Os Campeões do Feicibuqui



Tivesse Álvaro de Campos vivido hoje, Poema em Linha Reta teria sido escrito para retratar a realidade da vida feicibuqueana.


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana.
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia.
Que contasse não uma violência, mas uma covardia!


A Shangri-la, que James Hilton se enganou achando que fosse nas montanhas do Himalaia, não é lá, é aqui, ao alcance do meu e do seu computador, azul como um céu sem nuvens sobre uma praia de verão na Flórida. Um oásis de felicidade e sucesso, o nosso novo universo paralelo.

Segundo o historiador da Unicamp, Leandro Karnal, “a classe média tem aspirações de elite, mas enfrenta uma realidade de declínios”. Somos todos obrigados a um sucesso que não somos capazes de atingir. Ninguém mais pode ser o que de fato é, todos têm que ser, sem exceção, felizes e exitosos. Eis a nova hipocrisia.

A moça escreve lá “uma cervejinha merecida depois do trabalho”, e a foto mostra não uma cerveja qualquer, claro, mas um rótulo importado. Pode reparar, ninguém mais toma cerveja nacional no Feicibuqui. Ninguém mais faz aquele bate-volta de pobre na praia mais próxima, todos estão “curtindo um descanso merecido” num hotelzão, numa casa com piscina num litoral paradisíaco, e a foto, sempre cuidadosamente planejada para parecer mais do que é, feita pelo próprio personagem deitado numa espreguiçadeira, mostra seus pés cruzados e, ao fundo, em segundo plano, um horizonte digno de mar da Sicília, e um barco passando lá longe.

Roupas? No Feicibuqui só se vestem as de grife.
Óculos? Só Ray-Bans e congêneres.
Churrascos? Só em varandas gourmet ou em clubes de campo.
Corpo? Só malhado e bronzeado. (Conheço uma moça que trata as gorduras extras, as espinhas e a feiura no Photoshop, antes de feicibuquear)

“Ganhei um reloginho do meu maridinho querido!”, uma diz, ensaiando um verniz de humildade, e a foto é de um Tag Heuer. “Almoçando fora com a família!”, a imagem que ilustra a postagem não é de um prato, mas de uma obra-prima, um prato negro, estilizado, na qual fios de azeite desenham um mosaico e uma folha de hortelã repousa cuidadosamente sobre um grosso filé de salmão. Ninguém mais encara um econômico macarrão com carne moída, em pé, de barriga na pia da cozinha? Ninguém mais está sem grana, triste, com a casa suja, sem emprego, gordo, a pé, com remela no olho, humilhado?

E eu, vendo aquilo tudo, me sinto tão pequeno... Como vou confessar no Feicibuqui minhas mazelas e insignificâncias? Dizer que meus livros não vendem, que sou um errante, um Zé-ninguém, que tomo cerveja barata, que tomo porrada, talvez colocar a foto do meu novo carro, bem velho, que foi adquirido com o que me sobrou da venda de um mais novo, para pagamento de contas atrasadas? "Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes", como disse Álvaro de Campos, onde vou arrumar coragem para contar que sou o único que “não cheguei lá”?

Assim, tenho sofrido calado meu próprio martírio de amarguras represadas diante dos bem-sucedidos e permanentemente alegres habitantes dessa Shangri-la eletrônica, reduto final para a catarse de todos os anseios reprimidos.

“Posso tolerar tudo no meu amigo, menos o seu sucesso”, ensinou São Tomás de Aquino, há 800 anos. “O sucesso pessoal é um insulto ao outro”, reforçou Nelson Rodrigues, mais recentemente. E de repente me ocorreu uma passagem do excelente livro Inveja, do jornalista Zuenir Ventura: “Inveja é a tristeza pela felicidade alheia”.


Acho que é isso, estou com inveja dos feicibuquers.



Cesar Cruz
Maio 2014




3 comentários:

Anônimo disse...

Entendo Você, imagina na condição de comerciante que sou aguentar isso ao vivo com situações até mesmo de desentendimentos de tanta gente "papuda" que aparece na nossa frente dizendo comprar três imóveis por semana e, na hora de ir embora, pede dinheiro pro bilhete único, é disso pra cima, mas em fim... escolhi ser um pé rapado assumido, porém autêntico, até brinco dizendo que só uso roupas de marca: de óleo, graxa, tinta, molho... aliás, faço questão, aprendi com o meu digníssimo pai tudo isso.

abraços
xara

Nina Salomé disse...

Qual o eu que sobrevive? O que as pessoas vêem, ou o que eu penso ser?

CESAR CRUZ disse...

Somos muitos EU, não é mesmo, Nina? Jung explica. Segundo ele, somos a soma de nossas personas!

1 bjo