Um salto na multidão

Cesar Cruz e Gabriel Fernandes
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Prefácio
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Este é o segundo conto que escrevemos em conjunto, o Cesar e eu. O primeiro (A Despedida) escrevemos livremente, mas nos deixamos, de alguma maneira, nos influenciar pelo estilo um do outro. Desta vez nos propomos a nos policiar para não cedermos ao forte apelo de escrevermos de forma parecida. O Cesar é um entusiasta da Língua, como eu, mas muito mais arrojado, fecundo e criativo. Ele é mais afeito às modernidades lingüísticas, eu sou mais conservador. Quando começamos a escrever, não sabemos nada sobre os personagens, como a história se desenvolverá, nem como terminará, ou quem escreverá o último trecho. Caminhamos no escuro do bosque da ficção, sem saber como sairemos dali. Cada um traça seu caminho, escolhe sua trilha e no final um espera pela outro na saída da mata. Emprestamos ao texto um pouco de nosso conhecimento e de nossas experiências, e o resultado é um conto híbrido e intrigante, pelo menos para os autores... O desafio maior consiste em nos tourearmos reciprocamente, conduzindo a trama para um ponto intermediário entre o que um pretendia e o que o outro esperava. Neste conto, pareceu-me que o Cesar tentava desviar o enredo para um atalho sobrenatural, mas, em dado momento, teve o insight oportuno de abandonar o teclado, digitando de maneira surpreendente a palavra FIM após um trecho que eu escrevera propositadamente com o intuito de frustrar sua tentativa de desvio. O resultado é, quero crer, uma história também surpreendente e que possui um pouco das experiências e dos valores de duas gerações: a dele e a minha, que antecedeu a dele. Espero que você o leia, aprecie e não se perca no bosque.
. Gabriel

