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Um homem baixo e magro trajando um sóbrio terno escuro e empunhando uma valise de couro, entrou no hospital e foi direto ao balcão da recepção:
- Por favor, senhorita, gostaria de falar com a direção.
- Vai falar com alguém especificamente, senhor?
- Não, mas a pessoa responsável por doação de órgãos certamente poderá me auxiliar. - O nome do senhor? – indagou a moça já empunhando o fone.
- Agripino Leodércio Munhoz. Mas por favor, trate-me por Munhoz.
- Um momento, por favor. A recepcionista acionou alguns botões na central telefônica.
- Oi Rita, estou com o senhor Munhoz aqui na recepção querendo falar com o responsável por doação de órgãos. A quem devo encaminhá-lo? A moça ouviu durante alguns segundos o que a mulher do outro lado da linha dizia, então apoiou o fone entre os seios e disse:
- O que o senhor quer exatamente falar sobre doação de órgãos?
Frente à possibilidade de ser barrado já na recepção, o homem resolveu mentir:
- Quero apenas informações, pois pretendo ser doador.
- Rita, ele só quer informações, pretende ser doador. A mocinha ouviu durante algum tempo o que a outra dizia, em seguida desligou o aparelho.
- Senhor, quem disponibiliza estas informações ao público é a Central Nacional de Transplantes. Mas de qualquer maneira, a Rita, secretária da diretoria, irá lhe atender. Siga até o final deste corredor, pegue qualquer um dos elevadores e pare no 4º andar, ela está lhe aguardando.
Em alguns minutos o homem estava sentado de frente para uma mulher obesa de cabelos avermelhados na altura dos ombros e cerca de 40 anos, que o ouvia atentamente do outro lado da mesa:
- Como eu ia dizendo à senhora Dona Rita, desejo doar todos os meus órgãos e minha pele para fins de transplante. Também pretendo doar o restante do corpo para estudos em universidades.
- Entendo senhor... Senhor? - Agripino Leodércio Munhoz. Mas por obséquio, trate-me tão somente por Munhoz – pediu o pomposo homenzinho.
- Senhor Munhoz, o senhor não precisa se preocupar, hoje em dia isso tudo é muito simples. A atual legislação autoriza que apenas com o aval dos familiares a doação seja efetivada, basta o senhor manifestar em vida esta intenção.
- A minha situação é diferente, Dona Rita, eu não tenho família nem amigos. Não haveria ninguém para fazer valer a minha vontade. Rita o fitou em silêncio. - Vim aqui, pois sei que este é o maior, mais equipado e mais bem conceituado hospital do país, estou certo?
- É sem dúvida, senhor.
- Estou informado também que este hospital é ligado à Central Nacional de Transplantes e ao Banco de Órgãos, e é premiado por suas atuações políticas e seu sucesso na área de transplante de órgãos.
- Sim, é isso mesmo, vejo que o senhor está bem informado sobre nós! Veja o senhor que somos o 1º hospital no país a receber o selo “hospital amigo dos órgãos”! – falou Rita animada - mas perdoe-me; ainda não estou entendendo de que maneira podemos ajudá-lo.
- Pois bem Dona Rita, escolhi este hospital justamente por isso. Aqui há toda a estrutura técnica e humana da qual necessito para fazer valer a minha derradeira vontade e...
Rita franziu a testa. Teria mesmo ouvido a frase: “a minha derradeira vontade”? Como poderia aquele homem aparentemente saudável ser um paciente terminal?
-...tenho a certeza que aqui encontrarei pessoas inteligentes, que entendam as minhas reais intenções. Tudo o que desejo é fazer a minha última e benemérita ação, antes de por fim a esta singela passagem, Dona Rita.
Rita começou a se assustar. Parecia estar de frente para um homem que, por algum misterioso motivo, pretendia por fim à própria vida.
- O que é isso seu Munhoz, pelo amor de Deus não diga uma coisa destas!
- Não se assuste – disse levando os braços fininhos por sobre a mesa até alcançar as mãos da mulher. Sem se dar conta, Rita contraiu o abdômen e os glúteos quando o homem a tocou.
