Lavoisier e a criação ficcional




Já acontecia antes, mas depois do lançamento de O Homem Suprimido tenho me deparado muito com a seguinte pergunta: "Cesar, de onde você tira essas histórias?". A indagação completa, que a pessoa não formula exatamente assim, mas que é o que de fato passa em sua cabeça, é: "Como pode um escritor ser capaz de criar mundos, pessoas e acontecimentos que nunca existiram, e ser isso tudo fruto do nada absoluto?".

Na física existe uma lei chamada Lei de Lavoisier. Antoine Lavoisier conseguiu demonstrar e comprovar laboratorialmente que: "Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". De acordo com seus experimentos, na natureza não se consegue criar nem se eliminar matéria. Pode-se, tão-somente, transformá-la de uma forma em outra. Logo, tudo o que existe provém do que já existe.

A mim me parece que a Lei de Lavoisier pode também ser aplicada à criação ficcional. Não se cria nada a partir do nada, essa é a grande verdade. Boa parte do que um ficcionista elabora, sejam personagens, sociedades, comportamentos, situações, parte de algum tipo de experiência vivida ou de uma pequena fagulha de percepção de experiências passadas, conhecidas ou observadas. Ainda que algumas (ou muitas) dessas fagulhas que incendeiam a criação, estejam imersas numa camada abaixo do limiar da consciência do próprio autor, numa região em que a detecção humana é imprecisa, muitas vezes nula.

Não há como ser categórico e afirmar que toda a criação literária é fruto de uma realidade experimentada. A literatura não é uma ciência exata. Mesmo porque há os complexos meandros de uma história, que a habilidade do escritor, que vai amadurecendo com o tempo, é capaz de rechear de matéria viva, tão enganadoramente viva que a faz símile à real.

Entretanto, perscrutando minuciosamente meus "inventos" literários, mergulhando nas histórias que crio, consigo perceber a Lei de Lavoisier presente... Em As Voltas que a Vida Dá, por exemplo, conto que abre o meu livro, percebo que a Vilma, a protagonista da história, é a síntese de algumas mulheres que conheci ao longo da minha vida. Nenhuma em especial, mas uma mistura de algumas delas. Ainda na mesma história, a ambientação em que se dá o conto (um apartamento de alto padrão num bairro de Classe A), foi concebido a partir de lugares em que estive. E o final da história, talvez seja o que eu, inconscientemente, gostaria de fazer com sujeitos execráveis como aquele... Comprovado: As Voltas que a Vida Dá, apesar de pura ficção, traz elementos vividos por mim, que emergiram de regiões rasas e profundas da minha mente.

As Baratas do Ralo, conto narrado em primeira pessoa por uma mulher velha, doente e que passou uma vida à mercê de um marido detestavelmente machista, que ela hoje abomina, mas com quem ainda tem de conviver, talvez seja a réplica de uma amiga de minha mãe da época em que eu era pré-adolescente, de quem me lembro muito bem, não só dela, mas também dos relatos que, através da parede da sala, eu a ouvia contar à minha mãe enquanto elas tomavam chá na sala. A ambientação desse conto também é clara para mim, neste caso desde o primeiro rascunho: se passa num cortiço imenso, que era chamado de Casarão, onde meu pai e meu tio viveram suas infâncias e começo da juventude, e onde eu mesmo estive algumas vezes, por volta dos cinco, seis anos, antes que fosse demolido para dar lugar a um banco.

Tapioca é um conto que narra a experiência de um homem velho que, após uma vida de realizações, adoece e é desenganado pelos médicos. Agora ele vive seus últimos dias num leito de hospital, cada vez mais distante das filhas e genros que não conseguem mais disfarçar o tormento que lhes causa sua dependência. Sofre com os tratamentos hospitalares e a frieza dos médicos e enfermeiras. Enquanto isso, a vida passa lá fora, alheia à sua sorte. De repente, quem diria, ele começa a desejar a morte... Justo ele, que sempre gostou tanto de viver. Quem é esse homem e que realidade é essa que criei? Criei? Ora, convenhamos, eu já vi isso acontecer inúmeras vezes! Só o que precisei fazer foi me colocar no lugar de um daqueles moribundos que vi sofrer longamente e, por fim, morrer, abandonados e solitários, depois de velhos.

Pois é... Na literatura, como na física, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.


Cesar Cruz
Julho 2010





5 comentários:

Anônimo disse...

Legal Cesar, o que vale é aquilo que é da pessoa, como ela molda, esculpi e apresenta isso aos outros, por isso mesmo, qualquer coisa que saia do íntimo de alguém terá seu valor, por mais distorcido “que pareça ser” o que é de alguém é muito importante, é o mundo dela “É ELA”, e ninguém é sem valor. Isso nos remete a uma criança que, quando faz uns rabiscos coloridos corre até nós com toda alegria e empogação e diz: ficou bonito titio? SIM, NUNCA será feio o que ela ou qualquer outra criança fizer, aquilo é dela, sempre será lindo, maravilhoso, espetacular, e carrasco seria quem por uma ousadia insana, quisesse dar conselhos técnicos ou de melhoria “nestes casos”, portanto amigo, de uma forma cativante consegue passar aquilo que é Você para nós, por sempre expressar a sinceridade e de maneira despretensiosa, por escrever com prazer, alegria e vontade.

Abcs a tds
xara - ipiranga

Paula: pesponteando disse...

Cesar,

Adorei o texto e a aplicação da Lei de Lavoisier à literatura. Trabalhei com essa relação ficção x realidade em meu tcc. Vc está correto qdo diz na literatura nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Ouvimos dizer que ficção é ficção e realidade é realidade. Que nada! Ficção e realidade reciprocamente se unem para se formar. Como negar que o escritor crie sem um ponto de referência? Mesmo que ele vislumbre um mundo inconcebível, pessoas irreais, objetos inexistentes, mesmo assim o faria com base em sua concepção do real. Claro, que sabemos que não há uma representação fiel do real, há uma maquiagem perfeita que se utiliza de tudo aquilo que guardamos na memória e que se configura pelo imaginário em uma narrativa possível. E se esta narrativa se utiliza de recorte do nosso imaginário, é sabido que outras pessoas, que também guardam tais imagens na memória, vai, diante do texto, reconhecer o real, ou os resquícios do real. Seu texto trouxe uma ideia nova p mim. obrigada....

bjs

Natália Cassiano disse...

Oi Cesar

Obrigada pelo comentário. É tão bom quando alguém a quem admiramos nos elogia.

Se nada se cria, realmente... se transforma. Também acho que escrever é isso. Dar forma às nossas experiências, colocá-las no papel. A nossa imaginação recria o que somos e o que nos influencia.

Você prende o leitor, tanto pela forma, direta, bem escrita, intensa, tanto pela qualidade de conteúdo das suas histórias.
É sempre muito gostoso te ler. Toda vez que leio um conto ou crônica sua, fico repassando o que li na cabeça por um tempo. De certo modo, suas histórias me fazem pensar, ou lembrar de outras coisas de que ouvi ou vivi.

O sentido de um texto é acrescentar algo, deixar uma impressão em quem o lê.
E você faz isso maravilhosamente bem.

Ah... falando no assunto, escrever...
Como foi o lançamento do livro?
Vi a foto em seu blog
Deve ter sido emocionante, não?!

Bjs

Deva

Anônimo disse...

Muito interessante, Cesar! Parabéns pelo livro.

Julio

Danilo disse...

Não tinha pensado nisso. É verdade! Tudo o que pensamos é oriundo de uma única fonte: nossa mente e tudo o que há nela. Excelente!

Abço forte
Danilo Prasca