A Bebida Mata


Gravura de Osvaldo Goeldi


Minha irmã Telma, que era a única que sabia o que eu vinha passando na mão dele, foi quem me deu a ideia. Não tem erro, ela falou, você faz do jeitinho que te falei e depois sai que nem louca pela rua, com o pano de louça na mão e um prato na outra, pingando detergente, e gritando desesperada, socorro, pelo amor de Deus, acudam meu marido, você vai berrar isso bem alto, enlouquecida, aí bate numa porta, numa outra, e as portas vão abrir e vai sair homem de cueca, mulher calçando chinelo, até criança, que a essa hora ainda tem muita acordada, e vai juntar gente, e você chora e treme, descabelada, e de repente solta o prato no chão que vai estourar e agravar o drama da coisa, e aponta pra porta aberta da sua casa dizendo, meu marido, meu Deus, meu marido caiu, e você soluça e chora, meu Deus, meu Deus, ele bebe muito e caiu, acho que se machucou! E uns vão te amparar e alguém vai buscar um copo dágua com açúcar, enquanto uns tantos vão correr lá conferir, que essas vizinhanças são sedentas por desgraça e sangue pra animar as vidinhas bestas que eles têm, gente que vai largar com prazer o jornal da noite e se aglomerar na sala da sua casa, às dezenas, e vão mexer no Orlando, virar o corpo dele pra cima, encher tudo de sujeira e digitais, pisar na poça de sangue e deixar mil marcas no local acabando com qualquer chance da polícia conseguir fazer algum tipo de perícia lá, caso cogitem isso, o que me parece bem improvável.

Gostou? Vai por mim, eu assisto aqueles documentários de medicina forense do Discovery, sou quase uma perita!


Gostei sim da ideia da Telma, mas fiquei dias pensando nos detalhes todos, se eu teria coragem, se alguém podia desconfiar. Enquanto isso ia aguentando os xingos dele, os tapas humilhantes que ele me dá na cabeça enquanto me chama de vaca imprestável, fala que a comida está um bosta, que eu estou gorda que nem uma porca.

Ninguém merece viver assim.

  
   *



Um mês depois, numa certa noite, ele chegou do bar quase às 11h, bêbado. Apontou na porta da cozinha, se apoiando no batente, e me olhou com um sorrisinho de desprezo. Aí, gorda, ele disse, e gargalhou. Fiquei estática olhando pra cara dele, sem dizer nada. Aí que ele riu mais ainda, de jogar a cabeça pra trás, e repetiu aí gorda, rá, rá, rá! Aí gorda! Rá, rá! Abriu a geladeira, pegou uma garrafa de cerveja, um copo e foi pra sala rindo da minha cara. Nem mexeu nas panelas, que já estavam com a janta pronta.

 


Meia hora depois terminei de lavar a louça e quando desliguei a água percebi que da sala só vinha o som da vinheta do jornal. Nesse dia ele nem pediu a janta, que ficou intocada. Eu também não comi nada, tamanha a ansiedade.


Certas coisas nunca mudam. Ele estava dormindo sentado no sofá com a cabeça jogada prá trás, o gogó do pescoço olhando pra mim, o copo de cerveja vazio na mão. Tomou uma garrafa inteira em menos de meia hora, o cachorro.



Respirei fundo duas vezes e soltei o ar devagar, olhando pra ele ali. Fui na cozinha e peguei o rolo de papel toalha e pus em cima da TV. Puxei umas folhas e com elas tirei com cuidado o copo da mão dele. Segurando com o papel, pelo fundo, bati a borda no chão bem em frente ao sofá. Deu uma trincada boa e ficaram duas pontas bem afiadas. Coloquei na mão dele e, com a minha segurando por cima, levei até encostar as lascas afiadas bem no gogó. Empurrei duma vez, com as duas mãos. A pele fez um estalo seco e o vidro entrou fundo. Ele deu um pulo que nem touro de rodeio e arregalou os olhos soltando um grito aguado, frouxo, mas eu montei em cima dele e mantive a pressão, os olhos enormes olhando pros meus, acho que não me viam, viam através de mim, já pra outro mundo. Empurrei de novo, mais fundo, com o peso das costas, e o sangue desceu grosso, escuro pela camisa, e ele foi virando os olhos pro teto, a língua saindo pela boca aberta e uns ruídos líquidos vindo da garganta, até que parou.

Por pouco não sujei minha roupa de sangue.



Desmontei dele e me encostei na parede, meu coração saltando. No jornal o Willian Waack falava sobre as eleições nos Estados Unidos e as taxas de desemprego dos americanos.

