Sorteada



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Domingo, miolo da tarde. O pai, deitado no sofá da sala vendo televisão. A mãe, na cozinha, lavava a louça do almoço. Mariana, no quarto, estava espichada na cama lixando as unhas e cantarolando a musiquinha que soava do rádio sobre o criado-mudo.

Pensava na vida, no trabalho de telemarketing, no filho que completaria dois anos em breve, e no porvir, tão incerto para alguém que, com apenas dezenove anos, já enfrentava as dificuldades típicas da vida de todo o brasileiro.
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O celular não tocou, mas tilintou ao seu lado tirando-a de seus pensamentos. Mensagem de texto. Mariana arregalou os olhos ao ler a mensagem e saltou da cama:
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- Mãe-do-céu, ganhei um carro! Mãnhê! Mãaanheeeê!
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A mãe e o pai vieram correndo e se acotovelaram sob o umbral da porta do quarto. O pai, só de short e cabelo desajeitado; a mãe, cheirando a fritura do almoço e secando as mãos num pano de pratos:
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- Ai, meu Deus! Como é isso, minha filha? Explica!
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- Olha aqui, mãe, ganhei na promoção! É um carro Fox!
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Pai e mãe se entreolharam. Não sabiam exatamente o que era um carrofox, mas sabiam muito bem que uso dariam ao dinheiro da venda do veículo. Os três pares de olhos sorriram em silêncio, cada um com seus planos instantaneamente formulados. Então se debruçaram sobre o visor do aparelho.
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- Filha! Diz aí que é pra ligar pra um número, vê só. – alertou a mãe.
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- É mesmo, mãe. Diz que é pra validar a promoção. Vou até a tia ligar!
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Mariana calçou o tênis e saiu de casa como louca. Voou até a casa da tia, três quarteirões adiante. A irmã da mãe era a única, nas imediações, que dispunha de telefone com conta em dia e funcionando. A tia abriu a porta e Mariana já foi avançando sala adentro, pegando o fone sobre a mesinha e discando, como sempre fazia, sem cerimônia. Enquanto discava, explicava à tia a história.
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Dois toques e atenderam. A tia fazia figas e orava à Virgem. Caso a sobrinha tivesse mesmo ganhado um carro, poderia vendê-lo e pagar o que lhe devia, que só em telefonemas somava uma fortuna. A menina falou por um minuto com alguém, anotou algo em um papelzinho e desligou:
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- Tchau, tia. Depois te levo dar uma volta no meu carro novo! – e saiu da casa da tia como entrou, zunindo.
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Carregava o celular numa mão e a bolsa na outra. Correu de volta pra casa. Enquanto trotava desajeitada pela rua, ligou para a mãe com os últimos créditos que dispunha. Orientou-a a pegar um envelope com dinheiro que estava no fundo do seu armário, atrás da pilha de roupas. Pediu que a mãe a esperasse na porta de casa, para adiantar o processo, pois dispunha de apenas meia hora para cumprir a tarefa. Eram as condições da promoção.
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Na sala, o pai, com uma lata de cerveja aberta sobre o braço do sofá e munido de uma calculadora, fazia planos. A tabela do suplemento de veículos informava que o carro que acabara de ganhar valia quarenta mil reais. Daria para quitar o apartamento, pagar os fiados, a luz atrasada, religar o telefone e ainda comprar um Monza vermelho, seu sonho.
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A mãe, sempre companheira, já a esperava na calçada com o envelope na mão. Viu quando Mariana dobrou a esquina, correndo, e veio vindo, afobada, como numa corrida de bastão, rancou o volume da mão estendida da mãe sem interromper a carreira e prosseguiu, galopando e sacudindo os peitos gordos na direção da farmácia, o único estabelecimento aberto numa tarde de domingo que poderia vender créditos de celular.
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Ainda faltava um quarteirão, Mariana já estava em frangalhos, esbaforida, descabelada. Mas isso não importava, entraria numa academia, largaria de fumar, lipoaspiração na cintura, um ajustezinho no nariz, roupas novas; afinal, ela agora era dona de um carro novinho, que venderia e com uma parte compraria um carro usado bonitinho, e alugaria um cantinho só pra ela, com fez a Carolaine, assim não teria mais que dar satisfação a ninguém, e sairia também daquele maldito emprego, e mandaria o Hugo da expedição à merda e...
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A mãe fechou a porta e encostou a testa na parede, as mãos unidas junto ao queixo, uma prece rápida a um santo, que tadinha da sua filha, mãe solteira, tão sacrificada, tão trabalhadora, então largou de rezar e passou a mão do telefone discou - a cobrar - para a sobrinha casada, e contou a história, exultante: “Saímos da lama, minha filha”, dizia. “Agora vou poder fazer a festa de 2 anos do meu neto, tadinho, e num salão de festas, e vou comprar uma lavadora de pratos, que minhas mãos já tão que não aguentam, e trocar o sofá da sala...”.
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Mariana dobrou a última esquina e pulou pra dentro da farmácia, deixando-se cair sobre o balcão, resfolegante, a camiseta colada de suor na peitaria, estado deplorável, os cabelos colados na testa, na mão, amassado dentro do envelope, o dinheiro que tinha sobrado do salário. Dinheiro que pelos próximos vinte dias, antes do dia 5, dariam conta das refeições, do ônibus, do metrô, do cigarro... Pronto, agora era só comprar os duzentos reais em créditos de celular e colocar no número que o operador havia lhe passado; estaria validado o prêmio. Não hesitou, estendeu o papelzinho amassado ao balconista:
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- Rápido, coloque duzentos em crédito neste número, taqui o dinheiro.
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A sobrinha, mais instruída, ao ouvir a história contada pela tia sentiu-se obrigada a interromper sua alegria:
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- Tia, isso é golpe.
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- Quê! Como golpe?
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- Tia, pensa: como pode uma promoção obrigar o sorteado a gastar duzentos reais em créditos para um celular desconhecido? E se vocês não tivessem o dinheiro? E se fossem pobres? Isso é inconstitucional! Ninguém é obrigado a desembolsar dinheiro para ganhar prêmio! É o contrário: primeiro se ganha, depois se gasta.
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- Não... mas... será que...
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- Tia, me escuta. Isso é bandido ligando de dentro de presídio...
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- Mas...
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- Pelamordedeus, tia! Liga já pra Mariana! Não deixe ela comprar isso!
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A mãe desligou o telefone e discou avoada pro celular da filha. Ouviu a mensagem habitual:
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- Este telefone está temporariamente impossibilitado de realizar chamadas, obrigado. Tu, tu, tu, tu, tu, tu...
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Desesperou-se. Mariana estava incomunicável. Pensou em correr pela rua, mas o coração não dava pra isso. Desabou em pranto, o pano de pratos jogado no ombro e as mãos no rosto.
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O pai, alheio aos acontecimentos, perdia-se em inescrutáveis sonhos de consumo enquanto recortava coisas no jornal.
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O atendente da farmácia, um senhor já de certa idade, olhou para o número rabiscado no papel e intercedeu, em nome do bom-senso:
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- Moça, você vai colocar duzentos reais em um celular da Bahia?
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- Celular da Bahia? Nada disso! Esse é um número de uma promoção.
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- Olha, eu tenho um filho morando na Bahia, e esse código de área eu conheço bem...
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- Não me faz perder mais tempo e cobra logo isso! – disse, ríspida – Sou uma mulher de negócios, tenho horários e compromissos!
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Mariana saiu da farmácia sem agradecer, como os ricos fazem, como faz o doutor Silva; o sol do fim da tarde esquentando seu corpo, secando o suor. Sorria olhando pela última vez aquele bairro feio e pobre, que deixaria em breve, pois ela agora era parte de outra realidade social; poderia até mesmo viver de renda, se quisesse.
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Cesar Cruz
Agosto/ 08
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9 comentários:

