Saudades Delas

Sérgio Bonson - Desenho a lápis



uando eu era criança, por todos os cantos da cidade, havia várias delas. Eu nunca soube por quê, mas elas pareciam preferir ficar próximas aos telefones públicos, ou junto às bancas de jornal. Às vezes, também podíamos vê-las trabalhando sozinhas, em algumas esquinas estrategicamente escolhidas.

Era líquido e certo encontrá-las, em abundância, no centro da cidade, perto dos antigos edifícios de negócios. Os motivos eram bastante óbvios...

Uma vez estive num lugar e havia três delas, com seus colos protuberantes e empinados, posicionadas de costas entre si, umas para as outras.

Pequeno, passeando com a minha mãe, lembro de ter que olhar para cima para vê-las por inteiro. Eu gostava delas.

Um dia, moleque de uns 6 anos, não sei o que me deu, larguei a mão da minha mãe na rua, corri e me agarrei à perna rija de uma delas. Mamãe quase me matou.

Diziam que elas guardavam em seu âmago os maiores segredos, ou as mais prosaicas superficialidades das vidas comuns de seus clientes. E era verdade.

Repletas de tudo, ou de nada, de qualquer forma havia nelas todo um quê de mistério, de uma escuridão que parecia jamais ser revelada.

Quando eu fiquei maiorzinho, meu pai me disse que havia um certo tipo de homem que, toda a madrugada, pouco antes do sol nascer, passava recolhendo tudo o que cada uma delas tinha conseguido durante dia e noite de impávida labuta. Achei injusto aquilo.

Os anos se passaram e eu cresci.

Uma vez, bêbado, depois de uma festa de juventude, acabei a noite agarrado a uma delas, e vomitei em seu pé azul.

Até há uns 20 anos ainda se achava uma ou outra delas plantadas por aí, quase mendigas, disponíveis. Mas com a internet e todas as facilidades que há para o contato e o encontro, quem precisará de uma delas hoje em dia?

Mas tempos ainda piores vieram, e elas sofreram na mão dos criminosos, especialmente na calada da noite. Algumas foram mortas a pauladas, feitas em pedaços. Certa vez vi uma foto no jornal de uma delas com o bucho aberto, e tudo pelo chão.

E assim, pouco a pouco, elas foram sumindo.

Ontem, depois do almoço, por determinação da empresa, saí decidido a achar uma delas nas imediações do escritório. Rodei pelas calçadas próximas, olhos atentos, perguntei para as pessoas, para os lojistas...

Certas indagações deixam as pessoas desconfiadas. Uma senhora, que me pareceu ofendida, nem se dignou a parar o passo para me responder. E um grupo de mocinhas adolescentes, papeando diante da lanchonete, riram de mim quando perguntei se sabiam onde eu poderia achar uma delas.

Estariam elas definitivamente extintas? Ah, e de pensar que minha filha pequena nunca viu uma delas!

O céu escureceu repentinamente e começou a chover. Corri de uma marquise para outra, os olhos ainda esperançosos, procurantes.

Já quase desistindo, tirei do bolso aquele pequeno envelopinho que eu carregava, especialmente destinado para usar com uma delas.

Como eu faria para satisfazer aquela necessidade? Não era questão de um mero querer, eu precisava de uma delas!

Na saída do Metrô Vila Mariana, quase me dando por vencido, eis que avisto uma, estava na calçada do Colégio Madre Cabrini, escondidinha, encostada num poste.

Fui me aproximando e elucubrando. Era uma delas, sem dúvida, porém envelhecida e cansada, solitária, maltratada pelo abandono, pelo desinteresse de todos.

Parei frente a frente com ela.

Calado e sem rodeios, como se fazia no passado, saquei o pequeno envelope do bolso. Usando os indicadores e os polegares, com a lembrança da precisão de um certo método que eu dominava, cuidando para não errar a pontaria, apoiei a extremidade na cavidade escura, oculta por debaixo da pequena calha protetora e, num único e preciso lance, arremessei o envelope pra dentro da velha caixa dos correios.

Pelo jeito, a última solitária representante de uma espécie em extinção.


Cesar Cruz
Mar/ 2014




2 comentários:

Anônimo disse...

Depois apanha não sabe porquê né? Mas por incrível que pareça, não me pergunte por que, existe uma na esquina da minha rua, aqui nas imediações só conheço duas, uma delas, óbvio, em frente ao correio, a outra na esquina da minha rua. Esses dias até falei pra Soraia a razão de ser lá a existência dela, mas não obtive resposta.

abraços
xara

obs: tentei acertar na regra dos "porques", mas não garanto nada....ehehe

Anônimo disse...

Cesar, estava aqui a ler seu texto para a Soraia e elucubrando se foi vero que vomitou ao pé azul dela, a Soraia, muito ninja que é quase matou a charada no primeiro parágrafo mas acabei por iludi-la até o final.

abraços - xara