Tirei mais um monte de folhas do rolo de papel toalha e limpei bem as mãos e os dedos melados. Depois peguei ele pelos dois pulsos e puxei forte pra frente. Quase destronquei as costas. Ele veio até a beirada do sofá, a cabeça de lado e o copo enfiado no pescoço. Puxei de novo e ele caiu pro chão de joelhos, depois desabou de frente, que nem um saco, de cara no piso frio.



De repente me peguei pensando que ele morreu sem jantar a janta nojenta da gorda aqui. Olhei ao redor pensando no que mais tinha que ser feito. Recolhi as folhas de papel toalha e dei descarga, depois conferi o sofá, sem nem um pingo de sangue, o que seria mortal. Pra finalizar dei uma boa empurrada na mesa de centro, enrugando o tapetinho que fica embaixo.



Lavei bem as mãos com detergente, peguei um prato molhado do escorredor e saí pra rua com prato e pano na mão, como a Telma ensinou, gritando socorro, pelo amor de Deus, me acudam!



Ainda bem que tenho vizinhos bons. As pessoas surgiram que nem formiga farejando doce. Juntou uma multidão na sala de casa. Fiquei lá da calçada choramingando e esperando, amparada por um monte de abraços de calma e conforto.



Depois de quinze minutos de entra e saí na minha casa, vi quando o Resgate chegou e dois paramédicos entraram correndo e expulsando as pessoas de lá. A multidão se empoleirou na porta pra espiar.



Logo depois o seu Clésio, marido da dona Jandira, surgiu do meio do povo com mais dois homens da vizinhança, e vieram na minha direção, avançando sérios, como oficiais de uma guarda.


Você vai ter que ser forte, foi o que o seu Clésio me disse, pondo a mão carinhosamente no meu rosto.





Cesar Cruz
Fev 2012

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6 comentários:

Anônimo disse...

cruzes Cruz, conclusão: morreu por causa do copo.

conheci uma família que aguentou "um pai de família" neste drama por mais ou menos uns 35/40 anos, morreu a pouco, coisa de um ano e meio dois, não tiveram coragem de fazer nada neste sentindo, somente a coragem de suportá-lo ao término, pelo contrário a filha mais nova, ainda assim o amava muito, claro, acredito que Ele também a amava, mas em fim, a boa e velha fórmula, quem somos nós para falarmos alguma coisa...

abraços - xara
ipiranga - sp-sp

Henrique Lanes disse...

Cesinha

Sempre o mesmo tema, mas com variações e surpresas infinitas. Excelente.

Gostei do comentário dúbio que ela faz: "ninguém merece viver assim".

Marcas sutis de um grande escritor!

Abço
HL

Anônimo disse...

hahaha!!!

Adorei, muito bom.

Como sempre eu consigo montar todas as cenas mentalmente, com sons, personagens, cores, objetos, enfim...

Valeu César!

Natália Cassiano disse...

Oi Cesar

Adoro seus contos
O que eu mais gosto é do tom de realidade. Você descreve tudo na visão do personagem-narrador, com sua fala própria, revelando traços de personalidade. Dá para imaginar a pessoa me contando os detalhes sordidos. A vejo nitidamente, mesmo quando não existem muitas características físicas. Os traços na linguagem são tão fortes que desenham a pessoa para quem lê.
Porém, como espectadora de seus contos, ainda torço para ver um desses assassinatos acabar mal, Algo sair errado por um descuido simples, uma ironia do destino, por algo tão improvavel que beire o ridículo.
Acho que to muito azeda ultimamente, to torcendo contra o bandido e o mocinho-vingador

Parabens pelo conto!

Bjo
Deva

Gabriel Fernandes disse...

Muito bom, meu velho. Não gosto do tema, mas reconheço e valorizo um escrito com qualidade.
Abraço

Tais Luso de Carvalho disse...

Credo!! Nossa Senhora... rsr

Olha, Cesar, o negócio foi muito bem bolado, mas macabro, não? Esta preparação toda, a narrativa do sórdido da simulação, e que vira realidade...

Mas esse relato sobre as consequências da bebida nos lares, destruindo famílias inteiras e deixando sérias sequelas, existe e muito. E não sei como milhões de mulheres aguentam coisas assim, esta convivência terrível, esse menosprezo, essa humilhação.

O forte de seu conto - além da trama que nos leva meio aflitos até o final -, foi o recado que você deixou de uma sociedade doente, e de lares destruídos por tudo que já conhecemos.

Parabéns!
Beijos
Tais Luso