As manhãs de domingo de 1977

Escrevi esta crônica há 3 anos. Hoje, dia dos pais, a publico aqui em homenagem ao meu pai, Aloisio Cruz, que morreu há 20 anos, e que tanta, tanta falta me faz.


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Quando eu tinha sete anos, aguardava ansioso as manhãs de domingo, momentos que papai dedicava com exclusividade a nós dois.

A rotina era a seguinte: ele me acordava às 8h e íamos para a sala. Era lá que aconteceriam as nossas atividades matinais, que só teriam fim quando minha mãe acordasse por volta das 11h30. Para não acordá-la antes da hora, fazíamos tudo no maior silêncio.

Eu me punha de pijama no sofá a assistir o Globo Rural ou o Som Brasil, enquanto meu pai ia até a cozinha preparar um copo de leite para cada um de nós. O dele era frio e puro, o meu também frio, só que com Toddy. Papai trazia ainda um prato cheio de bolachas Água e Sal para acompanhar.
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Ele se sentava no sofá ao meu lado para cortar minhas unhas enquanto o nosso lanche aguardava na mesinha em frente. Cortava as das mãos e depois as dos pés, e nós de rabo-de-olho na TV, esperando pelo início da Fórmula 1.
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Geralmente o serviço de manicure chegava ao final quando os corredores já estavam apostos no grid. Então assistíamos a volta de apresentação tomando leite e comendo bolachas. Quando o último carro parava, era a hora do ronco dos motores e da largada. Parávamos de mastigar e ficávamos ali, congelados, aguardando o sinal verde. Assim que os carros disparavam pela pista gritávamos baixinho - se é que isso é possível - “vai Emerson, vai Emerson!”. E lá ia o Emerson Fittipaldi, nosso ídolo da época. Torcíamos como doidos nas primeiras e emocionantes voltas. Quando a corrida tomava aquele ritmo morno de jogo de xadrez, voltávamos a espiar apenas de soslaio, pois já era hora de prepararmos a nossa próxima atividade matinal, a minha predileta.
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Papai tirava a toalha e o vaso de cima da mesa da sala de jantar, pois era lá que montaríamos o Forte Apache. O Forte Apache era um brinquedo da Gulliver que compreendia um forte militar com soldadinhos de plástico fortemente armados, apostos em torres de vigia, plataformas e no chão sobre montarias. Havia também os indiozinhos inimigos, montados em cavalos selvagens, sempre armados de arco e flecha e afiadas machadinhas. O Forte era o brinquedo que eu mais gostava. Caro, custei a ganhá-lo!
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A TV ficava na sala de estar, que se separava da de jantar por um sofá que era posicionado de costas para esta outra. Era justamente esse sofá que nós usávamos como trincheira e base de tiro. Mas nossa brincadeira era bem diferente da proposta nas “instruções de como brincar”, impressa na caixa. À nossa moda, púnhamos os índios e os soldados guardando o Forte, todos unidos contra nós. Nossas armas eram artesanais, feitas à mão. Usando bigudins de cabelo da dona Diva (que dormia sem saber de nada), pedaços de bexigas de aniversário e grãos de feijão, construíamos nossas atiradeiras. Papai chamava-as de “bodoques matadores”. Funcionava como um estilingue e dava um tiro forte pra burro! E era assim que, de trás do nosso sofá-barricada, disparávamos certeiramente contra os inimigos sobre a mesa.
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Algum tempo depois a Estrela lançou um brinquedo chamado Espingarda Super-Tiro. Era uma espingarda de ar-comprimido que atirava balas de verdade. Balas de plástico, sim, mas que quando acertavam na pele da gente doíam muito. Se atingisse o olho de um poderia até cegar, dizia meu pai, mas naquela época parece que os fabricantes de brinquedos ainda não tinham este tipo de preocupação.
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Quando ganhei a Super-Tiro de presente de aniversário, abandonamos o bodoque. Logo o Forte Apache também foi substituído, pois chegaram os versáteis Playmobils, que colocávamos entrincheirados atrás de caixas de sapatos, rolos de papel-higiênico, livros, porta-papéis ou quaisquer outros objetos que durante a semana meu pai trazia do escritório para compor o QG inimigo.