- Sei que parece estranho ouvir isso de um homem como eu, mas trata-se de uma decisão irreversível e muitíssimo amadurecida, Dona Rita. Porei fim a esta vida sem propósito, hoje mesmo – disse largando as mãos suadas da mulher e voltando à posição inicial. A mulher soltou um discreto suspiro de alívio. Um tipo estranho de medo começava a fermentar no seu interior. O homenzinho continuou:
- Minha preciosa companheira me abandonou há 5 anos para ficar com um rapaz mais jovem, e desde então não pude mais ser feliz.
Munhoz cheirava forte a perfume amadeirado; tinha a barba absolutamente bem feita e o escasso cabelo fora grudado para o lado com algum tipo de goma brilhante. Trajava terno preto de tecido pesado, com um antiquado colete, apesar do calor que fazia naquele dia. Nos punhos abotoaduras douradas brilhavam gloriosas. O conjunto todo era bastante retrô, mas a fala mansa e sofisticada, os modos educados e elegantes, indicava tratar-se de um cavalheiro à antiga, apesar da aparente juventude.
Rita pensou que Munhoz não poderia ter mais do que 50 anos.
-... não tivemos filhos e isso foi um desatino de nossa parte, um grande desatino. Pelo menos hoje eu teria alguém nessa vida, alguém que me amasse verdadeiramente e que desse sentido à minha existência, no entanto acabei só, Dona Rita. Só.
As palavras entravam pelo ouvido de Rita, mas só parte do seu cérebro as processava. Com a outra parte procurava concatenar as idéias para compreender o que de fato estava por detrás daquele discurso tão prolixo e daqueles modos tão austeros. Enquanto pensava, transpirava sob o amplo vestido amarelo-ovo de fibras sintéticas. Podia sentir as gotículas de suor lhe escorrerem por debaixo dos seios e pelas dobras da cintura.
Munhoz inclinou-se lateralmente apanhando a valise 007 que estava no chão ao seu lado e a deitou sobre a mesa. Debruçou abraçando a pasta e voltou a falar. Falava baixo e devagar agora, em tom confidencial, olhando Rita por detrás das lentes grossas dos óculos. Vez por outra dirigia olhares para os lados e para trás.
- Dona Rita, a minha vida se tornou uma grande nulidade, a senhora não faz ciência. Vou do escritório para casa e de casa para o escritório. Na empresa ninguém gosta de mim, trabalho sozinho em um canto e as pessoas me evitam. Em casa passo minhas horas vagas assistindo a programas na televisão dos quais não gosto. Sem falar que perdi há tempos o prazer que um dia tive pela literatura e pelas artes.
Rita não sabia mais o que dizer, estava assustada. O homenzinho com toda aquela história de acabar com a própria vida a estava apavorando.
- Não há um único dia em que eu não pense nela Dona Rita; penso nela to-do o san-to di-a... Falava cada vez mais baixo marcando cada sílaba e batia a unha do indicador, brilhante e de cutículas feitas, sobre a mesa.
Munhoz era sem dúvida um homem metódico, talvez um tipo reacionário ou autocrata. Havia também aqueles olhos, eram olhos assustadores; e agora, ampliados pelas lentes e marejados pela emoção, eram poços de tristeza e desalento.
Ele prosseguia naquela lamúria lúgubre:
- Decidi que vou mesmo acabar com a minha vida, mas pretendo fazê-lo de forma nobre, como sempre fiz as coisas, Dona Rita. Quero deixar benesses de valor inestimável às pessoas que ficam, desta maneira não terei a percepção de que minha passagem por este mundo foi em vão. O homem estava novamente debruçado sobre a mesa; Rita já recuara o tronco e pressionava as costas contra o assento da cadeira. Estava calada, o medo a havia silenciado.
Munhoz prosseguiu, agora mais incisivo:
- Dona Rita, quero doar todos os meus órgãos, to-dos e-les... E não será algum dia após a minha morte. Não, não!... Será hoje Dona Rita, aqui mesmo, neste hospital!
