A catarse da garrafa de mel

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Chegamos da rua por volta das dez. Isso foi na semana passada. Fazia uma dessas noites quentes que tem feito ultimamente. No elevador, a Michele, que tinha corrido pelos corredores do shopping que nem uma maluquinha, até se esbaforir e exaurir suas energias, já estava dormindo no colo da Vanessa, com o queixo apoiado em seu ombro.
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Eu carregava um embrulho com meu doce predileto, o haleu (se escreve halawi, mas eu, que sou apreciador há décadas dessa iguaria, me dou o direito de escrever como se fala), aquela delícia feita com pasta de gergelim.
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Eu não via a hora de a porta do elevador se abrir para que eu metesse a chave no trinco de casa e avançasse feito um viking para a pia da cozinha, para finalmente destroçar, a espetadas de garfo e dentadas, a minha guloseima árabe.
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Entramos em casa. A Vanessa seguiu para o quarto para trocar a fralda da Mi e pô-la no berço para o sono dos inocentes. Quanto a mim, corri para a cozinha, cheio de más intenções pra cima do indefeso doce.
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Depois da primeira garfada me ocorreu que bom mesmo é derramar mel sobre o haleu! E eu tinha um belo mel guardado no armário.
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Abri uma porta alta, afastei uns mantimentos e lá estava ele, no fundo, bem embrulhado em duas sacolas plásticas de supermercado para não atrair formigas.
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Fazia um tempão que eu não o via. Coloquei-o sobre a pia, livrei-o dos plásticos e sorri feliz, no silêncio noturno da minha cozinha. Ele pareceu me sorrir de volta, dourado e semicristalizado. Uma lindeza de mel. Soltei a rolha curtinha e cheirei-o. Delícia. Entornei a garrafa deixando derramar um pouco sobre o doce.
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Enquanto eu comia me lembrei do dia em que comprei aquele mel. Foi numa tarde ensolarada, há cerca de dois anos. Eu estava no escritório da minha despachante discutindo algo referente ao documento vencido do meu carro. De repente, a porta de vidro que nos separava da rua se abriu e, junto com o calor e o barulho, entrou uma mocinha loira carregando uma pesada sacola.
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- Dá licença, senhora – disse pra dona Carmem – Sou vendedora de mel. Eu e meu marido temos um apiário no interior...
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Enquanto falava, já ia tirando as garrafas da sacola e pondo-as, uma a uma, sobre o balcão, fazendo desaparecer os documentos e fotocópias que eu tinha levado.
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- Nosso produto é o melhor da região, nunca colhemos em dias chuvosos e...
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Dona Carmem sumiu por detrás das garrafas.
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- Temos de laranjeira, eucalipto, assa-peixe, silvestre...
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As garrafas eram bonitas, faziam um estilo antiquado, com aquelas rolhinhas de cortiça bem pequenas, quase sensuais. As tonalidades também eram bem diferentes: amarelo claro, dourado, laranja...
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Comprei.
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Então, lá estava eu, dois anos depois, olhando para aquela garrafa e comendo o meu haleu banhado no mel de assa-peixe (que, de acordo com a loirinha, seria o melhor para os nervos).
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De repente me ocorreu um pensamento estranho: Aquela garrafa miserável sobreviveu à minha mãe e à minha tia (amigas inseparáveis que habitaram por uma década sob o mesmo teto). Ambas mortas há menos de dois anos. Uma após a outra. Em tão pouco tempo, perdi as duas... Merda de vida... Quem poderia imaginar? Garrafa maldita! Ela deveria saber! Sobreviveu às minhas desgraças, quietinha e cínica, dentro do meu armário. Ficou ali, naquele escurinho silencioso, de bico fechado, enquanto a realidade, essa implacável máquina de moer gente, esmigalhava as minhas esperanças.
