Óculos

Conto publicado no Jornal do Cambuci & Aclimação - dezembro de 2008 e novamente em junho 2011.

Revista Vidaqui - dezembro de 2008 (clique ao lado).

Gazeta do Ipiranga - fev 2009.

Portal Mundo Mundano - Jun 2011.

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Entrou no consultório e sentou-se na frente do médico, decidido.

— Doutor, preciso de óculos.

Suava, parecia tenso, apressado.

— Pois bem, vamos examiná-lo para verificar...

— Doutor, não precisa nem examinar. — interrompeu, convicto. — Eu garanto ao senhor!

— Claro, claro... — disse o médico, já em pé ao lado de um dos aparelhos — Venha, sente-se aqui e vamos avaliar como anda sua visão.

O homem não se moveu do lugar.

— Não precisa avaliar nada não, doutor. É só me dar uns bons óculos e pronto.

— Só me faltava essa... — murmurou o outro, voltando à mesa, desanimado.

— Veja só o meu problema, doutor: perdi a Carolaine pra um sujeito de óculos. E isso foi a gota d' água...

— Eu não acredito...

— Ah, claro que o senhor não acredita! O senhor não acredita porque usa esse óclão bonito aí! Queria ver sem ele... Ia passar por açougueiro com essa roupa branca.

— Epa, peraí! O senhor veio aqui pra me ofender?

— Não doutor... Pelamor de Deus, me desculpa... é que eu tô tão nervoso...

Debruçou por cima da mesa e agarrou as mãos do médico, os olhos suplicantes.

— O senhor precisa me ajudar!

— Cada um que me aparece, meu Deus...

Recostaram-se novamente nas respectivas cadeiras. O doutor quieto, só esperando pra ver aonde aquilo chegaria. Os olhos do paciente viajavam pelo teto, um sorrisinho sonhador brotava agora em seu rosto.

— Sabe que que é, doutor, um homem de óculos é outra conversa, outro respeito. Óculos, doutor, é melhor que faculdade. Estou certo disso. Quem tem óculos tem sucesso, tem dinheiro, tem prestígio!

— O senhor não pode estar falando sério...

— Quié isso, doutor, eu falo e eu comprovo o que digo! Diz pra mim: numa empresa, o cara de óculos é sempre quem? O chefe! Num banco? O gerente! E numa loja? O dono, é claro! O senhor tá vendo? Não tem jeito!

— Mas...

— Não tem mas, doutor! Tá na cara! O senhor já viu lixeiro de óculos?

— Bem, não...

— Ambulante? Carroceiro? Pedreiro? Pedinte?

— Ahn... eu...

— Óculos é outro papo, doutor. Confia em mim. Um sujeito de óculos cruza as pernas na elegância, fala bonito, fica inteligente, lê livro... Chove mulher, doutor! Chove emprego! Pode reparar!

O médico pensou, pensou. É, de fato aquilo tudo, de alguma forma, fazia certo sentido...

Enquanto o homem continuava a discorrer, o oftalmologista sacou a caneta da lapela do jaleco e se pôs a escrever no bloquinho.

— ...quando um sujeito põe óculos, doutor, muda a vida! É outro esquema! Até filme o fulano assiste diferente da gente que não tem óculos. Vai ao cinema por causa do diretor e não do ator; limpa a boca com a pontinha de guardanapo, não dá arroto em público, não fala palavrão na frente das senhoras... É outro nível, doutor! Outro intelecto!

O médico apertou o carimbo sobre a folha, assinou, destacou e esticou pro homem.

— Pus aí seis graus para o senhor. Lentes grossas. Assim o senhor vai parecer bem inteligente.

O homem leu a receita e um sorriso imenso iluminou sua face. Não se aguentou. Contornou a mesa, pegou a cabeça do médico e tascou-lhe um beijo estalado na careca, entortando-lhe os óculos.

— Obrigado, doutor! Agora sim vou ser alguém nessa vida!
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 Cesar Cruz

Outubro 2008
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