Para Rita, o homem assumira agora os trejeitos típicos dos assassinos seriais dos livros da Agatha Christie, que ela tanto gostava. Abriu a boca para falar, mas sentiu os lábios secos e a garganta colada:
- Senhor Munhoz, não sei mais co-como lhe ajudar. Sem dizer nada o homem endireitou o corpo na cadeira giratória, ajustou os óculos sob o nariz e compenetrado, acertou com os polegares os códigos numéricos dos fechos da maleta. Um clique seco destravou-os simultaneamente.
- Muito simples Dona Rita, chame pelo seu ramal o diretor do hospital, e explique que um bem intensionado doador está aqui, aguardando para que seus órgãos sejam retirados – propôs por desencargo de consciência; mas já sabia qual seria a resposta.
A expressão de Rita era a de quem acabou de ver um morto passar.
- Impossível. Este procedimento simplesmente não existe! – disse, de maneira histérica.
Munhoz abriu a pasta e por um instante sumiu atrás da tampa de couro negra. Quando fechou-a surgiu empunhando uma enorme e brilhante pistola automática 9mm, o cano parecia ser mais grosso que seu braço.
- Infelizmente, eu sabia que ouviria isso da senhora. Mas não pretendo fazer mal a ninguém. Acredite, nunca nesta vida fiz mal a qualquer pessoa, e não é agora, no meu último dia de vida que vou fazer. Mas não se assuste, por favor! - O assassino serial dava lugar agora a um sereno e educado senhor. Os olhos apagados e as pálpebras oblíquas deixavam Munhoz com um ar bastante deprimido. Rita nunca se encontrara numa situação como aquela, com um louco de múltiplas personalidades armado na sua frente.
O homem pôs o revólver sobre a mesa e pousou uma das mãos sobre ele.
- Perdoe-me pela arma, por favor. Ela só serve para que eu me proteja da idiossincrasia dos burocratas. A senhora deve entender que eu estou no direito de dispor da minha vida e dos meus órgãos. Só não posso permitir, que graças à ignorância de alguns, pessoas necessitadas sejam privadas de viver. Petrificada e de olhos vidrados, Rita olhava a arma sob as mãos do homem.
- Rita, permita-me chamá-la assim, por gentileza. Preciso da sua ajuda agora. Munhoz fez um sinal com a cabeça dirigindo um olhar ao aparelho telefônico. - Por favor, ligue e vamos acabar com isso de uma vez. A sala da secretaria, era na verdade a ante-sala do Doutor Albano, superintendente de todo o complexo hospitalar. Rita dividia as atividades com uma estagiária que não havia vindo naquele dia. Ao lado deles, portanto, havia uma mesa vazia. Rita tirou o fone do gancho, apertou duas teclas e ambos puderam ouvir os toques na sala ao lado.
- Doutor Albano, o senhor po-pode, por favor, vir aqui? Podia-se ouvir o homem falando por detrás da porta. A mesma voz saia distorcida pelo aparelho colado ao ouvido da mulher, causando um curioso efeito estereofônico. Munhoz não conseguiu entender o que ele dizia, mas a voz soava enérgica e impaciente.
- Entendo Doutor, peço desculpas, mas é mesmo muito importante, é... é caso de vida ou morte!
A voz estereofônica disse uma última coisa e desligou. Rita desceu o fone e colocou-o na base lentamente. Sentia seu corpo enrijecer pouco a pouco.
- Ele está vindo – disse baixinho. Munhoz permaneceu calado. Tirou a arma de cima da mesa e pousou-a no colo, escondendo-a entre a mesa e suas coxas.
De repente a porta à direita abriu-se e dela saiu um homem alto de cabelos prateados e jaleco branco, que deixava entrever paletó e gravata por debaixo. Era o estereotipo do diretor de um grande hospital. Parecia uma figura saida diretamente de um filme americano. A lapela do jaleco trazia bordado em letras azuis: Dr. José Maria Schullermer Albano – Diretor Superintendente.
Albano dirigiu um olhar de irritação à secretária e em seguida olhou para o homem sentado à sua frente. Tentando disfarçar o aborrecimento e demonstrando uma solicitude artificial, cumprimentou-o:
- Boa tarde senhor, em que posso lhe ser útil?
