ocasionadas pelo choque que sofrera, e pelas dores da alma por saber que deixaria filho órfão e mulher viúva, justamente eles que no velório derramariam lágrimas de dores sinceras, sem a pressa de sair para tomar um cafezinho na esquina e continuar a vida normal, como fizeram outras pessoas que lá estiveram, quase que protocolarmente. Parabéns, amigo.
Grande abraço,
Pedro.
Oi, Cesar:
É isso: um conto tenso que vai nos arrastando até o desfecho. E quantas vezes já pensei nisso que você narrou bem no final! Imaginei a cena como sempre o fiz: sobre nós, lágrimas de poucos, dos nossos filhos, pais, marido... Aquela dor imensa que só atinge os bem próximos. Pelos cantos, conversas, sorrisos tímidos, disfarçados de dor. Não, não acredito, também.
Esse teu conto é o espelho de nossa mente, dos nossos medos e angústias do cotidiano. Também já pensei nos que ficam. É doloroso. Pelo menos uma vez já passamos por isso, e se repetirá sempre.
Teus últimos contos são tensos? São. Mas a vida é isso, as alegrias não são muitas comparadas ao que enfrentamos diariamente. Gostei, sim.
Beijos, amigo.
Tais Luso
NOSSA! perfeito , incrivel , esse segundos antes da morte , como vai descrevendo , como vai ficando tenso , suspense e agonia legal
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