Os Playmobils eram bem mais legais do que os soldadinhos, diga-se de passagem, pois um tiro bem acertado fazia com que cabelinhos, bracinhos e cabecinhas voassem para todos os lados. A cada um de nós cabia um tiro por vez, e ao que não iria atirar, a missão de recolher os cadáveres das vítimas alvejadas. Ganhava quem acumulasse mais defuntos. A hora mais legal era a da montagem. Empilhávamos a tropa inimiga de maneira propositadamente periclitante, de forma a que um tiro acertado em ponto certo ocasionasse a queda de boa parte das bases do adversário. Caíam soldados, caixas, armamentos, livros... Um por cima do outro. Como nos filmes de guerra. E eu vibrava!
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Às vezes, quando o locutor da Globo erguia a voz, saíamos da concentração da batalha e pulávamos no sofá como dois meninos. Era o indicativo de que o Emerson estava na peleja para ultrapassar mais um.
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Recordo-me que num determinado dia houve um acidente grave. Ao grito do locutor, largamos a brincadeira e sentamos aflitos no sofá, pai e filho, em silêncio. Logo percebemos que a coisa era séria. Dentro do carro em chamas estava o Nick Lauda. Os fiscais de pista não conseguiam apagar o fogo e ele estava preso nas ferragens já havia alguns minutos. Eu o vira se mexer por entre as labaredas, uma coisa horrível.

Lembro de ver papai assumir um ar sério, consternado. Era como se a alegria daquela manhã tivessem se esvaído de repente. Com o olhar grave e com as mãos juntas sob o queixo, meu pai rogava, baixinho: “Deus ajude...”. Eu juntei as minhas mãos sob o queixo imitando-o, e ficamos esperando lado a lado no sofá, os olhos pregados na TV, agoniados.

Finalmente apagaram o incêndio e retiraram o tri-campeão mundial do carro.
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Soubemos depois que Lauda sofreu queimaduras de terceiro grau pelo corpo todo e no rosto. Perdeu parte das orelhas e ficou deformado. Aquilo me chocou.

Como se fosse hoje, lembro-me de detalhes daquela manhã. Do gosto do Toddy, do cheiro dos nossos pijamas e da loção pós-barba do meu pai; do medo que me deu ao ver um homem pegando fogo, das nossas mãos em posição de oração, da espera, da angústia...

Mesmo após dezenas de cirurgias plásticas, Nick Lauda nunca mais correu.

Alguns anos depois o Piquet substituiu o Emerson. Nossas brincadeiras dominicais nessa época já não eram tão regulares, eu ia ficando maiorzinho e já tinha outros interesses, novos amigos. Mas aquela manhã do acidente nunca mais sairá da minha memória. Como também não sairá a manhã em que o Senna se estatelou naquele muro na Itália, e morreu. Meu pai já não estava mais lá, nem as nossas brincadeiras existiam mais; dezessete anos haviam se passado. A sala de casa agora era outra. Morávamos eu e a minha mãe, viúva, num outro apartamento, bem menor, na periferia de São Paulo.

Eu assistia à corrida sozinho naquela manhã. Na cozinha, dona Diva partia legumes para o almoço. À tarde eu encontraria a namorada vigente para assistirmos a um filme no cinema. A corrida no circuito de Tamburello começou sem surpresas e já se encaminhava precocemente para aquela parte do jogo de xadrez. Na mesinha na minha frente um Toddy gelado e algumas bolachas de Água e Sal me aguardavam. Eu me aprontava para atacá-los quando, de repente, um acidente: “Batida feia do Airton contra o muro!”, vociferou Galvão Bueno. Medo, ansiedade, angústia, dúvida, foram os sentimentos que brotaram em mim naquela hora. Lembrei-me instantaneamente do meu pai, que tinha enfartado havia três anos. Lembrei de toda a ansiedade no dia em que ele passou mal e foi internado, da dúvida que me assaltou, do medo do porvir. O que eu faria se o meu pai morresse?

Assim como o Senna, meu pai morreu mesmo. Depois de dois meses em coma na UTI.

