Fevereiro de 2010.
_________________
Alípio Jorge do Nascimento acordou com uma sensação diferente. Dentro de si, agora, subitamente, passara a dar valor às coisas de fato importantes. Sempre ouvira isso: “O valor das coisas importantes”, mas agora, só agora, podia verdadeiramente compreender a profundidade abismal que havia entre o supérfluo e o essencial.
Ainda deitado na cama, com os olhos apenas ligeiramente abertos, vitimados pela sonolência, foi atingido por um impulso incontrolável de espichar o corpo, bocejar. Entretanto, refletiu, do que serviria um bocejo e uma espreguiçada, quiçá para aliviar a tensão acumulada num corpo que nem havia sido de fato exigido, já que esteve por sete horas em repouso? Considerando tal atividade desimportante, efêmera, eximiu-se de fazê-la. Sua mão esquerda, quase que automaticamente, foi ao interruptor do abajur para acendê-lo, mas, subitamente, estancou. Por que acender a luz? Para enxergar um quarto onde se sabia exatamente a localização das coisas? Atitude inútil aquela, evidentemente. Recusou-se a realizar atividade tão desprovida de importância. Aborrecido, sentou-se na cama e calçou os chinelos, até que atinou com a futilidade de tal gesto. Calçar-se-ia para ir à cozinha tomar café; depois poria uma roupa séria e iria para o emprego; posteriormente retornaria a casa para comer; finalmente dormir; e então começaria tudo de novo. Negava-se a se dedicar a uma sequência tão ordinária de afazeres. Precisava achar algo que valesse a pena realizar
Voltou a se deitar.
Dentro dele uma ânsia desconhecida se avolumava. Onde estaria o motivo primordial, o porquê para que tudo, todas as efemeridades que esteve praticando ao longo de toda uma vida, se justificassem? Logo se deprimiu, pois a resposta não veio. Não conseguiu encontrar motivos para nada. Trabalhar, estudar, comer, dormir, amar. Para quê? Qual a finalidade derradeira de tudo aquilo, ó Deus? Tudo lhe parecia sem préstimo, oco, despropositado.
Ainda deitado, correu a mão para a gaveta do criado-mudo. Abaixo de alguns papéis o trinta-e-oito permanecia lá, em sua robustez metálica. Por que tinha adquirido aquela arma? Segurança? Ora, segurança! Para que segurança? Para não morrer, vítima dum latrocínio? Às favas com essa besteira! Não havia utilidade para isso, já que a própria vida era, nada mais nada menos, que um conjunto louco de tarefas e paixões vãs.
Pegou a arma. Meteu o cano frio na boca.
As mãos segurando a coronha e os dois polegares pousados sobre o gatilho. Como alguém que sorve um milk shake num canudo grosso, permaneceu ali, parado, bicudo, pensando. O chumbo atravessaria seu palato e explodiria com aquela caixa produtora de irrelevâncias que se convencionou chamar de mente humana...
Mas... qual a utilidade disso? Sem resposta, exonerou-se de tão frívola tarefa. Não via proveito. Tirou o cano da boca. Deixou a arma cair sobre o colchão. Os braços penderam ao lado do corpo, desanimados. As pálpebras desceram, sonolentas e entediadas. Afinal, para que ficariam abertas?
E assim adormeceu, levianamente.
.
.
.
Cesar Cruz
Janeiro 2010
.
.
.
Imagem: Obra de M.C. Escher (1898 - 1972).
.
.
.
.
.
6 comentários:
Putz, me amigo, adorei! Muito bem escrito, no ritmo adequado, com o vocabulário apropriado. Estou com inveja.
Parabéns.
Abraço
Essa tua crônica é excelente, pois faz pensar em tantas coisas que nós, os humanos, nos matamos para adquirir, casa na praia, na serra, viagens todo ano – às vezes com sacrifício, mas existem pessoas que têm de viajar, senão ficam frustradas. O carro do ano, roupas de grife, moradia de luxo... tudo em nome das ‘aparências’.
Então chega o momento que nos questionamos, como fizeste: pra quê tanto? Vale a pena? Serei mais feliz com tudo isso? Viverei mais? Talvez menos.
Mas no fundo, a rotina é algo saudável, desde que a condução seja nossa, e não para os outros.
Beleza, Cesar.
Bjs
Tais luso
Cézar Cruz
Virei sua fã calada
Acompanho seu causos. Incríveis!
Não me atrevo a comentá-los
Só te peço para que continue escrevendo.
E postando...rsrs
Traga reflexão e o prazer de ler a quem neles pousarem os olhos; silenciosamente, ou não.
Abraços
Deva
enigmático.
muito bom.
faz pensar.
e repensar.
louquinha da silva? eu?
quem não tem um tequinho disso?
muito bom esse.
me pegou.
congratulações.
:-)
Ai que delícia de ler! Eu adorei! Gosto do jeito que vc narra, Cesar. Para mim ritmo é TUDO em qqr texto! E vc tem feito isso com muita habilidade.
É um pouco de todo mundo esse seu conto! Me deu até uma certa curiosidade pra saber como vc pensou nesse tema pra montar esse texto. É meio que um ciclo real a vida daquele personagem.
parabéns!
bj
Silvia
Cambuci
Puta história!
Abço
Fernando
Postar um comentário