A Michele do futuro


Michele e papai numa foto que vai vencer o tempo - Ilhabela, dez. 2010


Crônica publicada no Jornal do Cambuci & Aclimação - AGO 2011



Era uma manhã de sábado, e flagrei a Michele, minha filha de 3 anos, numa pose especial. Subitamente linda e casual, parecia uma moça crescida, uma mini-mulher ali em pé, debruçada na sua caminha, compenetrada folheando um dos seus livros, enquanto com a outra mão segurava o queixo; uma perna estava estendida e a outra em ângulo, vestia uma calça justa de algodão inteira estampada com flores grandes, uma camiseta e uma faixa na cabeça; um raio de sol que se insinuava pela janela iluminava seu corpo e uma faixa flutuante de poeira, dando à cena uma dimensão atemporal.

E eu e a Vanessa nos pegamos juntos olhando pra ela; e a Vanessa observou, num vislumbre exato, rasgo de percepção, que aquela pose tão adulta poderia se repetir indefinidamente no futuro da vida da Michele, em muitas idades, como naquelas sucessões de cenas de filmes, em que muitos anos se passam enquanto a música toca, com o personagem no mesmo lugar, mas que de forma sutil vai se modificando e que, num repente, se vira para a câmera e então se percebe que não se passou um mero instante, mas muito, muito tempo.

Então imaginei a Michele se virando repentinamente para nós, já uma adolescente apressada, sempre pronta a deixar os pais para ir fazer suas coisas mais interessantes. Ou então pouco mais velha, uma década adiante da adolescência, talvez uma mulher de trinta, com aquela imbatível beleza balzaquiana, e naquela virada diria algo como “Papai, mamãe, passei mesmo só pra dar um beijo em vocês, mas já vou indo que o Douglas está sozinho em casa com as crianças”.

A verdade é que o tempo urge e não se pode segurar o furioso escoar dos dias. Sei disso muito melhor agora que cheguei aos 40. E como não se pode conter a areia dessa ampulheta, tenho procurado registrar cada instante que posso da vida da Michele.

A Michele terá centenas, senão milhares de filmes e fotos para ver e assistir. Os filmes são os meus prediletos, pois ali há som e movimento. São produções curtinhas, de 1 a 3 minutos, que faço com ela o tempo todo, em casa, tomando banho, brincando de luta na cama comigo, arrumando o cabelo com a mamãe, chegando da escolinha de perua, de cavalinho, no parque, no carro, cantando, dançando, chorando e fazendo manha, dormindo, enfim. Em cada um desses filmes surge a minha voz dizendo data, hora e local, e narrando o que vejo. São tantos arquivos digitais que já os armazeno em dois HDs externos.

Fico imaginando como seria se hoje de repente eu descobrisse num baú qualquer uns filmes da minha primeira infância. Estou me imaginando agora sentado de frente pra televisão, preparando o DVD, uma taça de vinho, e subitamente, a um clique no controle remoto, vendo se materializar diante dos meus olhos um Cesar de dois, três, quatro anos, com meu pai e minha mãe falando e andando, ainda jovens, depois a minha avó, ou os tios e primos num almoço; talvez um cão que já tenha sido esquecido; os objetos e os sons daqueles dias, as imagens animadas dos lugares em que moramos; e de olhos fechados eu me vejo desta vez em primeiro plano, com os ruídos de uma São Paulo que já se foi por detrás, ou talvez andando pelo Zoológico, ou num parque que já virou um prédio faz tempo, quem sabe uma rua de paralelepípedos que já derramaram asfalto, e os carros antigos passando ao fundo, e de repente um homem que aparece com uma moça, de mãos dadas, namorados, e somem para sempre, desconhecidos, na cena e no tempo; enquanto isso eu, no colo, dou agora um tapa na careca do seu Aloisio e desabo numa risada cheia dos dentes de leite que eu tive e nem me lembrava...