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Parte I
. “À lembrança do que fomos, desejamos parecer outro. Descobrimos que somos feitos de muitos outros ao longo do tempo. Sei que a maior parte de nós não insiste, pensando preservar ainda essa coerência ilusória e múltipla de nós mesmos, essa dispersão que chamamos nossa vida. Acontece que se insiste, que se persegue o espectro, a ficção que somos para nós mesmos, para fugir de outros fantasmas, e essa aventura pode nos enlouquecer”.
Frédéric Boyer, Les Aveux
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Baldeei na estação Sé. Havia tirado a parte da manhã para ver alguns documentos pessoais no centro. Djalma, o encarregado do meu setor, me deu essa colher-de-chá. Eram 14:45 e eu já estava voltando com as tarefas concluídas. Iria para casa. Pelas minhas contas, chegaria antes das 16:30. Uma maravilha! Estava louco para entrar na casa vazia e silenciosa, já me imaginava largando os sapatos ao lado da porta, atirando as roupas por cima do sofá e me refestelando de cuecas para ver os programas vespertinos na TV. Com um detalhe: na geladeira – eu tinha certeza – haveria uma lata gelada de cerveja me esperando.
. Pelas minhas contas, eu teria uma hora e meia - se conseguisse mesmo chegar naquele horário - antes que a Marli escancarasse a porta com sua habitual barulheira esganiçada, trazendo as crianças e suas mochilas da escola.
. Troquei de plataforma no meio da multidão que, apesar do horário ainda tenro, já se fazia volumosa na estação. Pegaria o trem no sentido zona leste e saltaria na Corinthians-Itaquera, a última estação. Pronto. Estaria em casa. Bastaria vencer dois quarteirões a pé, abrir o portão e ganhar o sofá. Saudades da minha casa...
. O vento aumentou no túnel e soprou gostoso no meu rosto acalorado. Os faróis do trem jogaram luz sobre os trilhos na curva lá adiante; o barulho característico. As pessoas se aproximaram com pressa da faixa amarela de segurança.
. Vi quando um rapaz precipitou-se pelo meio do povo, quase ao meu lado, e saltou deliberadamente sobre os trilhos. Aterrissou desequilibrado. Numa fração de segundo, numa piscada dos meus olhos, gravou-se na minha retina o momento em que ele, instantes depois de pousar, elevou um ombro e girou um braço ao redor da cabeça, num movimento de defesa. Vi a expressão contraída do seu rosto. Num rufo de som, vento e luzes, o jovem sumiu sob o trovão de aço.
. Fui imediatamente envolvido pela turba que afluiu para espiar pelo vão que formavam o trem e a plataforma. Nada se via ali.
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Os seguranças, cinco homens de preto, numa fila movediça, cortaram a massa humana com delicada truculência. A mim pareceu que uma enorme mão enluvada atravessava aquela horda colorida que, se afastando rapidamente, como que criava um gigantesco caleidoscópio. À frente seguia o Mata-piolho, gordinho, baixinho, peito empinado, barriga saliente. Andava com passos alongados e rápidos, numa postura de quem quer provar sua ascendência hierárquica. Quase colado às suas costas, o Fura-bolo, de estatura média, tinha o corpo marcado por uma musculatura bem definida, certamente tratava-se de um freqüentador contumaz de academias. Seguia-o como um sargento, dedicado, subalterno... Depois, um homem enorme, encorpado como um gorila, de aparência rude e arrogante, sobressaía do quinteto: era o Pai-de-todos. Em seguida, manquejava o Seu-vizinho, magro, também de altura mediana, e um pouco penso à esquerda, olhava ansioso para trás, parecia preocupado com o Mindinho que se afastara inexplicavelmente do grupo.muito frágil, franzino e agitado.". Pararam na frente do primeiro vagão. O que parecia o mata-piolho adiantou-se do grupo, cruzou a faixa amarela de segurança e ordenou:
. – Afaste essa gente! Desça na via! Procure o corpo sob o trem!
. As ordens foram cumpridas prontamente. O que se portava como um sargento mandou um segurança que mandou o outro que mandou o menorzinho.
. De longe, eu observava o movimento. A cena do salto para a morte me pareceu fora de contexto. O salto fora ágil demais, certeiro demais, fácil demais. Não me pareceu mais um triste caso de suicídio no Metrô. Ninguém deixa a vida tão convicta, estóica e arrojadamente. O suicida premedita, tempera, cozinha lentamente seu ato. Procura justificativas que, em sua mente perturbada, corroborem seu gesto. O mundo já não presta, não o merece, a vida não vale mais a pena ser vivida. É como se de repente descobrisse que viveu uma farsa, uma penosa mentira.
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Alguém que criou uma falsa imagem de si próprio e que, num belo dia, um espelho em sua mente lhe revela um rosto que não conhece, uma imagem de que não gosta, uma realidade que despreza. Mesmo assim, entre a resolução tomada e a concretização do ato, há uma distância quase intransponível. O suicídio é para poucos. Um Hemingway, um Santos Dumont, um Hitler, um Sêneca, uma Virgínia Wolf, um Van Gogh, ou alguns infelizes anônimos, em sua grande maioria vítimas de enfermidades psíquicas graves, de doenças incuráveis, de dependência alcoólica ou química. "O suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo, decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da filosofia", disse Albert Camus.