- Rita, explique a ele a minha necessidade – Munhoz mantinha as mãos sob a mesa.
- Doutor, este ho-homem deseja do-doar seus órgãos... Albano percebeu na hora que algo estava errado. Rita estava da cor de uma vela e absolutamente perturbada. Do alto dos seus 70 anos, 45 deles dedicados à medicina, Albano tinha experiência suficiente para lidar com as mais diversas situações. Não conseguiu, porém, compreender o que estava ocorrendo ali. Optou então por assumir uma atitude firme, frente àquela situação, no mínimo, esquisita.
Falou de maneira enérgica e em tom pouco mais alto que o seu habitual:
- Que atitude maravilhosa... Senhor?
- Agripino Leodércio Munhoz. Mas pode me chamar de Munhoz.
- Senhor Munhoz, muito nobre sem dúvida essa sua disposição. No entanto não compreendo o que o senhor veio fazer a este hospital, já que atualmente, para ser doador, basta manifestar sua intenção aos familiares e obviamente, esperar pela morte! - Terminou a frase com uma risada irônica que na verdade refletia o seu temperamento intolerante e a sua impaciência frente àquele homem que exercia de alguma forma, um tipo silencioso de coerção sobre ele.
Por um instante ficaram todos em silêncio. Rita pensou que nunca na vida havia presenciado alguém dizer algo tão inadequado em momento tão inoportuno como o que acabara de ouvir.
Munhoz quebrou o silêncio:
- É justamente por isso que estou aqui... Senhor?
- Albano. Doutor Albano – corrigiu de maneira pernóstica e impassível, sem se mover do local onde estava.
O homem sentado tirou as mãos de baixo da mesa e cruzou os braços sob o peito. Uma das mãos trazia a reluzente pistola automática.
- Tudo o que não desejo é continuar a esperar pela morte, Doutor Albano.
Albano empalideceu. Seu velho coração safenado acelerou no peito. Munhoz, sentindo um prazer enorme em desmontar a arrogância do médico.
- Vim aqui para doar todos os meus órgãos, pele e o restante do corpo, e desejo fazer isso hoje, antes que a noite chegue, Doutor Albano.
Rita percebeu que o homem estava completamente diferente de minutos atrás, não parecia mais nem o assassino em série, nem o dócil senhor. Agora se transformara em um terceiro personagem: homem de modos imperativos e olhar duro. Falava de forma desafiadora, como que para vergar a empáfia do diretor.
- Além do mais doutor, não espero a sua concordância nem a de ninguém. Vim aqui sabendo exatamente o que ouviria de vocês, por isso vim preparado. Preferiria que não fosse necessário, é claro. Como o senhor percebe, sou um homem civilizado e de fino trato, mas pelo jeito não encontrarei terreno fértil para o bom senso por aqui.
- O senhor é um louco... – murmurou o médico.
- Eu não. - interrompeu, Munhoz. - Loucos são os senhores, que preferem que os estúpidos rigores da legislação prevaleçam sobre a vida! Doutor Albano, serei claro: mande preparar o seu centro cirúrgico ou teremos muito mais do que um doador de órgãos hoje aqui.
Pela primeira vez a ameaça deixara de ser velada. O médico ficou parado estático olhando para aquele homenzinho excêntrico empunhando uma arma, e que certamente teria algum problema mental.
Novamente ficaram os 3 mergulhados em um silêncio pesado por alguns segundos.
- Doutor, veja o senhor a minha situação... – o homenzinho dócil voltava a se manifestar.
Munhoz passou a contar ao médico a mesma história que havia contado à Rita. Seus olhos marejaram da mesma forma e a sua postura alternava a docilidade e educação com momentos de loucura onde os olhinhos por de trás dos óculos se espremiam e a voz baixava, secreta e assustadoramente.
Albano ouviu o relato todo e foi gradualmente traçando o perfil psicológico do indesejável visitante. Rita se mantinha imóvel na cadeira, hora fitavam um, hora o outro.