Quanto eu não pagaria para ter um filme assim para assistir hoje, para mostrar à minha filha, à minha mulher? Reuniria todos os amigos num churrasco e poria no telão!

Hoje os mais antigos já são surpreendentes. Dia desses estávamos eu e ela assistindo a um deles, ela com um ano, numa tentativa capenga de corrida atrás do gato que tínhamos, correndo e rindo, sem dentes, babando no babador preso ao pescoço. Quem é, papai?, ela me perguntou. Você, eu disse. Ela morreu de rir, incrédula. "Como posso ser eu lá se estou aqui?", suponho que ela tenha pensado.

A verdade é que esses filmes encerram um curioso contrassenso existencial: são uma recordação única e preciosa para o futuro, e simultaneamente um relembrar perene do horror da gente à finitude de nossas próprias vidas. Um filminho desses é a apreensão de um momento que não volta mais, de um tempo desmaterializado, esvaído, fugidio; a imagem da areia caída para sempre na âmbula inferior dessa ampulheta que não se pode desvirar.

“Dá tchau pra Michele do futuro, filha!”, digo a ela, sempre que estou para encerrar um dos nossos filminhos.

“Tchaaaau, Michele do futuuuuro!”, ela diz, agitando aquela pequena mãozinha em direção à câmera do papai.

E eu sempre a imagino assistindo a isso, lá no futuro.



 
Cesar Cruz
Julho 2011
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15 comentários:

Paula: pesponteando disse...

Eu simplesmente adoroooo criança. Meus sobrinhos, tenho 9 já cresceram. Só me restam um de 6 anos...Ouvir vc relatar os momentos da Michele me traz uma saudade...Sem contar q adoro saber do mundinho da Mi atraves da sua escrita emocionada de pai babão..rsrs

bjs

EMERSON ARAÚJO disse...

Cesar, que poesia em prosa, cara. Há na bíblia uma premissa que diz o seguinte: "...os filhos são os tesouros dos pais." Michele deve ser este teu tesouro e de Vanessa, também. E você com este olhar de cronista/poeta acaba de transformá-la em matéria de poesia/crônica mais uma vez.

Abs.

Emerson

Anônimo disse...

Cara, Vc me deixou muito preocupado, do negão só tenho algumas fotos antigas e outras passageiras de celular que já se apagaram para outras que se apagarão, agora com 15 anos a única coisa que faço questão de realizar todo dia e dizer-lhe que lhe amo.

abcs - xara
sp-sp - ipiranga

Pedro Luso de Carvalho disse...

Amigo Cesar,

Vou aproveitar o comentário do Emerson Araújo para subscrevê-lo. (Antigamente se dizia: "Faço delas, minhas palavras".)

Apenas acrescento que a Michele não apenas curtirá as boas lembranças de sua infância vendo os filmes dela feitos pelos pais corujas, mas também, e sabe-se lá com que força, curtirá o que sobre ela o pai escreve.

Grande abraço,
Pedro.

Elaine Formagio disse...

Querido Cesar,

Como é gostoso ler suas palavras de sabedoria. Aproveite cada instante de sua pequena Michele, pois quando você menos imaginar ela se tornará uma linda jovem, depois uma linda mulher, no entanto, para os seus olhos ela sempre será a sua pequena Michele que você e a Van amam tanto.
Amo muito vcs.

Bjs
Elaine

Regina Cláudia disse...

Cesar,

Gostei da crônica "A Michele do futuro", principalmente a frase "...não se pode conter a areia dessa ampulheta", grande filósofo, hein?

Gostei!

Bjos
Regina

Gisele Aidamos disse...

Oi, Cesar!

Li sua crônica no jornal e me emocionei. Você realmente traduziu nela a emoção de se estar diante da rica simplicidade do "seu" Ditinho. É isso aí, Vagner: vida longa a seu Ditinho!!

Parabéns, Cesar.

Lena Saguia disse...

Oi.

Gostei muito do causo, realmente penso que é muito legal ter esses videos.