. O que se assemelhava a um mindinho, curvou-se sobre os trilhos, procurou atentamente sob o vagão, mas nada viu. Nada de suicida. Olhou para o segurança que parecia o chefe, o mata-piolho, abriu os braços e disse, meio desapontado:
. - Não tem nada aqui, meu! – confirmando o que o povo já sabia.
Parte II
Olhei e ali estava ele... Ou um pedaço dele. Tratava-se da parte médio-inferior do seu corpo, peito para baixo. O pedaço estava prostrado de borco, sentado sobre os calcanhares, mas sem colo, sem um braço, sem cabeça. Era um corpo interrompido na altura do plexo. Se estivesse inteiro, graças ao braço que se projetava mais adiante, lembraria um muçulmano curvado em direção a Meca.
. Um rastro de sangue comprido e esfregado ia da ruptura dilacerada até onde a vista podia ver. Pensei que o restante deveria estar lá na frente, presa aos ferros da composição. Passeei os olhos ao redor. As pessoas se dispersavam desinteressadas. Reunidos, os homens de preto falavam entre si alguma coisa que, graças ao ruído, eu não conseguia ouvir. Saíram em grupo, conversando de outras coisas e, para meu espanto, riam. Um deles, macérrimo, com o terno largo que parecia emprestado de alguém bem maior, falava por rádio, alguns metros atrás, distante do restante do grupo: era o Mindinho.
. Minha cabeça ia do corpo à multidão, da multidão aos homens-dedo. Ninguém parecia se importar. Pensei em descer aos trilhos, ajudar o rapaz, porém estava claro que ele não poderia mais ser ajudado. Adiantei-me em direção a um homem que mexia nuns documentos numa pasta em fole apoiada sobre a coxa. Esbaforido, expliquei-lhe o ocorrido, gesticulei, apontei e me remexi; falei do descaso de todos, da inaptidão da polícia, da tristeza daquela morte. Por alguns instantes, ele me deu atenção, depois me olhou como seu eu fosse louco. Então, me dei conta de que falava sozinho; ele nem se dignava mais a me dirigir o olhar. Creio que o tenha aborrecido com meu alvoroço.
. Outro trem chegou bramindo. Certamente estraçalhou o resto do jovem abandonado sobre os dormentes. As pessoas entraram, inclusive o homem da pasta em fole. A plataforma esvaziou-se e o trem partiu. Olhei para os trilhos e o jovem permanecia ali, abandonado, moído. Chorei de desespero, impotência e solidão. Minhas pernas fraquejaram e, de repente, eu estava de joelhos, a face curvada contra o piso frio da estação. .
Pensei na minha vida, nos anos que desperdicei na cidade antropofágica que consumiu minha juventude, minha saúde, minha sanidade. Quantas vezes visitei minha memória, esse campo amplo, de vegetação rala, essa vastidão desolada de lembranças esparsas e desconexas? Quantas vezes questionei a razão de minha existência, perscrutando as planícies baldias de minha mente em busca de algo que justificasse meu desejo de continuar a viver ainda mais um dia? A idéia de suicídio não me era nova. Já não havia ninguém a quem pudesse me apegar, ninguém que sentiria minha falta se eu não voltasse para a desarrumação de meu apartamento na Vila Madalena, entre a visão tétrica do cemitério São Paulo e o ruído incômodo dos bares da região. Eu já não tinha para quem viver e não me dispunha viver apenas para mim.
. Minha filha mudou-se para a Europa logo após o casamento. A Marli a acompanhou para ajudá-la a adaptar-se à nova vida. No início, as ligações telefônicas eram diárias, mas aos poucos foram tornando-se escassas e deixei de recebê-las havia muito tempo. Eu não sabia se ainda estavam vivas, em que país moravam e em que condições. Meu filho igualmente desaparecera havia anos numa aventura juvenil no continente antípoda da Austrália.
. Incontáveis vezes esperei na plataforma lotada o trem aproximar-se ruidoso e rápido e imaginei, atravessando a multidão, saltar sobre os trilhos num ato premeditado de desistência e entrega. Li e reli inumeráveis vezes o drama do infeliz Werther, alimentando a esperança de imitar seu ato de desilusão e desespero. Queria transformar-me no personagem de Goethe. Porém eu queria uma morte rápida, mas espetaculosa, uma morte que por algum tempo me tirasse de meu anonimato abjeto.
. Realmente, não havia nada a ser resgatado de sob o trem, apenas minha imaginação afastara-me da realidade e minha vontade mais uma vez criara a cena de suicídio e indiferença. Provavelmente, se os seguranças-digitais tirassem meu corpo esquartejado de sobre os trilhos, ninguém deixaria de pegar o próximo trem para contemplar um pouco mais demoradamente o desfecho da minha vida miserável. Eu teria mais um dia para viver, mais um dia para prolongar a inutilidade da minha existência.
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Parte III . .
Levantei-me do chão. Outro trem se aproximava. Entrei.
. Durante a viagem, ora subterrânea, ora à luz do dia, pensei na Marli e nas crianças. Mulher e filhos que nunca tive. As crianças cresceram, viraram adultos e ganharam o mundo, mas apenas e tão somente nas minhas fantasias, na minha inconsciência... No entanto, de alguma maneira eu sabia como era cada um deles, suas faces, seus corpos, cabelos, cheiros, humores... Eu era capaz de me recordar, detalhadamente, de natais e aniversários que nunca ocorreram... Pensei também na firma, no trabalho diário, no Djalma e em toda aquela gente que opera a fábrica. Lugares, pessoas e atividades que jamais existiram.
