A retirada

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Escrevi este conto para um concurso de crônicas. Chegou o resultado! Agora vamos prestigiar a crônica campeã:
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A chuva caía com violência lá fora. Trovoadas e raios rasgavam o céu naquela manhã escura. Seria o último e derradeiro presente da natureza, vindo em forma de adeus. Para mim o que sucedeu não foi surpresa.
Na hora em que a chuva começou a apertar, fomos todos trancados nas celas, como sempre faziam nessas ocasiões. Fiquei assistindo por entre as grades da diminuta janela, à chuva precipitar-se sobre o pátio. Sempre gostei de chuva, desde menino. Que delícia sentir os pingos caindo pesados, duros, sobre a pele da gente! Como é maravilhoso o aroma doce e morno que se desprende do chão e invade nossas narinas!
Então, eu estava lá, com o nariz metido entre as grades de aço, sentindo aquele delicioso perfume da natureza quando, subitamente, o registro celestial pareceu ter sido fechado. Jamais vi coisa igual. A chuva que caía abundante foi instantaneamente interrompida. Fez-se um silêncio assustador nos corredores do hospício. Logo os gritos recomeçaram e ouvi todos correrem às janelas, disputando espaço, cabeça a cabeça, para ver o que ocorrera.
Enfim, destrancaram os ferrolhos das portas liberando-nos ao ar livre.
O pátio estava bastante empoçado, mas o céu absolutamente límpido. Médicos, inspetores, enfermeiros e loucos, todos olhavam para cima sem compreender nada. Nunca ninguém vira uma tempestade ser interrompida daquela estranha maneira.
Cortei caminho em meio ao tumulto e ao burburinho e fui em direção ao meu refúgio predileto. Um setor distante do pátio, junto ao muro leste. O melhor ali era a suntuosa figueira existente no local. Aproximei-me e reparei que, dessa vez, a sua enorme copa projetava uma sombra pouco menor que a habitual. Olhei com atenção e a árvore inteira pareceu-me, de alguma forma, reduzida. Também havia algo estranho com o muro. A unha-de-gato, que ia do chão à cerca elétrica, sumira completamente.
Só então compreendi tudo: a retirada começara. Eu sabia que isso aconteceria... Talvez eu fosse o único humano a sabê-lo. Sentei-me sob a sombra da árvore e, em lágrimas, rememorei...
Dois anos antes, em certo domingo de verão, saltei da cama cedo, por volta das 6h.
O calor já começava a me perturbar, mesmo antes do raiar do sol. Minha mulher e as crianças dormiam. Fui à cozinha, preparei um café e fui tomá-lo no quintal, como de costume. Um clarão fraco já começava a se insinuar por entre as nuvens. De repente, ouvi vozes. Estanquei imóvel. Apurei os ouvidos. Pareciam vir do nosso pequeno pomar. Avancei na ponta dos pés em direção às plantas e hortaliças que cultivava com tanto amor. Quase cai de costas. As vozes vinham delas; as plantas estavam... Conversando!
A princípio eram só as plantinhas menores, mas logo o coro foi engrossado pela goiabeira e pelas samambaias africanas. Eu não queria crer!
O dia enfim clareou e os cochichos extinguiram-se. Vigiei o resto do dia. Silêncio total. Imaginei que tais reuniões só ocorressem na calada da noite.
Acordei na madrugada seguinte e me postei numa banqueta bem no meio do jardim. Permaneci assim, quieto, aguardando. Como eu já suspeitava, logo a reunião começou. Entre as vozes finas e fracas, um vozeirão grave destacava-se emitindo opiniões: era nosso poço artesiano que, como um barítono lírico, produzia notas guturais que emergiam à superfície. Dias depois descobri que a voz não era do poço, e sim das águas do lençol freático.
E assim foi... Por dias, semanas, meses...
As reuniões eram regulares. Caderno na mão, passei a anotar tudo o que deliberavam. Discutiam basicamente sobre o que chamavam de “A retirada”. Seria o dia em que, caso o homem não tomasse juízo a tempo, desistiriam terminantemente e abandonariam o planeta.
Descobri que reuniões como aquelas vinham acontecendo em todos os lugares do mundo. Resolvi contar às pessoas, começando por família e amigos. Todos riram de mim. Insisti. Nada. Escrevi para jornais, revistas, emissoras de TV e rádio. Não me deram crédito.
Por fim, acabei como louco e fui internado.
Faz 1h que estou aqui junto à figueira. Ouço-a recolher-se centímetro a centímetro para o fundo da terra. Percebo os funcionários se mobilizando, capto rumores de que está faltando água. Não sabem como a caixa d’água pode estar seca. Olho para a minha esquerda, ao longe, e vejo o canteiro antes ajardinado, agora vazio.
Ah! Não quiseram me ouvir! Pagarão agora o preço da ignorância! Dentro de poucas horas as cidades estarão inoperantes e inóspitas! Não haverá água, alimento, energia elétrica. O ar se tornará irrespirável, faltará oxigênio. Os moradores das regiões litorâneas verão o mar recuar e a faixa de areia crescer até que alcance o horizonte. Atribuirão o fato às marés, mas logo todo o oceano transformar-se-á num deserto seco e esturricado pelo sol. Em poucos dias não haverá mais mar sobre a face da terra.
Os animais e os homens perecerão aos bilhões, até sua extinção total. A espécie humana sucumbirá sob o peso de sua inconsciência e de seu descaso.
Eu tentei avisá-los! Ah, eu tentei! Agora todos pagaremos... Todos, todos!
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Cesar Cruz
Agosto 2008
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9 comentários:

Anônimo disse...

Eu li, boa sorte!
Acho que nessa linha que você foi vai surpreender.
Mari
22.8.08

Anônimo disse...

A-D-O-R-E-I ! ! !

Achei muito bom este texto. Se eu estivesse no juri, com certeza você seria o campeão.

Muitos beijos,

Lena
26.8.08

Anônimo disse...

Bacana irmãozinho! Criatividade da porra! To na torcida...
Gilson
Vitória da Conquista - Bahia
27.8.08

Anônimo disse...

César, fizeste uma limonada de um limão seco, meu amigo! Esse tema aí é de matar de chato... esta de parabens!
Marcos
27.8.08

Anônimo disse...

Sensacional, meu amigo. Seu melhor causo. Este eu gostaria de ter escrito. Devo passar a chamá-lo de Julio "Cesar" Cortazar?
Grande abraço,
Gabriel
31.8.08

Anônimo disse...

Gostei muito da crônica. Perfeita. Simples e contundente. Parabéns.

abraços
Ciro
31.8.08

Anônimo disse...

Ainda não tinha lido esse texto... Ficou muito bom! Você como sempre surpreendendo. Boa sorte no concurso.

Beijos

Carla
1.10.08

Anônimo disse...

Gostei! Ficou no estilo do Murilo Rubião, que talvez seja um dos maiores contistas do realismo fantástico brasileiro.

Estou torcendo!!!

Ah! E este tema da água coincide com o business da Astra...

Vagner
1.10.08

Anônimo disse...

Ah! ... e qdo sai o resultado?

Bjos
Carla
2.10.08