Recomposto do susto inicial, o médico passou a colocar em prática sua estratégia recém-elaborada:
- E o que o senhor pretende fazer? Obrigar a mim e a minha equipe a lhe extrair os órgãos?
- Preferiria não fazê-lo, mas não aceitarei que pela imposição de um sistema ignóbil e torpe, boas pessoas morram ou permaneçam cegas, enquanto eu serei enterrado com todos os meus órgãos prontos a apodrecer no fundo da terra.
- Pois bem - disse o médico –, suponhamos que frente à sua ameaça, eu ceda e aceite fazer tal coisa. O senhor já pensou que após ser sedado, posso simplesmente chamar a polícia e o senhor acordará na prisão ou no manicômio?
Munhoz não havia pensado nisso. Ia dizer algo quando Albano falou novamente:
- Entretanto o senhor está armado, deve estar pensando que pode, se desejar, atirar em mim e na Dona Rita. Sem dúvida pode! Mas então todos os seus esforços iriam por água abaixo, pois o senhor terminaria vivo e preso.
- Doutor, o senhor além de audacioso, é mesmo muito inteligente, devo admitir. Mas saiba que eu também sou.
O médico interrompeu-o procurando se manter no controle daquele xadrez emocional:
- O senhor é mais do que isso senhor Munhoz, o senhor é um homem nobre e bondoso, posso perceber pelo seu olhar e pela história de vida que o senhor nos contou. Tenho a certeza que não pretende matar ninguém! Deveria ir para a casa e reconsiderar esta besteira de acabar com a própria vida e doar órgãos antes da hora. Estou convicto de que vai encontrar em breve alguém que lhe mereça, ainda é um jovem, tem uma vida pela frente. Munhoz arregalou os olhos sem dizer nada. Albano não entendeu se ele havia gostado ou não da bajulação, mas prosseguiu:
- Eu e Dona Rita nos comprometemos a esquecer tudo o que houve aqui e o senhor sai por aquela porta como se nunca a tivesse atravessado...
- Não! – gritou inesperadamente, sobressaltando aos dois.
- O senhor não sabe nada sobre mim! Não sabe o quanto eu sofro, não sabe o que se passa aqui neste coração! E não sabe o que eu estou disposto a fazer para que meu último desejo seja realizado!
Munhoz agora estava em pé, chorava, descontrolado, as lágrimas desciam molhando sua face. A arma tremulando na mão direita, apontava hora para o médico, hora para a secretária. Era a imagem de uma surpreendente loucura; aquela loucura que irrompe da quietude, quando ninguém espera.
Albano percebeu que perdera o controle da situação. Sentiu a musculatura da pélvis se distender e um pouco de urina descer pela perna. Estava com um medo enorme de que o homem, de repente puxasse aquele gatilho. Fazia força para não demonstrar. Sabia que se perdesse a firmeza perderia tudo, era só com isso que contava naquele momento.
- Doutor, eu vim disposto a vencer esta batalha, pois será a minha última! – enfiou a mão no bolso interno do paletó e tirou um envelope.
- Abra esta carta e leia! – ordenou, jogando o envelope em direção ao médico. Albano abaixou-se, pegou o envelope e tirou dele 2 folhas grampeadas e inteiramente escritas. Tratava-se de um documento impresso e registrado em cartório.
Sacou os óculos do bolso do jaleco, colocou-os e leu atentamente. Por fim, dobrou o documento, devolveu-o ao envelope e disse:
- Muito bem meu caro Munhoz, se é que me permite chamá-lo assim. Este é um documento de doação de órgãos bastante inusitado, mas muito bem redigido. Realmente muito bom! – Albano procurava recuperar as rédeas craindo empatia com o homenzinho.
- Resuma para a Dona Rita o que o documento diz, doutor!
Munhoz voltara a se sentar, mas mantinha a arma apontada para o médico. Rita estava inerte no mesmo local e na mesma postura. Albano continuava em pé, firme. Um homem idoso, porém vigoroso e atlético, apesar do grave histórico cardíaco.