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Os objetos são assim mesmo: permanecem dentro de armários, pendurados em cabides, no fundo de gavetas. Por fim, sobrevivem a nós. Nos enterram, os desgraçados.
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Eu pensava nessas coisas enquanto ia comendo o meu haleu. Meu pai adorava haleu. Lembro-me da minha mãe comprando haleu para ele, quando eu era bem pequeno.
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Olhei pra garrafa de mel com rancor e ódio. O tal efeito calmante do mel assa-paixe parecia não estar funcionando. Também com esse nome.
“Enterradora de gente” – pensei, fitando-a friamente.
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Lembrei-me do dia em que meu pai morreu: 23 de outubro de 1990. Naquela terrível noite, foi o valente amigo Baxo que me ajudou a reconhecer e a vestir o corpo do ainda jovem Aloisio, que partia com apenas quarenta e sete anos deixando seus cabides e seus pertences, indiferentes, dentro de armários e gavetas.
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Chegamos ao subterrâneo do hospital Pan Americano. Meu pai tinha morrido havia poucas horas. Eu tinha completado vinte anos um mês antes e o Baxo tinha uns dezessete. Éramos dois bebês inocentes.
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No corredor perguntei a um enfermeiro mal encarado onde ficava o necrotério. Com o desinteresse típico, ele apontou uma porta e disse, sem me olhar:
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– Por ali.
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Entramos, os corações aos saltos, nervosos pelo que iríamos presenciar. Dois meninos desamparados num mundo frio e implacável.
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Meu pai estava sobre uma mesa inox, absolutamente nu, sem nem ao menos um lençol sobre seu corpo emagrecido e judiado. Havia passado sessenta dias em coma na UTI, e agora estava ali, descartado como lixo.
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Estava frio, úmido, com o rosto e a boca azulados. Havia um buraco escuro em sua garganta, por onde tinham introduzido um tubo de oxigênio. Traqueotomia.
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Gelei quando o vi. Gelei e estremeci, mas não chorei. Pelo menos não naquele momento. Eu já havia chorado tudo naqueles dois meses em que ele ficou em coma. Pus as duas mãos sobre seu peito e o olhei durante uns segundos.
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O Baxo pôs a mão no meu ombro. Entendi que precisaríamos começar. E ninguém nos ajudaria. Eu trazia uma malinha com sua derradeira vestimenta. Meu bom amigo me ajudou a vesti-lo.
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Em dado momento um bondoso enfermeiro, acho que vendo, chocado, dois meninos vestindo o pai morto de um deles, chegou e me rendeu. Não insisti. Fiquei esperando no corredor. Terminaram o serviço sem mim.
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Não me sinto capaz, nem me atrevo a explicar o que significa, aos vinte anos, vestir o corpo sem vida do pai. Como dizem por aí: só sabe quem passa.
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Horas depois, consegui autorização para a liberação do corpo a fim de preparar o velório, previsto para a manhã seguinte.
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Passamos a noite no Uno vermelho do Baxo, estacionado na calçada defronte à Beneficência Portuguesa, onde ocorreria o velório. Dormimos reclinados nos bancos, até que os primeiros raios de sol entraram pelo pára-brisa e nos acordaram, por volta das seis.
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Olhei para o vidro de mel e pensei: “Preciso acabar com esse maldito! Uma hora dessa um ônibus me acerta e ele vai ficar aí, rindo de mim de dentro do armário”.
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Virei o restante do mel sobre o prato já vazio e o comi, em colheradas abundantes.
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Como um justiceiro que usa um silenciador, enrolei a garrafa em algumas folhas de jornal e a destrocei em violentos e surdos golpes de martelo de carne. Joguei o pacote no lixo, apaguei a luz da cozinha e fui dormir satisfeito.
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Cesar Cruz
Março 2009
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21 comentários:

Anônimo disse...

Cara! que forte esse texto!

Adriana Louvieira
Guarulhos SP

Anônimo disse...

É Césinha, (vou te chamar como eu te chamava em 1990), eu acredito que nessa vida a gente cumpra ciclos, seu Aloísio apesar de precocemente, havia cumprido o seu...eu sei que já havíamos chegado a essa conclusão naquela noite...no Uno Vermelho.
Acho que ele deve estar orgulhoso de quase 20 anos depois a nossa amizade segue, assim como o respeito e amor que você tem por ele.
Nossa diferença é essa...daqui a 20 anos ninguém vai fortalecer os laços pela perda do mel.

Baxo

Anônimo disse...

Muito bom mesmo, Cé! Várias vezes penso nisso quando vejo coisas com datas de validade muito longas - "val até dez 2014"- muito tempo, não acha? Acho muito arriscado ter objetos tão duradouros!
Só um amigo mais louco que a gente pra expressar as loucuras que pensamos mas não conseguimos dizê-las!! Obrigada, me aliviou!
Beijo grande, Yeah

Anônimo disse...

QUERIDO CÉSAR....
A GENTE SÓ DEVE GUARDAR AS BOAS LEMBRANÇAS DE NOSSA TERRÍVEL VIDA!O RANCOR SÓ NOS TRAZ MAIS AGONIA PARA NOSSA VIDINHA E SE NÃO FOSSEM ESSAS COISAS COMO IRÍAMOS APRENDER A SOBREVIVER E A DESCOBRIR EM UM SIMPLES SORRISO DE CRIANÇA A FELICIDADE PLENA!!!!
BEIJOS

FERNANDA BARBOSA

Felipe Melloso disse...

Wow!
Também achei forte... senti um certo mal estar com tantas perdas e tantos objetos...

No fundo a garrafa de mel, como toda oportunidade na vida, estava ali, esperando para ser saboreada.
Os acontecimentos tristes que circulam e ainda circularão nossas vidas tem seu cabimento e seu momentos... as oportunidades também.
Espero que estas lembranças mais amargas não tenham tirado o sabor de sua boca que provou seu halawi.

Gosto da forma que escreve.
Até

Tais Luso de Carvalho disse...

Este teu texto tem algumas coisas hilárias no começo, até ri pois também este halawi é o meu doce preferido. Pensei: bah, achei alguém que gosta deste doce!!!

Depois começa a ficar sério...sério e triste! E comecei a pensar, também nos meus pais; eu estava junto a eles até seus últimos suspiros... Não só entendo como sinto este teu relato.

Cesar, gosto muito das tuas narrativas, pois passas toda a emoção que te vai no coração, sem muito esforço. E uma narrativa que faz a gente querer ler sem parar. E acabei lamentando muito.

Um grande abraço!
Tais luso

Anônimo disse...

Catarse pelo meu dicionário: purificação. Então entendi que há momentos na vida que temos que putificar, destilar as nossas iras, acertei? Se acertei não sei, mas que tive dó da pobre garrafa de mel isso eu tive! Ela não sabia de nada, eu garanto, ela era inocente!! (tarde demais)huasauhsauhsahushau!
Parabéns César!

Michelle Gorin
Presidente Prudente

Anônimo disse...

Meu caro amigo,

A percepção de sua devoção e carinho com a memória do seu Aloisio me fez me lembrar do seu Eduardo, de quem sinto falta há 47 anos. Aí vai uma singela homenagem a essa dupla inesquecível.

Abraço fraterno,
Gabriel





Parece que Foi Ontem


Parece que foi ontem,

Talvez anteontem, não sei.

Parece que faz um mês,

Um ano.

Parece que nunca foi.

Parece que as coisas fogem,

Deslizam, escorregam.

Parece que as imagens embotam,

Descolorem, esmaecem.


Parece que, por mais que a gente se esforce,

A memória das coisas que prezamos,

Dos momentos que vivemos,

Se apaga, dilui, esvaece.


Às vezes, de tempos em tempos,

Talvez uma vez por ano,

Uma tíbia luz é acesa na escuridão do quarto

E a gente desperta.

Juntos despertam algumas lembranças,

Confusas, mescladas, esparsas.

Mas elas ainda estão lá,

Mudas, quietas, latentes,

Acomodadas, como um fantasma,

Num canto qualquer da mente.



Então, alguma coisa sacode a gente.

É tempo de abrir a janela.

E hora de olhar para fora.

Há sol.

O mesmo sol que iluminou o passado da gente

E vai iluminar o futuro.



Por alguma razão,

As lembranças se aclaram.

Seus papos-cabeça,

Seu companheirismo,

Com que sempre pude contar

(Embora por apenas um lapso de tempo),

Seus reproches sensatos,

Sua inteligência sensível,

Sua amizade que me fez tão bem...



Que bom que você esteve aqui, pai!

Anônimo disse...

César, sempre acompanho seus causos no jornal do Cambuci e no seu delicioso blog. A-do-ro o jeito como você dá as voltas e vai pro passado e vem pro presente e pensa e age e faz a gente morrer de rir e de repente se comover e até chorar e....ufa..... e no fim sempre termina de forma totalmente surpreendente! Parabéns mesmo! Beijão enorme
Camilla Kamura
Liberdade
xx_xxxxxx@superig.com.br

Anônimo disse...

César, curto muito ler suas crônicas. Reflexões e boas risadas. O seu jeito de escrever sobre seu Aloisio demonstra uma riqueza imensurável existente dentro de você.
ALESSANDRO FRANCO

Anônimo disse...

