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"O homem não sabe o seu tempo;
assim como os peixes que se pescam com a rede maligna,
e como os passarinhos que se prendem com o laço,
assim se enlaçam também os filhos dos homens no dia mau,
quando a calamidade se arremessa sobre eles de súbito"
Eclesiastes - 9:12
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Há cerca de 1 ano, logo após a morte repentina da minha mãe, escrevi um conto, uma história de ficção sobre a calamidade que atinge a vida do homem, sem aviso. Acho que ali consegui expor a estupidez, o repente, o súbito, o brusco... Todas aquelas sensações que experimentamos quando somos vitimados por uma fatalidade repentina da qual não podemos nos proteger.
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A passagem transcrita acima é um versículo bíblico escrito há mais de 2500 anos pelo rei Salomão, inspirado poeta e escritor, considerado um dos maiores sábios da antigüidade.
Tal flagelo não é, portanto, privilégio dos nossos tempos. A desgraça, como um urubu oportunista e faminto, orbita nossas vidas e parece querer nos alcançar a qualquer momento, de surpresa, no meio do caminho. A calamidade é e sempre será essa sombra sobre nossas cabeças. Toda a vez que um filho vai à escola, um marido sai pro trabalho, um amigo viaja ou vamos a um médico por causa de uma dor estranha, ela está ali por perto, assombrando-nos.
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Há algumas semanas visitei uma empresa¹. Apresentei-me ao comprador. Trocamos um aperto de mãos e ele fez sinal para que eu me sentasse à sua frente no lado oposto da mesa. Obedeci. Segundos antes de começarmos a falar, seu celular tocou. Ele pediu um instante e atendeu:
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- Oi, meu amorzinho... Claro, meu anjo... Lógico que papai compra... - enquanto falava, olhou pra mim, sorriu e deu-me uma ligeira piscadela, como se supusesse que eu sabia do que se tratava a conversa.
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- Tá bom então, filhinha... Quando sair do trabalho o papai passa no mercado e compra pra você, tá bom? Agora preciso desligar, tem um moço aqui esperando pra falar com o papai. Te amo, meu amor, beijos. - Desligou. Voltou-se pra mim e disse, sério, engolindo o sorriso que mantivera nos lábios durante a conversa:
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- Era minha filha. Virei pai e mãe dela.
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Movimentei a cabeça em concordância e sorri com o canto da boca, mas não disse nada. Imaginei que ele tivesse se separado da mulher.
Ele prosseguiu, mais soturno agora:
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- Minha mulher morreu há 8 meses e deixou-me sozinho com nossa filhinha de 7 anos. - disse, inclinando-se sobre a mesa em minha direção. Seus olhos marejaram, cheios de tristeza.
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- Puxa, lamento muito mesmo - falei baixo, sem jeito, tentando imaginar aquela dor.
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Sem dizer nada, ele girou um pouco a tela do computador pro meu lado, pondo-me na inesperada situação de participante da sua triste intimidade. O fundo de tela estava preenchido com a foto de uma moça de cabelos lisos e negros, bonita, olhar doce. Usava vestido tropical e estava em pé em uma sala, com uma mão apoiada sobre a mesa de jantar e a outra na cintura. Fazia uma pose charmosa, tombando a cabeça e sorrindo bonito.
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Ambos olhamos para a foto durante algum tempo, até que ele disse, sussurrando:
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- Ela só tinha 29 anos. Estávamos casados há 8. - secou os olhos com a manga da camisa. - Ela era tudo na minha vida, cara... - completou com a voz embargada; a cabeça baixa enquanto limpava as lentes dos óculos numa flanelinha.
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Repôs os óculos, inclinou-se novamente sobre a mesa e prosseguiu, relatando a mim, um completo desconhecido, o que deveria ter sido o pior momento da sua vida:
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- Ela vinha dirigindo pela estrada e quando chegou no perímetro urbano, o trânsito parou de repente. Uma betoneira veio em alta velocidade e acertou em cheio o carro dela na traseira - bateu com um punho fechado na palma da outra mão fazendo aquele barulho característico. Olhou-me desolado, os olhos molhados novamente.
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Eu permanecia ali sentado, encolhido, ouvindo aquele homem alto, magro e de rosto anguloso, me revelando aquela intimidade tão dolorida, tão visceral. Minhas mãos aflitas apertavam a pasta que estava sobre meu colo. Senti-me num tipo terrível de impotência. Não havia nada o que eu pudesse dizer ou fazer para consolá-lo.
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Ficamos num instante de silêncio. Então ele disse a frase mais chocante que já ouvi na vida. Não foram propriamente as palavras que me impactaram, mas a forma como foi dita, o conjunto todo, a foto da sua mulher ao nosso lado, o seu olhar vazio e abatido, a sua voz vacilante, sua extrema desolação... Nunca mais vou me esquecer como aquilo me atingiu, que, naquele contexto, extrapolava e muito o que poderia ser um simples palavrão. Foi horrivelmente perfeito. Sinceramente, eu não teria outra coisa a dizer se estivesse no lugar dele.
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As mãos que se haviam unido em uma colisão simbólica, separaram-se com as palmas voltadas para cima, o gesto de quem ficou rendido frente a uma catástrofe. Olhando-me nos olhos ele disse:
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- Me fodi.
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Cesar Cruz
Julho/ 08
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¹ Esta é uma história verídica, porém a ambientação, os detalhes e os personagens foram modificados em respeito à família.
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9 comentários:
...São momentos como este que conseguimos enxergar que estamos aqui de passagem...o difícil é aceitar.
Valeu Cesinha!!
Aninha
10.7.08
Cara... nessas horas as lágrimas me tomam os olhos! A emoção vem à tona e é muito bem-vinda, pois sei que todos nós vamos passar por isso. Os avisados, os preparados, os convencidos, os desligados e os que simplesmentem vêem acontecer diante de si, a tão irreparável e imbatível separação.
Texto sincero e phodástico, Cesar.
Bjin,
ILZA.
10.7.08
Cesar, é isso. A calamidade orbita nossas cabeças e puxa nosso tapete quando menos esperamos. Não conheço ninguem que já tenha vivido um pouquinho, que não tenha sido acordado numa madrugada com uma má noticia. É o dia ruim, como diz o versículo bíblico.
Parabéns pela qualidade do texto.
Osvaldo Paiva
Jornalista, Ribeirão Preto -SP
11.7.08
Terrível, meu amigo. A Morte realmente nos espreita a cada respiração. Fora de hora, é um monstro odioso; na velhice, torna-se uma amiga esperada. Parabéns, você acertou nas cores.
Gabriel
16.7.08
Bem triste, adorei o final, acho que não tinha palavra melhor. Refletir sobre a morte e o inesperado às vezes me deixa muito melancólica.
Estou gostando bastante dos desfechos de seus textos, não são óbvios, na verdade, são inesperados, isso é muito bom, pois de uma certa forma é o que esperamos dos livros, que nos surpreendam.
bjs
Martha
18.7.08
Você conseguiu ser assertivo! Um palavrão desses no final era pra incomodar, mas da forma como você o pôs, ficou digno, belo, quase sublime! Sem ele a história não seria a mesma. Alias acho que ele, o palavrão, é a alma dessa história. É ele que sintetiza todo o horror da "desgraça que salta de súbito sobre nós" Perfeito.
abraços
18.7.08
PORRADA!
G.
21.7.08
Cruz,
é isso aí, um dia a gente se fode, no outro a gente ri..., faz parte...
Baxo
2.9.08
Puta que pariu! Me arrepiei! Via cena, sofri...
Breno
Aclimação
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