Guarda-chuvas

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Sempre me causa curiosidade quando ouço alguém falar que perdeu um guarda-chuva. Só se ouve isso e nunca o contrário. É raríssimo alguém relatar que encontrou um perdido. De dez perdidos só um é encontrado. Estranho... muito estranho... Nunca comentei com ninguém, mas intimamente, sempre acreditei que devesse existir em alguma parte, um local onde todos os guarda-chuvas estariam refugiados, escondidos. Todos eles.
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Agora são exatamente 4h23 da madrugada de uma quinta-feira que deve revelar seus primeiros raios de sol dentro de poucas horas. Minha mulher dorme lá no quarto e nem imagina que nossa vida sofrerá uma reviravolta daqui a pouco. Após escrever esta carta, vou acordá-la e fugiremos antes do amanhecer com poucos pertences e as roupas do corpo, deixando tudo para trás.
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O relato que segue esclarecerá o motivo de tão radical atitude. Apesar de parecer absolutamente surreal, o que você vai ler a seguir é a mais pura verdade. Eu possivelmente não acreditaria caso isso me fosse contado, mas não posso deixar de registrá-lo, ainda que o amigo, seja você quem for, possa duvidar da sua veracidade.
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Moro no décimo primeiro andar de um prédio na zona sul da cidade de São Paulo. As madrugadas aqui são tranquilas, pois além da minha rua ser sem saída, o que dificulta a movimentação de carros barulhentos, a altura que me encontro do solo dissipa boa parte das ondas sonoras indesejáveis. Entretanto, há aproximadamente três horas, aconteceu que fui acordado por ruídos esquisitos, ruídos de vozes, como se fossem centenas, milhares de vozes reunidas. Perdi o sono. Olhei o relógio sobre a mesinha ao lado da cama: 1h30 da madrugada. Apurei os ouvidos e no silêncio da madrugada pude perceber pelo abafamento, que o som parecia partir de um local fechado. Assemelhava-se à torcida de um estádio lotado, envasada dentro de alguma caixa gigante. Mas como? Na região onde moro não há estádios ou ginásios fechados, além do mais, como poderia ser isso em plena madrugada de um dia de semana?
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A curiosidade, como a lava ardente de um vulcão, movia-se lenta e incontrolavelmente dentro de mim. Levantei da cama sem fazer barulho para não acordar minha mulher. Vesti minha jaqueta de lona por cima do pijama, calcei um tênis e saí de casa. Já na rua, em meio ao nevoeiro gélido, fui seguindo o som, disposto a descobrir de onde vinha e do que se tratava. Coloquei o capuz e fui andando, abraçado a mim mesmo.
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Virei na primeira rua à esquerda e me encaminhei até o seu final. Havia ali uma escadaria que eu nunca havia percebido que existia nas minhas andanças diurnas. O som agora estava mais forte, retumbante. Parecia mesmo se tratar de um grande ajuntamento de pessoas.
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O frio queimava minha pele, da minha boca ofegante saia densa fumaça. Parei um pouco a pensar; observei durante alguns instantes a íngreme sucessão de degraus que parecia sumir no breu e na névoa. Resolvi descer. Venci o longo escadão até a metade. Cheguei a um patamar de concreto que era como uma pequena pausa antes do início da segunda metade da descida. A escuridão e a neblina causavam um efeito assustador. Dali podia-se avistar toda a parte baixa do bairro e os telhados das casas. Localizei finalmente de onde vinha o som. Saía de um grande galpão que foi no passado um conjunto de quadras anexas a um colégio que havia partido dali há tempos. No local edificaram um prédio de escritórios, obviamente vazio naquela hora. O galpão, que deveria ter em torno de cinco mil metros quadrados de área, já há muito estava para alugar, desocupado. Pelo menos até onde eu sabia...
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Resolvi ficar por ali mesmo. Me alojei num ressalto de cimento, que parecia uma pequena banqueta; abracei firmemente minhas pernas para me proteger do frio cortante. Enterrei o queixo entre os joelhos e fiquei a escutar. Da minha posição dava para visualizar, por uma fresta no telhado de zinco da quadra, uma movimentação de homens baixos; baixos e aparentemente muito magros. Levei a mão ao bolso interno da jaqueta e peguei os óculos que havia trazido. Coloquei-os e... Não acreditei no que meus olhos estavam vendo! Meu coração saltou no peito, o medo do desconhecido me invadiu de forma avassaladora. Aquele mesmo medo que sentimos quando somos meninos e temos que encarar um quarto escuro, cheio de sombras.
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A movimentação de formas que meu cérebro queria negar que estivesse processando, não era de homens baixos e magros como eu acreditara, era de guarda-chuvas! Centenas, milhares deles!
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Consegui segurar o grito de horror que quis escapar de minha garganta, mas entrei em estado de choque. Tonteei e quase cai, meu corpo tremia dos pés à cabeça. Pisquei os olhos por várias vezes, com força, e sacudi a cabeça, para me manter lúcido e consciente. Por fim consegui vencer o descontrole e permaneci ali, petrificado, observando o que parecia ser um encontro, um insólito encontro de guarda-chuvas.
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Meus pensamentos atordoados foram interrompidos por uma voz que chegou varando a noite e ecoando pela escuridão até encontrar meus ouvidos. Apurei a audição atento, e, acreditem ou não, o que detalho a seguir não é nem mais nem menos do que a exata reprodução da verdade.
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- Boa noite senhoras e senhores! – disse, de cima de um palco de madeira, um dos guarda-chuvas que empunhava um microfone. - É um prazer incomensurável contar com a obsequiosa presença de todos os senhores aqui. Como todos já sabem, hoje estamos nos reunindo para deliberar em torno de um único assunto, porém de enorme relevância.
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Por um outro vão, mais à esquerda, eu podia ver outros guarda-chuvas que adentravam atrasados ao recinto e iam se assentando em esbeltas cadeiras. Nunca vi cadeiras tão magras como aquelas - possivelmente cadeiras próprias para guarda-chuvas. Alguns se exibiam abertos e agitados, outros fechados e mais tímidos. E o guarda-chuvas locutor prosseguiu:
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- Sem mais delongas senhores! Vamos logo à proposição que nos traz aqui.
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A insólita assembléia de guarda-chuvas estava em silêncio total. Nem um crispar de varetas podia-se ouvir, nem um único abrir e fechar de lonas. A atenção era absoluta. O guarda-chuva mestre de cerimônias continuou:
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- Pela contagem que me chega às mãos, estamos com um público de trinta mil companheiros articulados reunidos neste recinto; fato que por si só já é uma vitória! Que maravilha! Não temos nem lugares para todos!
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A audiência desmoronou em assovios, gritos e abres e fechas. Do meu privilegiado e insuspeitado observatório, podia ver os trajes que usavam. Alguns vestiam cinta de velcro e capa abotoada, outros mais velhos, usavam com cores mais sóbrias, estampas xadrezes e alça de madeira de lei, além de grandes ponteiras metálicas; sem falar nas sombrinhas também presentes: moçoilas floridas em cores alvissareiras. Algumas mais atrevidas, usavam roupagem sexy, semitransparente, pouco adequadas a evento tão austero.
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- Senhores, por gentileza! Vamos nos aquietar! Antes do pleito temos que expor todos os pormenores para que possamos votar com probidade e assertividade, para isso vou passar a palavra ao brilhante companheiro e nosso inspirado mentor, Teobaldo! Palmas, por favor!
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Seguiu-se uma longa ovação, enquanto Teobaldo subia ao palco e se preparava. Após alguns minutos, o tal guarda-chuva, modelo antigo e de vestes clássicas, pôs os óculos, empunhou o microfone e começou:
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- Senhoras e senhores guarda-chuvas aqui presentes, serei direto para que possamos partir logo para o plebiscito. Peço a todos que acompanhem atentamente o que vou dizer, pois enumerarei tópicos que deveremos analisar profundamente antes de colocarmos nossos votos na urna. Lembrem-se que, neste mesmo instante, outra centenas de reuniões como esta estão acontecendo no país todo e...
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Meu sangue congelou nas veias. O que estariam armando tantos guarda-chuvas reunidos na calada da noite pelo país todo? O tal plebiscito seria para decidir exatamente o quê? Pensei em ir à polícia, mas me contive e continuei a ouvir.
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Teobaldo então iniciou:
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- Tópico No 1: de todos os objetos de uso pessoal dos homens, somos o mais antiquado e o único, juntamente com o lápis, que não sofreu evolução alguma nos últimos trinta anos. Vejam que nem entramos na era da eletrônica ainda! Até mesmo nossos nomes e nossa forma de falar são antiquadas!
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O burburinho se reinstalou novamente. Todos falando ao mesmo tempo, uns concordando, outros protestando.
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- TÓ-PI-CO No 2! Gritou Teobaldo, salientando cada sílaba, com o intuito de aplacar os ânimos. Então prosseguiu:
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- Somos o artefato mais tradicional do mundo ainda em uso! Os fósseis mais antigos dos nossos ancestrais datam de três mil anos! Ainda assim, temos sido relegados a um canto, alijados dos melhores lugares da casa dos homens, fomos esquecidos quebrados em um armário, ou guardados úmidos e vestidos durante o verão! O ser humano tem sido ingrato e inclemente para conosco, senhores. Não podemos mais permitir tal tratamento!
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Novo alvoroço, desta vez contido energicamente pelo apresentador:
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- Senhores! Por favor, tenham a fineza de conter seus ânimos para que não percamos tempo. Guardem sua ira e sua indignação para a revolução, pela qual decidiremos hoje!
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Estava aí a resposta à minha indagação. Então seria isso; uma revolução. Comecei a ter medo, muito medo.
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Todos ficaram calados mais uma vez. Meus pensamentos rodopiavam em um turbilhão furioso de possibilidades, o nervosismo mantinha meu coração num ritmo assustadoramente acelerado. O que ele queria dizer com revolução? Será que nós, os humanos, correríamos riscos? Logo eu teria a resposta...
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- Obrigado – disse o líder, arrumando os óculos com a ponta de uma vareta. - Prossigamos. Tópico No3: De acordo com nossos levantamentos, somos o artefato de uso pessoal humano, mais perdido em todo o mundo e em todos os tempos. O cômputo das recentes pesquisas nos colocam à frente de diminutos companheiros como o grampo de cabelo e o clipes de mesa. Como pode isso? Vejam a diferença de tamanho, senhores! A mesma pesquisa mostra outro dado interessante: as pessoas que nos perdem nem ao menos voltam para nos procurar! É um enorme descaso e ingratidão para conosco! Milhares de anos de serviços prestados e é isso que recebemos?
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A platéia atenta e indignada parecia corroborar com tudo. Teobaldo continuou:
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- E pior, aqueles que nos encontram perdidos, dificilmente nos adotam, aumentando assim o número de órfãos em nossas fileiras. E é desta forma, senhores, que a população de irmãos indigentes e desassistidos nas cidades só tem aumentado nos últimos anos.
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O burburinho foi geral. O sentimento coletivo de injustiça era quase palpável. O locutor voltou a falar atraindo novamente as atenções e silenciando a platéia:
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- Já somos trinta milhões de desarrimados entregues à própria sorte só na América Latina, amigos. Até quando vamos permanecer em pé, embolorados atrás de uma porta, sem tomarmos uma providência? Temos que sair desta lassidão e precogitar nossa insurreição!