CARAMBA!!! ADOREI!!! Seco, direto e fácil, delícia de ler. Uma simples ideia, que saiu do doce que vc gosta, o mel, os prodts que permanecem nos armários enqto a vida acontece, lincando com o tempo, (sempre ele, o tempo)... e por fim vc devorando o doce com o mel, já com sentimento diferente de antes de vc começar a devorá-lo...
Espetacular!!! Muito criativo!!!

bjos
Silvia

Vivi disse...

Olá, obrigada pela visitinha em meu blog. Sempre passo por aqui para ler esses textos interessantes. Beijão!!!

Isabel Leon disse...

Nossa, estava lendo e pensando: que legal, alguns objetos, as cores, formas, cheiros e sabores conseguem nos trazer lembranças alegres, que nos fazem reviver momentos felizes: uma viagem, a infância, uma época.
Mas depois, que triste, o que tinha que ser bom, tornou-se numa sequência de lembranças de perdas e dor.
Ainda bem que você nem deu oportunidade dessa dor se instalar na sua mente e no seu coração, e acabou com ela ali mesmo, as colheradas.

Adorei, além do texto, adorei muito mais sua postura.

Abraços
Isabel Leon
www.grupomaos.com

Anônimo disse...

Mil anos depois.... não consigo mais ler.. quase estava me esquecendo como você escreve bem!

O mel.. quem diria que algo tão doce traria lembranças tão amargas, não é?

A vida é uma contradição mesmo.

Beijos! Saudades dos 3! Mara

Anônimo disse...

Bonita a construção em áudio da crônica A Paisagem. Curioso, é tão diferente ouvir, ao invés de ler...
Parabéns.

Abraços
Profº Jayro

LUA DE LOBOS disse...

há coincidências malucas - eu tenho uma filha Vanesa e uma outra filha, mãe de uma Michelle:))))
quanto ao seu artigo, seguindo essa linha de mem´rias assim despoletadas , acho que faria o mesmo!!!
xi
maria de são pedro

Anônimo disse...

Bom dia César, ontem quase deu briga na sala por causa de uma crônica sua eu violei os direitos autorais, pois tive que tirar cópia pra todo mundo na sala, mas copiei com seus créditos também, não se preocupe!

OS ALUNOS QUERIAM CADA UM UMA CÓPIA. VOU PASSAR O LINK DO SEU BLOG PRA ELES.
CÉSAR, TO INDO ALMOÇAR. SÓ PASSEI AQUI RAPIDÃO. ABRAÇO.

Ah! usei as crônicas: "pretenções" , “Afinal é conto ou crônica” , “As mulheres e suas cores” e “Metamorfose ambulante”

Depois te conto melhor. Bração e Buenos dias!

Alessandro Franco

Gisela Melloso disse...

Tem coisas que nos marcam mesmo né?
Agora este meu devia ter alguma coisa, pq meu Deus... Te fazer lembrar de tanta coisa assim?
E ainda se fossem boas lembranças, vá lá...
Tudo o que vc passou hj pode ser visto no cara incríbvel que vc se tornou. Parabéns Cesar, por ser este cara que mesmo com coisas tristes que marcaram sua vida, consegue coloca-las tão bem escritas.

Forte abraço!!!!

Efigênia Coutinho ( Mallemont ) disse...

Cesar Cruz, gostei do que li aqui, voc6e tem muito jeito para crónicas, prende o leitor do começo ao fim, saindo satisfeito com o que leu, meus cumprimentos,
Efigênia Coutinho

Anônimo disse...

(n.a - comentário enviado por email pelo novo amigo Mário, que me achou na Gazeta do Ipiranga)

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Nossa cara muito show, como é bom corresponder com pessoas afins. Se essas nossas palavras te aquecem o coração é porque seus textos nos alimenta a alma de maneira saudável. Dei um pulinho lá no seu blog, simplesmente show de bola, aos poucos, e espero seja em bem pouco tempo irei devora-lo por completo (antes que a garrafa de mel sobreviva sem que eu os tenha lido... ehehe) já li "A catarse da garrafa de mel", simplesmente 10. Agora postarei oficialmente lá meus comentários, continue sempre assim Cesar e caso mude, que seja para melhor, o que, no seu caso é bem previsível.
Abraços de um novo e sincero amigo.

mario.

Majoli disse...

Seu texto me invadiu por total, perdi meu pai em 1988, e com certeza teria tido uma reação semelhante a esta tua em relação ao vidro de mel.
Bem, sem mais, um abraço.