. Saltei na Corinthians-Itaquera. Emergi da corrente humana pela escada rolante e avancei em direção à minha casa pelas ruas do bairro. Pelo menos o meu sofá estaria me esperando, aconchegante. Caminhei até minha rua. A velha e conhecida rua onde rodei peão e empinei pipas havia muitos anos, muito antes de construírem uma estação ali.
. Já na Rua Oleiros, avancei até o portão de casa. Parei em frente e enfiei a mão nos bolsos atrás das chaves. Não as achei. Mexi e remexi e não havia chave alguma neles. Mas onde estariam? Foi então que levantei o semblante em direção à fachada. O que vi fez meu coração pular. Minha casa fora posta à venda. Uma velha placa informava isso. A frente estava mudada, suja. A janela de madeira do nosso quarto parecia ressequida, esturricada pelo sol, colada aos quadrantes.
. O caminho de entrada que levava até a porta da sala estava tomado por mato alto, parecia que não era pisado por pés humanos havia anos. Pus a mão sobre a cabeça, cobri os olhos com as palmas, suspirei em desalento. Como tomado por uma certeza, por um impulso, saí dali. Não queria mais ver aquilo. Avancei pelas avenidas, cruzei o miolo do bairro e mais alguns poucos quarteirões estava em frente ao pequeno e antigo Cemitério Municipal de Itaquera. Parei diante do imenso portão. Foi então que olhei para os lados e vi os homens.
Final
Parados juntos a uma ambulância, eles me olhavam com comiseração. Eu odiava aqueles olhares, odiava ser visto como alguém que despertava piedade. Odiava aquele sentimento de dó. Aproximaram-se de mim lentamente e me cercaram de forma que eu não pudesse escapar.
. – Venha, seu Anton, o senhor não está tendo um bom dia! – disse-me gentilmente um dos homens que vestia calças brancas e um jaleco também branco.
. Eu o segui resignadamente.
. No interior da ambulância, deitei-me na maca e fui amarrado a ela por fortes tiras sintéticas. O jovem enfermeiro aplicou-me uma droga qualquer e dormi quase imediatamente. Eu me sentia renovado quando deixei a clínica após quatro meses de internação. O tratamento parecia ter tido o efeito desejado.
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. Voltei à minha casa na Vila Madalena. As lembranças de minha infância e adolescência em Itaquera haviam sido acomodadas em seus lugares apropriados num escaninho qualquer de minha mente. Não havia Marlis, não havia filhos, não havia Djalmas, apenas desejos irrealizados numa vida inútil, desperdiçada.
. Entrei na solidão de meu apartamento. Estava sujo. Cheirava a mofo e restos de comida. Uma réstia de poeira dançava preguiçosamente num tênue facho de luz. No interior dessa casa, cheia de sonhos, a dor me invadiu lentamente, como uma lua nascida do silêncio.
. Liguei o televisor e tirei o som. Peguei uma cerveja na geladeira e um copo tulipa no congelador. Sentei-me no sofá desbotado e fiquei a olhar as imagens que se sucediam no televisor mudo.
. Eu queria pensar na vida, na minha vida. O que restava para mim? Nunca me casei. Não tive filhos. Perdi meu último emprego não sabia há quanto tempo. Vivia da caridade da Previdência Social: aposentado por esquizofrenia.
. Eu queria me livrar do passado, da imagem que construíra para mim mesmo. Minha vida tinha sido uma ficção, uma mentira. Eu tinha me apegado a minha imagem juvenil, de galã, de boa pinta, de roupas extravagantes, cabelos compridos, pulseiras e brincos. Sempre acreditei que haveria tempo, mais tarde, para me aprofundar nos estudos, fazer carreira profissional, casar-me e ter filhos.
. Agora parecia tarde demais. Talvez contasse com a benevolência do Tempo. Talvez o Tempo me esperasse, esperasse que eu me encontrasse e assumisse minha condição de homem maduro. Eu não queria ser apontado nas ruas, ridicularizado como um retardado apegado a valores e símbolos da Jovem Guarda.
. Abri mais uma cerveja.
. Os pensamentos ainda eram coerentes. Ainda podia considerar o absurdo de minhas atitudes. Depois da quarta lata, o raciocínio tornava-se mais lento, as imagens começavam a se abraçar.
. Abri a sexta lata, ou será que foi a sétima? Pouco importava.
. Meu cérebro voraz produzia palavras que eu não conseguia processar. Se tentasse falar, elas saíam entredentes, mordidas, mascadas como um velho chiclete.
. Antes da décima, eu já dormia. Sonhava com a plataforma do metrô, o trem ruidoso, a multidão indiferente. Certamente acordaria com a mesma vontade de morte, a mesma compulsão suicida. .
Do lado de lá da vidraça, o cemitério São Paulo me espreitava.
FIM
Cesar Cruz e Gabriel Fernandes
Agosto 2008
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3 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns, amigos.
Muito bom e inteligente o conto.
Espero pelo próximo. Beijo, Tânia
14.8.08

Anônimo disse...

Senhores.
Gostei mais desse do que do anterior. O outro é mais confuso, há passagens lá que não fecham tão bem. Parabéns a voces!
Henrique
18.8.08

Anônimo disse...

Bom esse causo, moços. Intrigante..... Pra mim ele irá se matar em breve! Bebendo e pirado assim.......rsrsrs
Meus parabéns!
beijão

Diomar
Carapebus/ RJ
20.8.08