O Quilo - modo de usar


Crônica publicada no Jornal do Cambuci e Aclimação* - Março de 2010.
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Onde quer que você se encontre nesta imensa metrópole haverá por perto um restaurante por quilo. O quilo, como são conhecidos aqui em Sampa esses locais de refinada gastronomia, é um lugar em que você entra e pega, logo de cara, uma baita fila. Coisa bem normal para o paulistano. Até desejável. Sem fila o cara entra em depressão.


Pois bem, você acaba de entrar na fila que começa lá fora, na rua. Lá na frente, além da multidão enlouquecida, estará a comida, dentro de recipientes metálicos aquecidos em banho-maria. Pouco antes de chegar lá você encontrará uma mesinha com algumas pilhas. A pilha de pratos com uma flanelinha em cima é a primeira delas. Ao lado a de bandejas. Quando chegar a sua vez, pegue um prato da pilha de pratos, passe a flanelinha encardida sobre ele (para limpar os perdigotos que as pessoas cuspiram por lá) e coloque-o sobre a bandeja que você pegou da pilha de bandejas.

Apesar de as bandejas parecerem limpas, nunca estão (pode apostar sua vida nisso). Estão sempre engorduradas pela comida que o sujeito que almoçou antes de você teve o cuidado de deixar cair ali. Coloque, para sua saúde, entre o prato e a bandeja ensebada um retângulo de papel, que também estará disponível junto aos pratos numa pilha própria. Ao lado de tudo isso haverá uma cumbuca com talheres, pegue apenas um par: garfo e faca. Do montinho de guardanapos você poderá retirar um ou até mesmo dois, se desejar.

Tudo indo muito bem. Ótimo! Agora sustente a bandeja, equilibrando pratos e talheres sobre ela. Vá praticando, em alguns minutos você terá de equilibrar muito mais coisas e andar pelos corredores abarrotados de comensais até chegar a uma mesa vaga. Por enquanto, espere calmamente a fila andar. Demora um pouco e o calor é insuportável. Normal. Um quilo legitimamente paulistano não tem ar condicionado. Se tiver, é engano. É um falso quilo. Fique atento.

Aproveite para reparar nas pessoas. Logo atrás de você há um japonês, e na sua frente um gordo, suado. A loirinha que você achou bonita estará sempre quatro ou cinco pessoas de distância de você, lá na frente. Por mais que você tente se contorcer para espiá-la, aquela massa obesa e suada não permitirá. Outro problema com a loirinha é que ela está sempre acompanhada de um magrinho que, a princípio, pode parecer ser o namorado dela, mas não é. O magrinho é um franguinho lá do escritório da loirinha, apaixonado por ela. Fica na cola da moça o dia todo, de segunda a sexta, até na sagrada hora do quilo. Geralmente o magrinho tem uma namorada feia que trabalha numa farmácia, e nem imagina que ele passa o dia inteiro babando na loirinha. Não me pergunte o porquê disso tudo, mas é sempre assim, desde que o quilo é quilo.

Todas as pessoas ali em pé estão como você, doidas de fome e com pressa. É por isso que você sempre terá a impressão de que o gordo está enrolando defronte à carne assada. Da mesma forma, o japonês terá sensação idêntica com relação a você, por isso é que ele se aproxima assim, inconvenientemente. É uma pressão para você andar.

Então, finalmente, você começa a pôr os alimentos no prato. Não exagere e não se iluda: o quilo dá a falsa ideia de que você está comendo barato. Engano. Andam caríssimos esses quilos de hoje em dia. Em torno de R$2,50 cada cem gramas (cem granas!), sem contar a bebida e a sobremesa.

Em dado momento seu estado de nervos será grande. Todo cuidado agora, já que o quilo parecerá a você uma enorme panela de pressão, com a válvula entupida. Segure-se e não arrume confusão, pois é justamente nesse momento de grande tensão que uma senhora roliça, de touca cirúrgica, furará a sua frente sem pedir licença e se precipitará sobre a comida empunhando uma enorme colher. Não, não parta para a ignorância; ela não é uma cliente faminta que não aguentou a fila e vai comer ali mesmo, em pé, às colheradas.

Esta mulher, aparentemente mal-educada, foi contratada para uma única e específica tarefa: chafurdar e revirar a comida a cada vinte minutos, de forma a deixá-la o mais apresentável possível dentro das cumbucas. Assim, você fica com a impressão de que está tudo fresquinho, recém-preparado e nem imagina, pobre incauto, o quanto essas iguarias, que estão ali desde às 11h00 da manhã, já foram viradas e reviradas. O quê, senhor? A touca cirúrgica? Uma mera alegoria para simular que está tudo limpinho e higienizado. Saiba que, tanto a touca quanto a flanelinha para limpar os pratos são os mesmos desde a fundação do restaurante, em 1989.

Pois bem, amigo leitor. Agora que você já tem todas as instruções básicas de sobrevivência no Quilo, vou deixá-lo comer em paz. Ah, cuidado com a mousse de chocolate, sempre (sempre) dá dor de barriga. Olhe pra frente, ta chegando a hora de pôr o prato na balança... Tire a bandeja, só se pesa o prato... Atenção pra não tropeçar no gordo... Cuidado pra não deixar cair o suco... Xi, ó o Japa aí cafungando de novo no seu cangote!
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Cesar Cruz
Janeiro 2010
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* crédito dos parceiros neste blogue.
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10 comentários:

Gabriel Fernandes disse...