- Rita, o documento que acabo de ler, reflete a firme intenção do senhor Munhoz em doar todo o seu corpo: órgãos e pele para transplante e o restante do corpo para estudos em universidades. É uma espécie de testamento, onde o único bem é ele próprio. O documento explica também que ele não deixa bens materiais de nenhuma espécie e que não tem herdeiros e nem ninguém que responda por esta sua escolha, pois é um homem só, sem família e sem amigos. Ele é, portanto, soberano nesta decisão. Só ele e mais ninguém responde pelos seus atos.
- Muito bem, Doutor Albano! Reparou que 2 colegas seus atestam que não sou louco, como o senhor me acusou?
- Rita – prosseguiu o médico -, o documento é assinado por 2 advogados e 2 médicos que atestam que o senhor Munhoz não só goza de suas plenas faculdades mentais, como sua decisão é válida juridicamente e deve ser cumprida após a sua morte, não importa de que forma ela venha a ocorrer.
Rita parecia que havia sido embalsamada. O médico resolveu tentar mais uma cartada, apelando para o bom senso:
- Munhoz, lamento pelo que vou dizer, em especial, pois entendo a sua vontade e disposição; mas não posso matá-lo para extrair seus órgãos. Eu e toda a minha equipe seríamos presos e condenados se fizéssemos tal coisa. E pelo que pude perceber, o senhor é um homem bom, tudo o que quer fazer é para ser útil ao próximo. Por isso tenho a certeza que tal efeito não lhe seria desejado.
Munhoz concordou com a cabeça. Levantou-se, olhou para a secretária e em seguida se encaminhou em silêncio na direção do médico.
- Sou eu que lamento doutor. Lamento, pois acreditei que pudéssemos resolver isso de forma civilizada, sem derramamento de sangue, mas pelo jeito me enganei. Parou em frente ao médico, esticou o braço e pôs o cano da arma na testa do homem. Albano sentiu a frieza do metal e pensou que não imaginava que morreria assim, pelas mãos de um psicótico. Só teve tempo de fechar os olhos e clamar a Deus, antes de ouvir o estampido seco, depois o silêncio. Silêncio total.
Nunca imaginou que aquela era a sensação de morrer. Mas, inusitadamente, ainda sentia como se estivesse em pé, vivo. Pensou que possivelmente aquela era apenas uma percepção metafísica do corpo prestes a falir em definitivo. Algo que os religiosos convencionaram chamar de manifestação da alma. Abriu os olhos com medo de se achar flutuando ou ver o seu próprio corpo caído. Na sua frente não havia ninguém.
Percebeu então que estava vivo, de alguma forma estava vivo! Levou a mão à testa e não havia furo como supunha, nem sangue. Olhou para o chão e então compreendeu tudo.
Munhoz havia tirado a arma da testa dele e colocado na sua própria antes de apertar o gatilho. Seu corpo inerte jazia morto no chão da sala com um furo pouco acima da sobrancelha esquerda. Uma enorme poça de sangue crescia encharcando o tapete sobre seu corpo caído.
Rita continuava sentada, paralisada, em estado de choque. Os olhos vidrados agora fitavam o teto e as mãos ainda firmes seguravam a borda da mesa. Havia respingos de sangue em suas roupas e rosto. Pedaços de massa encefálica e lascas da calota craniana do homem repousavam sobre prateleiras e arquivos. Albano aspirou o ar e isso pareceu trazer-lhe novamente o sopro de vida. Voltou à realidade.
Pulou o corpo à sua frente, foi até o aparelho telefônico na mesa da secretária embalsamada, levantou-o do gancho e discou 2 números. Alguém atendeu do outro lado da linha:
- Centro cirúrgico, Doutor Miguel falando.
- Miguel, aqui é Albano, da direção.
- Pois não, doutor! - Preste bem atenção: solicite a imediata preparação do centro cirúrgico e da equipe de transplante. Temos um paciente com morte encefálica, liberado para extração imediata de todos os órgãos.
- Sim doutor. A morte encefálica foi confirmada?
- Confirmadíssima Miguel... Confirmadíssima!
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Cesar Cruz
Setembro/ 2007
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Um comentário:
Espetacular !! Prendeu-me a atenção, incrível mesmo.
Beijos
Carolie
29.9.08
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