Sempre pensamos em fazer isso com a Duda, mas é só pegar a maquina fotográfica ou até mesmo o celular, ela fica toda envergonhada.

A Michele vai gostar de se ver com certeza, mais cedo ou mais tarde.

Muitos beijos,

Lena

Marcelo Lopes disse...

Fala Cesinha,

Com certeza esses registros proporcionarão agradáveis momentos para ela no futuro.

Dica: Registrem-se também (apareçam sempre nos vídeos, você e a Van) e aproveitem bem esses bons momentos, pois com a correria da nossa labuta diária, a areia dessa implacável ampulheta cai mais rápido do que somos capazes de perceber...

Grande abraço!

Marcelo

Lúcia Bezerra de Paiva disse...

Que bom seria que todos os pais
pudessem, e se interessassem, em registrar seus filhos, para constituir o seu histórico de vida,
pela imagem,...os filhos agradeceriam.
Bela crônica, Cruz, adoro rever os vídeos com meu único filho, em várias idades. Ele, também gosta.
Escrevo, sobre a história de minha família,ascendentes bem antigos, e como lamento não possuir fotos de todos...

Gosto, dos seus causos...
Um abraço

Caca disse...

Cesar, entre tantos bons motivos para se fazer um registro histórico de nossas vidas está o do potencial que eles levam para o futuro de nos resgatar de qualquer crise existencial. Acho que isso é um pouco a função da história também, enquanto auxiliar da psiquê humana. Quisera eu ter minhas lembranças de infancia guardadas fora da memória. Uma vez deu um surto de pulgas na minha casa e havia um cômodo onde o cachorro dormia e lá também ficavam guardados todo o material escrito e fotográfico da família. Minha mãe numa fúria e impotente contra a praga, ateou fogo no barraco. Perdeu-se quase tudo de registro. Saiba que sua filha vai lhe ser eternamente grata por isso. Adorei! Abração. paz e bem.

Tais Luso de Carvalho disse...

Oi, Cesar, muito bonita esta sua crônica; que Michele assista aos filmes mas que leia, também, nas entrelinhas o amor dos pais e a dedicação em tempo integral. Tenho muitas lembranças e filmes, e fico feliz porque neles estão meus pais quando jovens e toda a família. São lembranças que formam-se em elos até a idade adulta. E daí segue.

Parabéns, principalmente pelo presente que jamais terá outro igual para Michele.

bjs
Tais luso

ROSANA COSTA disse...

SIMPLESMENTE LINDO....TENHO UMA MENINA LINDA DE 11 ANOS....QUE É TUDO NA MINHA VIDA...MINHA RAZÃO DE VIVER...MEU PRESENTINHO DE DEUS...É ISSO QUE NOS DAR FORÇA A CADA DIA...PARABÉNS!!!

Anônimo disse...

Cezinha, gosto muito de ler, mas não sei fazer críticas ao que leio. Às vezes leio alguma coisa que acho o máximo e depois vejo um entendido no assunto dizendo "Péssimo, miserável, fraquíssimo".
Assim, não me atrevo a classificar o que leio ou quem leio, a não ser que seja para amigos que se rirem de mim, não me preocuparei nem um pouco.
Bem, o fato é que considero ser muito pessoal e subjetivo a classificação de escritores e obras. Acontece que gosto de tudo o que me toca, e acho incrível que tudo o que leio seu me toca demais. Sempre acabo seus contos ou gargalhando ou muito emocionada, chorando de verdade, seja pela história em si, ou seja pela forma como você escreve, mas nunca indiferente. Nunca.
Obrigada pelas emoções que você me causa! Pra mim você é o melhor escritor do mundo!
Beijos, Yeah.

Gabriel Fernandes disse...

Você amadureceu, meu velho. A entrada nos "enta" fez bem a você, fez bem à sua prosa. Percebi que você abandonou, pelo menos por ora, o tema morte e saltou para a outra margem desse rio turbulento: a vida. A Mi faz muito bem a você, isto sim.
Abraço,
Gabriel