Durante aquela meia hora de espera por notícias em frente à telinha, revivi as manhãs de domingo da minha infância, e as brincadeiras de Forte Apache com papai. Lembrei de nós dois de pijama, do nosso bodoque, de quando ele cortava minhas unhas, do Emerson Fittipaldi, das bolachas Água e Sal... E de como eu era feliz em 1977.
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Cesar Cruz
1º de Abril de 2007
Domingo de manhã
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7 comentários:

Anônimo disse...

Li As manhãs de domingo de 1977 e óbvio, chorei. Demais. Como essas rotinas marcam nossas vidas, não é? Nem percebemos, mas é isso que nos constitui: rotinas e quando elas não mais existem, lembranças de rotinas. Sei que seu pai deve ter se divertido até lendo este texto lá na Lan House do céu. :)

Parabéns mesmo César. Eu vejo uma novela sua na TV Globo, em horário nobre, sabia? Audiência lá em cima, pessoas sentadas em casa, com seus pijamas, seus pais e seus jantares esfriando para assistir cenas do próximo capítulo.

Boa sorte! Beijão

Mara Ruzza

angela disse...

Doí aquilo que que é bom, que é sensível e importante. Que bom que pode viver tudo isso com seu pai, que parece ter sido um homem carinhoso e amoroso que deixava a mulher descansar até mais tarde no domingo enquanto se divertia com o filho.
Lendo lembrei de muitas coisas, principalmente do silêncio que tomou conta da cidade, nunca "ouvi" um silêncio tão longo e tão profundo e moro em uma área central de SP.
beijos

Caca disse...

Isso acaba se transformando numa depuração da dor. Ela se transforma num sentimento muito bom, de conservação de uma memória muito importante, muito valiosa, muito grande do ponto de vista do crescimento digno que o faz um grande homem. Eu também me emocionei com a leitura, me fez lembrar de muita coisa de meu passado. Abraço grande e parabéns também.
P.S: Eu vi o seu chamado para o lançamento na bienal. O meu vai ser no dia 14, âs 20 horas no stande M58. Se tiver oportunidade, será um prazer vê-lo por lá.

EMERSON ARAÚJO disse...

A figura do pai em nós é emblemática.

Sueli Gallacci disse...

Cesar, parabéns pela bela crõnica. Me emocionei e tbm lembrei do meu pai, um homem muito especial que faleceu em 1994... Ele foi tão importante pra mim que nunca consegui escrever nada sobre ele até o momento... não encontro palavras.
Quem sabe um dia eu consiga com tanta ternura, assim, como vc escreveu.

Um Bjo enorme.

Tais Luso de Carvalho disse...

Oi, Cesar... então tiveste um ótimo pai, como eu. E as recordações ficam: os brinquedos, os passeios, o leite com chocolate... E hoje me sinto feliz, pois tudo valeu a pena. Sei que levamos muito tempo para aceitar nossas perdas, é dramático. Mas eles sempre estarão conosco, sempre farão parte de nossas vidas. Olha... ele deve estar lendo tuas histórias lá em cima, torcendo te aplaudindo... Nada mais carinhoso do que esta crônica para ele!

Beijão
Tais luso

Natália Cassiano disse...

Meu pai também tem uma rotina aos domingos até hoje. Acorda cedinho, faz café e faz questão de acordar a casa toda. (Ele não é tão bonzinho com a minha mãe). Eu e minha irmã, morrendo de sono da noite anterior, voltamos para cama (querendo estrangulá-lo). Ele assiste corrida, depois todos nós levamos os cachorros para passear. Quando eu era mais nova ele sempre me deixava dirigir na estrada de terra.
Parece bobagem, ninguém presta muito atenção nesses pequenos momentos juntos, mas são deles que sempre nos lembraremos. Talvez não demos tanto valor quanto deveríamos, enquanto está tudo ali, pertinho da gente.
Você deve sentir muitas saudades de seu pai. Ele parece ter sido uma pessoa incrível. E esse carinho imenso fica para sempre.
Muito linda a sua crônica, só transpareceu esse carinho.


Abçs

Deva