Anônimo disse...

OI CÉSAR

ISSO ACONTECEU COMIGO, ISTO É, COMEÇOU A ACONTECER, ELES ME LAVARAM 30,00 DE CRÉDITO E, EM SEGUIDA, OS PRÊMIOS ERAM TENTADORES DEMAIS E EU QUE JÁ ESTAVA (E ANDO) CABREIRA, PAREI, DESLIGUEI E LIGUEI PARA A NESTLE E CLARO (É CLARO!), NAO HAVIA PRÊMIO ALGUM !!!

MAS, EU, QUE ME VANGLORIO DE SER ESPERTA, COMECEI A CAIR NO CONTO, QUE POR SINAL É MUITO BEM FEITO.
BEIJOS A VOCÊ
CAROLIE

PS. NÃO PRECISO DIZER QUE SEUS "CAUSOS" ESTÃO CADA VEZ MELHORES, POIS ESTÃO.
2.8.08

Anônimo disse...

cobiça cega, meu caro. Muito bom. Lembra o estilo Camus. A propósito, você não quer comprar uns créditos para o meu celular? O número é 9973- Ha Ha Ha!
Abração,
Gabriel
3.8.08

Anônimo disse...

Estimado colunista! Gostei do seu causo publicado no jornal do cambuci semana retrasada. Parebens! Apreciei este também, muito adequado ao momento, pois sabemos que muita gente de bem tem caído em arapucas como essa.
um forte abraço
Danilo Riegas
{diretamente da vizinhança: Galvão Bueno, Liberdade - São Paulo -SP
4.8.08

Anônimo disse...

Parabéns, gostei.

Ricardo Gondim
5.8.08

Anônimo disse...

César. Há uma coisa que não pode-se esquecer de mencionar: a ingenuidade humana existe, mas há sempre um potencial de exacerbação quando há falta de cultura, escolaridade por parte das pessoas. Exatamente o que aconteceu nesta história; que (não sei se é verídica ou urdida), de qualquer feita, é muita bôa. Parabens.
Fred
professor e escritor
Fernandes Pinheiro - PR
5.8.08

Anônimo disse...

Amigo, parabéns pela bôa história. Provocou curiosidade, ansiedade, risos e dó (da moça). Lembrou-me Rubem Braga.
1 super beijin pra voce!
Vlw mesmo! Graziella Ramos

obs.: sou escritora de histórias infantis e quadrinhos. Logo terei um website. Assim que o fizer aviso para que você tambem me honre com sua visita.
7.8.08

Anônimo disse...

Amigo, parabéns pela bôa história. Provocou curiosidade, ansiedade, risos e dó (da moça). Lembrou-me Rubem Braga.
1 super beijin pra voce!
Vlw mesmo! Graziella Ramos

obs.: sou escritora de histórias infantis e quadrinhos. Logo terei um website. Assim que o fizer aviso para que você tambem me honre com sua visita.
7.8.08

Anônimo disse...

Eliezer Muniz disse...
Fla Césinha,

meu brigado pelo comentário no meu Blog,


E o Sirí - como vai?


Abraço a tod@s!!

Anônimo disse...

Muito bom. Ótimo suspense. Com um final interessante mesmo.

Já disse que você vai longe?

Jayro