Ha ha ha! Muito bom. O alho na picanha é para disfarçar o gosto ruim de carne passada muito tempo fora da geladeira, à beira de estragar. ‘Tou fora!

Gabriel

Anônimo disse...

Gostei Cruz! Faltaram alguns detalhes: vc esqueceu de contar que no quilo, o bife de hoje é o picadinho de amanhã. E que os refogados que sobram viram suflês; e os legumes são picados e se transformam em arroz a grega... e por ai vai!

abraço
Milton

Anônimo disse...

E os garfos que sempre trazem um restinho de comida na aresta interna dos dentes?
Muito boa, Cesinha! Saudades de vocês! Abraço, Marcão.

Anônimo disse...

Muito bom!
Sem falar que você talvez não tenha reparado, mas as mulheres têm uma dificuldade a mais: depois da bandeja nas mãos (porque você precisa das duas mãos para equilibrá-la), você perde todo o controle sobre a sua bolsa, que, pendurada no ombro, resolve sempre escorregar para o cotovelo ou pelo menos causa um enorme transtorno, batendo em todas as cabeças das pessoas já sentadas almoçando enquanto passamos pelo ridículo espaço que nos deixam para chegarmos à nossa mesa.
Credo! quilo é mesmo muito deprê...
Beijos!
Yeah

Gláucia (enviado por e-mail) disse...

Cesar,

Muito difícil comentar seus causos com essa minha conexão discada e
ultrapassada que não acompanha a agilidade ( mega chique isso não?) do meu cérebro!

Muito bom , ri muito e pensei o quanto deve ser mais fácil a vida de quem pode almoçar sempre no Fasano hehehehhe

Abraços
Gláucia

Tais Luso de Carvalho disse...

Poxa... assim não há fome que perdure, Cesar! Mas é tudo isso aí.

E têm aqueles que vão passando e tossindo no teu prato; os que levam um tempão se servindo do prato que também queres; do limão que acompanha o refri e que foi cortado 3 horas atrás. E esqueceste de uma coisa muito comum: conforme o restaurante, olhas para o lado e vês uma coisa de louco, comendo com a boca aberta e falando sem parar em doença! É dantesco. O pessoal não se dá ao luxo de parar pra comer. Tem de produzir o tempo inteiro.

Excelente crônica, mas aqui, como em todo o Brasil existem quilos de restaurante a quilo: uns horrorosos; outros ótimos, com a cozinha escancarada para os clientes. São menores e bem calmos, conforme o bairro em que estão.

Mas é a solução para quem não quer mais cozinhar em casa, que não têm filhos morando junto ou é solteiro e trabalha fora.
Narraste de uma forma real, inclusive com aqueles figurões, um na frente e o outro atrás do cangote. Isso é o que mais deve ter.

Bjs
Tais luso

Ângela Márcia Marconato disse...
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Assis disse...

Oi Cesar, meu nome é Assis, moro no Japão há mais de 10 anos e fui e ainda me considero membro da Besteda.
Não sei se você vai aos cultos da mesma, mas vi que o pastor Ricardo escreveu alguns comentários no seu blog, que é simplesmente espetacular!
Gosto muito de ler o que você escreve. eu acabei de ser pai. Minha filhinha fará 1 mês de vida no próximo dia 05, e no dia 02 de abril minha irmã fará aniversário também.
Esta minha irmã foi adotada pelos meus pais quando tinha somente 3 dias de vida. Ela é o melhor presente que Deus poderia ter nos dado!!
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Eu também penso em gerar um filho, um dia, da mesma forma. Fiquei sabendo de você e sua linda família através de uma comunidade do orkut...
Bom, passei aqui para deixar um abraço e parabenizá-lo pelo seu blog que é extremamente interessante e nos ajuda a perceber como é lindo o nosso português!!

Ah, eu também tenho um blog, ttp://assistant-assistant.blogspot.com/

God bless!!

Assis, Makie e Emma

Pedro Luso de Carvalho disse...

Cesar,

Também não é nada agradável quando temos na nossa frente, na fila, uma pessoa gripada, com o nariz já vermelho de tanto limpá-lo, entre um espirro e outro, e depois que enchemos o nosso prato, encontramos uma mesa vazia e sentamos bem ao lado do mesmo cara da fila, que não pára de espirrar e de limpar o nariz (a fome? já era.

Muito boa, tua crônica.

Abração,
Pedro.

Ângela Márcia Marconato disse...

Caro Cesar, Muito bom! A crônica debate algumas questões divertidas que acontecem diariamente nos tais “quilos”, mas vale lembrar que praticamente estamos todos na mesma "balança", ou seja, que atire a primeira pedra quem não cometeu um desses "pecadinhos". Eu, por exemplo, já cometi a gula e fiquei fula com a demora das pessoas na fila.

Abraços,
Angela Marcia