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A voz rouca de Teobaldo cortava agora o pesado silêncio que se instalara no salão.
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- Senhores, se não nos insurgirmos, acabaremos extintos e seremos em um hiato de tempo uma apagada reminiscência na mente dos homens mais velhos...
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Lágrimas de autocompaixão desciam por varetas e caiam ao chão.
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-... e, em poucos anos, as novas gerações nem saberão que existimos um dia. Seremos como o realejo, o penico e o chapéu panamá.
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Cabeças se moviam mostrando concordância.
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- Tópico No 4! Senhoras e senhores, precisaremos ir à sarrafusca se quisermos sair desse ostracismo em que estamos metidos. Essa rota nos levará Aonde? À extinção, é claro. Só lutando é que voltaremos a ser fabricados em fábricas de verdade! Queremos voltar a sair quentinhos de grandes linhas produção, experiência que só os mais velhos aqui deste recinto puderam provar. A maioria de nós foi mal feita, costurados e montados em fundos de quintal. Teobaldo então baixou a voz e passou a falar num tom íntimo, quase sussurrado:
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- Aqui de cima, queridos, posso ver irmãos ainda jovens já com aparência de velhos. A maioria de nós tem morrido antes dos dois anos de idade por pura falta de saúde. Como podemos admitir tal barbaridade?
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Com olhares que mesclavam indignação com autopiedade, aqueles milhares de guarda-chuvinhas acompanhavam a enumeração das suas mazelas feitas pelo veterano e sábio palestrante.
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Para mim, ali do meu frio belvedere, ficou claro que eles estavam dispostos, no mais íntimo das suas armações, a fazer a tal revolução. E possivelmente seria uma revolução sangrenta.
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A voz de Teobaldo ecoou pela escuridão tirando-me de meus pensamentos.
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- Senhores, eu já sou um vetusto perto da maioria de vocês aqui, mas meu sistema automático ainda funciona e nunca quebrei uma vareta. Sabem por quê? Sabem qual a diferença? A diferença é que nasci há vinte e sete anos, na época em que os homens nos fabricavam para uma vida longa e feliz ao lado deles, e não para o finamento precoce, no abandono, como ocorre hoje.
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O líder falava com a intenção de tocar os mais profundos sentimentos na multidão. Queria provocar uma comoção, uma comoção passional. E estava conseguindo.
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- E é só por isso, queridos, que estou aqui nesta noite. Estou aqui, pois quero ver em breve novas gerações vivendo com higidez e desfrutando do amor de seus donos. Nem que para isso tenhamos que verter sangue humano...
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Com sua tarimba de palestrante veterano, passava a erguer gradualmente a voz, provocando uma ebulição de emoções na audiência:
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- Amigos! Sonho em ver nossos descendentes, sejam eles automáticos, mecânicos ou quem sabe, eletrônicos, usufruindo saúde e longevidade!
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Os milhares de olhinhos na platéia estavam incendiados agora. Teobaldo passou a bradar:
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- Só nos resta a luta, irmãos! As urnas esperam nossos intrépidos votos! Coragem! AVAAANTEEEE! – proferiu estas últimas palavras acionando o seu sistema automático que o fez abrir gloriosamente os longos braços metálicos, revelando para o público a sua cobertura clássica em couro marrom.
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A multidão repetiu o gesto produzindo um rugido colossal, semelhante a uma grande explosão de fogos de artifício. O recinto se transformou em um espetacular mar de cores e formas.
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Eu não podia acreditar no que via. Decidi fazer a única coisa sensata que me ocorreu: pegar minha mulher e fugir.
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Enquanto eu subia a escada correndo, ainda virei para dar uma última olhada. Pude ver milhares de guarda-chuvas em fila indiana, caminhando em uma lenta e organizada procissão em direção às urnas. Um a um depositavam seus votos.
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Fiquei imaginando aquela cena se repetindo, naquele mesmo momento, em centenas de galpões, porões, becos e nos mais sombrios recônditos das cidades do país. Mais do que medo, tive pavor. Quantos seriam no total? Milhões possivelmente!
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Não tive dúvida quanto ao desfecho, o sim à tal revolução seria dado nas urnas, invariavelmente.
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Corri como um desesperado, até chegar em casa. Entrei silencioso para não acordar minha mulher. De repente, ocorreu-me uma coisa louca; fui à lavanderia conferir... Como eu previa! Nossos dois guarda-chuvas não estavam lá, atrás da porta! Para mim já era mais do que suficiente...
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Fiz uma pequena mala com nossos pertences pessoais e uma troca de roupas para cada um. Em seguida vim para a sala e me sentei aqui, frente a esta folha de papel, para deixar relatado tudo o que presenciei.
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Partirei dentro de instantes; mas é bom que todos saibam que, assim que o sol raiar, os moradores das principais cidades do país serão surpreendidos por milhões de guarda-chuvas em revolução organizada, bloqueando as estradas, fechando as principais avenidas, invadindo casas, prédios, colégios, empresas; tombando carros, incendiando ônibus... Farão isso, abrindo e fechando furiosamente suas lonas, perfurando, inclementes, com suas ponteiras e varetas, homens, mulheres e crianças... E cantando... cantando hinos de guerra.
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Cesar Cruz
Julho/ 2007
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6 comentários:

Anônimo disse...

Olá Cesar,

Achei demais este conto. Dá-lhe criatividade. Muito bem escrito!

Agora estou me preparando para ler o Blackout.

Abraços!
Marcelo Lopes

17.8.08

Anônimo disse...

Grande-pequeno-César-careca!
Fala meu irmão! Tempão que não falamos!
Recebi teu email. Poxa, cara! Tá escrevendo um montão! Que história sensacional é essa?
Que imaginação! Po, to torcendo por vc! Dá dinheiro isso? rararara! Aposto que não! rararara!

saudações
Renan

11.9.08

Anônimo disse...

Fala Cesão, meu estou impressionado o quão bem esta escrevendo, e esse conto?!, que imaginação!!
Com essa qualidade pode escrever em qualquer jornal e revista.
Parabens.
Abraço
Estou esperando nosso café
Abraço
Manoel

13.9.08

Marcelo Lopes disse...

Olá Cesar,

Arrumei mais um leitor para seu blog. É meu primo que também escreve e tem um blog e gostou muito deste causo Guarda-chuvas.

Grande abraço,

Anônimo disse...

rsrsr dá até para criar um capitulo 2 começa a revolução rsrsrs


stheffania

CESAR CRUZ disse...

Stheffania, me mande o link do teu blog por email, ou me escreva,, poi nao estou conseguindo acessar seu blog. Nn, e obg pelo prestigio! Cesar